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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Motoboy baleado e 'privilégio' de rico: o Brasil real bateu à porta de casa

Confusão: policial atira sem querer em motoboy no interior de São Paulo - EPTV/Reprodução
Confusão: policial atira sem querer em motoboy no interior de São Paulo Imagem: EPTV/Reprodução

Colunista do UOL

07/06/2022 04h01

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Minha mãe me escreveu assustada na quinta-feira (2) pela manhã.

Ainda de madrugada, policiais cercaram o condomínio onde ela mora com meu pai, no interior de São Paulo.

O susto veio com a revelação de que um vizinho próximo era alvo de uma operação contra fraude fiscal e sonegação no setor tabagista.

O alvo era um empresário com quem mal tínhamos proximidade e cuja empresa, pelo que soubemos, tinha uma dívida de R$ 213 milhões — o equivalente, numa conta rápida, a 10.650.000 corridas médias para entrega de mercadoria por app.

Os agentes entraram na casa, uma das maiores da vizinhança. Reviraram quartos e salas de cabeça para baixo e recolheram o que precisavam.

Apesar do alvoroço, e do constrangimento de crianças a caminho da escola verem os carros dos pais serem revistados ao sair do local, nenhum tiro foi disparado. Era o que poderíamos chamar de ação exemplar.

Mesmo à distância, sem ter muito o que fazer, em nenhum momento temi pela segurança dos meus familiares e amigos. Ninguém chega atirando em um condomínio de classe média ou classe média alta.

Dias antes, em uma operação na Vila Cruzeiro, a 680 km dali, amigos e familiares de 23 pessoas mortas em uma ação para apreender 13 fuzis não poderiam dizer o mesmo.

Entre as vítimas estava um ex-militar da Marinha que voltava de uma festa. Aos 23 anos, Douglas Costa Inácio Donato, empregado de uma loja de calçados e pai de um bebê de dois meses, se tornou naquele dia mais uma vítima das muitas balas perdidas que só encontram corpos negros. E que, ao fim da operação, ganham o selo de "bandido" que reagiu ao confronto e fim.

O resto das sentenças fica a cargo da justiça dos aplausos das redes sociais.

Meus pais e os filhos dos vizinhos que voltavam de alguma festa naquela madrugada talvez tivessem o mesmo destino se morassem na vila — ou em algumas das casas simples para lá do "muro" onde pagam para viver protegidos.

No dia seguinte, numa área próxima de onde eu moro, em outra cidade do interior paulista, policiais decidiram abordar um grupo de motoboys que fizeram do canteiro de uma rodovia um ponto estratégico de espera para as chamadas de entrega.

Durante a abordagem, um rapaz de 20 anos que estava sem documento se assustou e tentou fugir. Sabia que era o fim da linha para um jovem negro que perdesse a moto, sua ferramenta de trabalho, àquela altura.

Por resistir à inspeção, tomou uma coronhada no rosto para supostamente se acalmar. Foi quando a arma do policial disparou e atravessou sua boca. Sangrando, ele foi levado às pressas ao hospital, ainda com vida. A poça de sangue registrada pelos cinegrafistas das TVs locais dava a dimensão da tragédia.

Dele a última notícia que tivemos é que seguia em estado grave, mas estável.

Na série "Succession", da HBO, a família proprietária de um conglomerado de mídia e parques temáticos classificava os incidentes envolvendo clientes e empregados — entre vítimas de assédio e mortos em condições estranhas — de acordo com a posição social de seus corpos. "Nenhuma pessoa real envolvida" era o termo usado quando a vítima não merecia um franzir de testa dos magnatas capazes de comprar silêncio e alterar a cena do crime para escapar de qualquer responsabilidade.

No Brasil de 2022, virou lugar-comum dizer que a cor da pele e o CEP determinam quem pode (deve?) ou não morrer em uma guerra urbana não declarada transmitida diariamente. Mas não tem como fugir do espanto quando a história é contada a poucos metros de casa.

Em menos de 24 horas, o motoqueiro sentenciado sem acusação formal, que possivelmente já bateu em casa com alguma entrega, por pouco não se tornou vítima da mesma truculência que matou, dias antes, Genivaldo Santos e os "suspeitos" da Vila Cruzeiro. Todos eles tiveram a pachorra de nascer e viver do lado errado — o lado para fora dos muros hipervigiados. Para o Estado, era uma multidão de "nenhuma pessoa real envolvida".

Os donos da casa ao lado dos meus pais estavam viajando para a Europa quando a polícia bateu à porta. Quando voltarem, se é que voltarão, poderão responder pelas acusações da forma prevista em lei.

No Brasil, país que transformou direito básico em privilégio, a injustiça é quase parte da paisagem. Quanto mais próxima, mais pulsa e menos choca. Nunca é demais lembrar o que dizia a multidão em fúria após o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos: sem justiça não há paz.