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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Brasil tem fome e Amazônia saqueada. Mas foco de Bolsonaro é peitar TSE

O presidente Jair Bolsonaro - Agência Brasil
O presidente Jair Bolsonaro Imagem: Agência Brasil

Colunista do UOL

09/06/2022 04h01

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Jair Bolsonaro montou uma força-tarefa para salvar o mandato do amigo e deputado federal pelo Paraná Fernando Francischini (União Brasil).

Francischini foi cassado em outubro de 2021 após dizer em uma live, sem provas, que as urnas eletrônicas estavam fraudadas no primeiro turno de 2018. Bolsonaro foi eleito presidente naquele ano. Desde então, não perde a chance de atacar o sistema eletrônico que o elegeu.

Pela versão da dupla, o "sistema" só não aceitava a vitória do ex-capitão no primeiro tempo do jogo; no segundo, tudo bem.

O presidente, que já declarou ter 20% do STF (Supremo Tribunal Federal) na mão desde as indicações de Kassio Nunes Marques e André Mendonça, acompanhou de camarote a lambança dos aliados para melar a decisão do Tribunal Superior Eleitoral que cassou seu amigo parlamentar.

Nunes anulou a decisão do TSE. E a Segunda Turma do STF gastou tempo e recursos preciosos para restabelecer a condenação dias depois. Como se o destino de um deputado irresponsável fosse uma grande prioridade no país onde 33,1 milhões de pessoas passam fome — número quase duas vezes maior do que o registrado há cerca de dois anos.

No quesito desmonte e retrocesso, é preciso tirar o chapéu, o governo Bolsonaro é bastante efetivo. Tanto que hoje quase seis em cada dez brasileiros (58,7%) enfrentam algum grau de segurança alimentar. Se a ideia era retomar um passado glorioso, estamos de volta à estaca zero removida a duras penas por Herbert José de Souza, o Betinho, e outros líderes.

Os números são ainda mais assombrosos quando se analisa a situação da fome no Nordeste, no campo e em domicílios comandados por pessoas negras.

Eis o que deveria mobilizar uma força-tarefa de fato.

Bolsonaro prefere passear de jet-ski no fim de semana e atribuir a crise à guerra na Ucrânia e às ações emergenciais para conter o morticínio da covid-19, embora a curva em direção à fome já despontasse antes dos dois eventos históricos, como resumiu ao repórter Carlos Madeiro o diretor-executivo da ONG Ação da Cidadania, Francisco Afonso.

Nada disso parece franzir a sobrancelha do presidente. O que o preocupa mesmo é salvar da cassação o velho amigo pego na mentira.

Bolsonaro, para dizer a verdade, não está preocupado com o futuro político de Francischini, e sim com o dele. A condenação do deputado criou jurisprudência. E pode alcançar o líder da turma.

O episódio deu munição para o presidente voltar a metralhadora contra o Supremo, sugerir que 80% da Corte joga no time de seu adversário e ameaçar novamente não cumprir decisões judiciais, entre elas a do marco temporal — tema-chave, ainda a ser julgado, para a preservação ambiental e a sobrevivência dos povos indígenas.

"É inacreditável o que fazem", disse um inconformado presidente após a confirmação da cassação do amigo.

Pois é. Inacreditável.

O ex-capitão estava tão preocupado com o julgamento no STF que aparentemente se esqueceu de liderar uma outra força-tarefa, a que deveria percorrer de imediato a região do Vale do Javari para tentar localizar um indigenista e um correspondente britânico desaparecidos desde o fim de semana.

Bruno Pereira e Dom Phillips estavam no local para justamente contar o que acontece debaixo das nuvens de denúncias e negações oficiais a respeito da destruição da floresta e das ameaças aos seus habitantes — quadro que transformou o país em pária internacional, possível alvo de boicotes comerciais e que só afugenta investidores.

Integrantes da Unijava (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari) registraram em um boletim de ocorrência, há cerca de um mês, ameaças de morte recebidas por pescadores da região.

Servidor licenciado da Funai (Fundação Nacional do Índio), Pereira era uma das pessoas ameaçadas em razão de seu trabalho para coibir atividades predatórias ilegais na Amazônia.

Bolsonaro, antes mesmo de assumir, mostrou de que lado estava ao dizer que não iria mais "admitir o Ibama sair multando a torto e a direito por aí".

A mesma bronca não valia para quem construía na região um oásis da impunidade.

Enquanto lideranças ambientais criticavam a ausência de uma força-tarefa e a omissão de órgãos federais de proteção e segurança nas buscas pela dupla desaparecida, Bolsonaro classificava como uma "aventura" o trabalho de apuração em campo dos dois profissionais. "Duas pessoas apenas num barco, numa região daquela completamente selvagem, é uma aventura não recomendada que se faça. Tudo pode acontecer. Pode ser acidente, pode ser que tenham sido executados."

Para quem não admite que fiscais façam seu trabalho e esperneia contra cassação de amigos em apuros com a Justiça, a passividade em relação a possíveis executores soa como uma piscadela.

A soberania da Amazônia, tão alardeada pelo presidente e os militares que o apoiam, só vai até a segunda página.

Foi o próprio presidente quem disse ao repórter hoje desaparecido que "a Amazônia é do Brasil, não de vocês", antes de desfilar durante uma coletiva em 2019 uma série de delírios paranoicos sobre a cobiça internacional na região.

Para ele, essa cobiça e as "ações e narrativas que agridem os interesses nacionais" deveriam ser rechaçadas. Nem que para isso o território seja loteado por grileiros, madeireiros, garimpeiros, pescadores irregulares, traficantes e outros grupos de interesses que fazem da região o que bem querem. Inclusive executar, se necessário for, quem lhes cruze o caminho.

Bolsonaro talvez não tenha percebido, mas acaba de declarar que a Amazônia tem dono, sim. O crime.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL