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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Da pior maneira, Brasil chama a atenção do mundo por mais um crime bárbaro

Polícia Federal na busca por Dom e Bruno no Vale do Javari (AM) - Polícia Federal
Polícia Federal na busca por Dom e Bruno no Vale do Javari (AM) Imagem: Polícia Federal

Colunista do TAB

16/06/2022 08h55

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"Muitas vezes nos sentimos ameaçados em nossa soberania nessa região, mas o fato é que o Brasil preserva muito bem o seu território. Mais de 85% da Amazônia brasileira é preservada. Nossa legislação ambiental é muito estrita."

Foi o que disse Jair Bolsonaro durante seu encontro com Joe Biden, na Cúpula das Américas, nos EUA, semana passada.

Poucos dias depois, na mesma Amazônia de legislação "estrita" e de território preservado, dois suspeitos confessaram o assassinato, com esquartejamento, do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips.

Eles estavam no local para contar como a soberania daquela região estava sendo destroçada por quem atua às margens e ao arrepio da legislação ambiental "estrita" e cada vez mais esfolada sob o governo Bolsonaro.

Bruno era um dos muitos signatários de um documento encaminhado à Defensoria Pública da União, em 2019, que listava uma série de ataques com armas de fogo contra servidores da Funai (Fundação Nacional do Índio) na região. A carta foi obtida e divulgada pelo programa "Fantástico", da Globo.

A resposta dos órgãos oficiais foi o aprofundamento do desmonte, apoio a projetos que colocam em risco a proteção ambiental, como o marco temporal e o incentivo a mineração em terras indígenas, e o lançamento de ativistas como Bruno Pereira ao limbo.

Agentes da própria Funai, do Ibama e do ICMBio que o digam. Jornalistas que acompanham o desmanche também. Em comum, todos exercem hoje uma profissão de risco. São ameaçados e/ou punidos por fazerem seu trabalho bem feito. Esse trabalho consiste em enviar alertas recorrentes, incansáveis, sobre o risco que se corre quando flertamos com a destruição.

Bruno e Dom pagaram com as vidas.

No já distante 2019, os defensores da floresta contabilizavam oito ataques a bala em 12 meses e reclamavam da ausência de garantia à segurança dos funcionários da entidade. Foi em um desses ataques que morreu o também indigenista Maxciel Pereira dos Santos, no município de Tabatinga (AM).

Bruno e outras lideranças do Vale do Javari eram a pedra no sapato de grupos criminosos responsáveis por invadir a terra indígena para pesca irregular. A suspeita é que eles alimentassem, literalmente, grupos de narcotraficantes que lavavam dinheiro e expandiam seus negócios pela região.

Toneladas de pirarucu e tartarugas eram vendidas em Atalaia do Norte, de onde se apresentaram os advogados de pessoas presas durante as buscas pela dupla desaparecida. Um dos investigados ameaçava Bruno à luz do dia.

Não faltou aviso sobre a tragédia confirmada. Nem noção do perigo, como chegou a sugerir Bolsonaro ao dizer que eles não eram bem-vindos pelos bandidos da região. Faltou proteção do Estado a eles e ao território que defendiam.

Bruno, que conhecia a floresta como a palma da mão, poderia ser "só" mais uma entre as muitas vítimas da cruzada predatória que atravessa, e sempre atravessou, a Amazônia — e que, de uns anos para cá, já não precisa se embrenhar nem se esconder. Pelo contrário. Hoje mostra os dentes com a certeza da impunidade.

A exploração de áreas que deveriam ser preservadas tem sido estimulada pelo atual governo. Para o regime, não são os negócios dos mineradores, pescadores e madeireiros que ameaçam os povos indígenas, mas o contrário.

As ameaças, retaliações e assassinatos de lideranças indígenas e ambientais entram na conta das vítimas de um país que se esfola e se mata aos milhares. E que são esquecidos à medida que surgem outros.

Mas dessa vez um cidadão britânico, em pleno exercício da profissão, estava no caminho. Estava lá justamente para mostrar o que era real e o que era imaginário no discurso oficial de que "tudo vai bem, obrigado" em uma das áreas mais ameaçadas pela ação humana do planeta.

O fim trágico da dupla, que só contou com apoio governamental durante as buscas por seus corpos — ainda assim sob protestos e pressão — , confirma o que eles buscavam ali já na elaboração da pauta: denunciar a entrega daquele território ao crime organizado.

Não se sabe qual repercussão teria, aos olhos do mundo, a reportagem-denúncia que jamais será publicada por Dom.

Mas o caso hoje ganhou outra dimensão. Essa reportagem-denúncia abortada fez nascer outras centenas. E lançou não só uma lupa gigantesca sobre a situação de abandono planejado do território, mas um peso para quem tentou, a todo custo, mudar o rumo da conversa e mostrar ao mundo que a Amazônia é, sim, segura — só não é lugar para "aventureiros".

Quem consegue ligar os pontos sabe que Dom e Bruno não estavam lá em busca de aventura. Estavam lá para mapear as engrenagens da devastação que o governo nega nos salões com ar-condicionado dos encontros bilaterais.

O Brasil tem flertado há anos com boicotes de nações estrangeiras por desdenhar dos alertas de especialistas sobre os riscos de savanização da maior floresta tropical do planeta. Suas autoridades sabem que um eventual boicote vai doer e muito no bolso — inclusive dos setores que hoje, em troca de lucro rápido, querem apenas passar o trator e a boiada em áreas que deveriam ser preservadas.

Daí os malabarismos oficiais para desconversar e dizer que não tem nada de errado na Amazônia.

O silenciamento de Dom Phillips e Bruno Pereira amplia de maneira considerável as pressões sobre o governo brasileiro em relação à floresta. Uma pressão que isolará ainda mais o país no cenário global.

Quem se orgulhava da condição de pária deveria se envergonhar da incapacidade de preservar seu mais rico ecossistema e garantir a insegurança de quem visita a região em pleno exercício da profissão.

O mundo, até semana passada, queria notícias sobre o paradeiro de Dom e Bruno. Agora exige respostas. E justiça.

Há mais de quatro anos, uma vereadora em pleno mandato e seu motorista foram metralhados em outra selva, esta urbana, e deixaram como rastro uma pergunta que se repete diariamente: quem mandou matar Marielle Franco e por quê?

Até hoje não sabemos.

Talvez o país de origem de Dom Phillips não aceite como resposta uma placa rasgada em sua homenagem.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL