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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

No Dia da Liberdade de Imprensa, mundo cobra notícias de Bruno e Dom

O jornalista inglês Dom Phillips, colaborador do jornal The Guardian, e o indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira  - Foto@domphillips no Twitter e Bruno Jorge/ Funai
O jornalista inglês Dom Phillips, colaborador do jornal The Guardian, e o indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira Imagem: Foto@domphillips no Twitter e Bruno Jorge/ Funai

Colunista do TAB

07/06/2022 12h33

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Jacaré, onça-pintada, lobo-guará e sucuri são alguns dos habitantes com os quais podemos topar durante uma incursão pela Amazônia. O mais perigoso deles tem pele, unha e capacidade de manusear artefatos de guerra.

Também é capaz de se comunicar por meio de cartas como a endereçada recentemente à Unijava (União do Vale do Javari) com ameaças ao coordenador da entidade, Beto Marubo, o Beto Índio, e ao então servidor da Funai (Fundação Nacional do Índio) Bruno Araújo Pereira.

"Sei que quem é contra nós é o Beto Índio e o Bruno da Funai, quem manda os índios irem para área prender nosso motores e tomar nosso peixe. Só vou avisar dessa vez, que se continuar desse jeito, vai ser pior para vocês. Melhor se aprontarem. Tá avisado."

O bicho homem se referia na missiva a uma ação acompanhada pelo servidor da Funai para apreender materiais de pesca, caça e dezenas de quilos de peixe e tracajá, uma espécie cágado cobiçado da região, segundo o jornal O Globo, que teve acesso à carta.

No último fim de semana, Bruno Araújo Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips desapareceram após serem vistos na comunidade São Rafael, em direção a Atalaia do Norte. Antes, a dupla havia visitado uma equipe de vigilância indígena localizada às margens do Lago do Jaburu, onde Dom realizou entrevistas com indígenas.

Eles teriam um encontro com o líder de um grupo de pescadores no domingo (5). Mas o pescador, conhecido como "Churrasco", não apareceu. No dia seguinte, ele foi levado à delegacia com outro pescador para prestar depoimento.

Dom estava no local para dar sequência às apurações de seu livro "Como Salvar a Amazônia?", que começou a escrever em 2021.

Especialista em temas ambientais, ele é colaborador frequente de diversos veículos, entre eles o britânico The Guardian. Foi um editor do veículo inglês que chamou a atenção para o sumiço de seu repórter freelancer. Desde então o mundo todo volta os olhos para cá à espera de notícias e respostas.

As buscas pelo jornalista e o servidor da Funai mobilizam militares, diplomatas e entidades de defesa dos direitos humanos. Ainda assim, com demora. Na segunda-feira, um dia crucial havia se passado e as autoridades brasileiras ainda não haviam disponibilizado nenhum helicóptero para tentar encontrar a dupla, como lembrou a jornalista Eliane Brum no Twitter.

Também pela rede social, correspondentes estrangeiros se mostraram indignados com uma nota emitida pelo Comando Militar da Amazônia dizendo que só poderia iniciar as buscas após serem acionadas pelo Alto Comando do Exército.

Segundo o site Terras Indígenas do Brasil, na região onde a dupla desapareceu habitam 26 povos, a maioria isolados, em uma área de 8.544 mil hectares. A população estimada é de 6.317 pessoas.

Exploração de recursos e pressão fundiária estão entre os riscos potenciais provocados por madeireiros, caçadores, pescadores e fazendeiros da região, de acordo com a entidade.

No fim de 2021, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) registrou um pico de calor na região, provavelmente ocasionado por queimadas.

Em julho de 2019, uma base da Funai em uma das estradas do santuário ecológico foi atacada a tiros, provavelmente de espingarda, por caçadores clandestinos.

Mais recentemente, em dezembro último, a Unijava denunciou uma invasão de garimpeiros a uma comunidade de sua terra indígena. Os invasores são suspeitos de abuso sexual após forçar os moradores a beber gasolina e álcool misturados a água e suco.

Os denunciantes pediam ajuda das autoridades e temiam sofrer represálias.

Em fevereiro, o Instituto Escolhas divulgou um estudo segundo o qual metade do ouro produzido e exportado no Brasil tem origem ilegal.

O avanço por terras protegidas tem o endosso do governo federal, que tem pressionado e sucateado os órgãos de fiscalização, atacado direitos dos povos indígenas, como os previstos no marco temporal, acolhido o lobby de exploradores com recepções calorosas nos ministérios e com a publicação decretos para estimular o desenvolvimento da chamada "mineração artesanal" — um nome bonito para legalizar o que hoje é crime.

É este caldo que Dom e outros jornalistas em incursão pela Amazônia tentavam mapear.

Em comum, ele e a área de sua cobertura têm sido alvo de ataques constantes de grupos empoderados pela política antiambiental implementada em Brasília, e de modo mais descarado, nos últimos anos.

Bruno não estava em missão no Javari pela Funai porque havia sido exonerado do cargo de coordenador da entidade justamente por contrariar o governo após uma ação que destruiu equipamentos, apreendeu um helicóptero e expulsou garimpeiros de outra terra indígena, a Ianomâmi, de acordo com o perfil colaborativo Fiscal do Ibama no Twitter.

O sumiço dele e do correspondente inglês colocou os olhos do mundo sobre duas profissão de risco em uma região atravessadas pela violência justamente no Dia Nacional da Liberdade de Imprensa, celebrado na terça-feira (7) por meio de uma campanha idealizada por diversos veículos, entre eles o UOL.

A campanha pede justamente uma reflexão sobre a importância do acesso à informação de qualidade e a defesa da integridade de jornalistas que sofrem, de forma cada vez mais frequente, com ataques e ameaças ao exercício da profissão.

Enquanto escrevo — tenso com as notícias vindas do Norte e com as mensagens de hostilidade dirigidas a mim e minha família quase diariamente pelas redes sociais — ainda não havia notícias sobre o paradeiro de Bruno e Dom. Quem conhece Bruno garante que ele sabe os caminhos da mata como a palma de sua mão e não se perderia facilmente.

A torcida é para que voltem logo para suas famílias e sigam a luta para registrar o que acontece em uma região transformada em área inóspita pela ação humana. Pela Amazônia morreram na luta nomes como Chico Mendes, Dorothy Stang, José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, entre tantas outras lideranças ambientais.

Tudo o que a região e o jornalismo profissional não precisam neste momento é de novos mártires.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL