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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Luva de Pedreiro é jovem, negro, talentoso, e vulnerável no país de ?sinhô?

O influencer Iran Ferreira, conhecido como Luva de Pedreiro - Foto: Reprodução/YouTube
O influencer Iran Ferreira, conhecido como Luva de Pedreiro Imagem: Foto: Reprodução/YouTube

Colunista do UOL

08/07/2022 04h01

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Comecei um trabalho novo nas férias de julho.

Além de jornalista freelancer, agora sou o filmmaker oficial do meu filho. Sem aula, ele passa parte do dia me cobrando para capturar, com uma câmera de smartphone, os melhores momentos de seus chutes a gol.

Quando acerta o ângulo, é fatal: ele e os amigos correm alucinados gritando "receba", "obrigado, Deus", "sou o melhor do mundo" etc.

Por onde andamos, é quase nula a chance de alguém mandar a bola no gol e não imitar as falas e trejeitos de Iran Ferreira, o Luva de Pedreiro. E não é só aqui. Aos 20 anos, o rapaz de Quijingue, na Bahia, é um sucesso — o melhor do mundo, graças a Deus, pai.

Em pouco tempo, ele fez de suas redes uma vitrine de 15 milhões de espectadores. Qualquer empresa sairia no tapa para expor sua marca ali.

Tudo isso com vídeos curtos, gravados em um campo esburacado, e uma fala tão espontânea quanto frenética.

Mesmo com uma multidão de fãs como testemunhas, Iran não passou ileso de um destino comum a jovens como ele. Esse destino pode ser visualizado em obras como "7 Prisioneiros".

Em cartaz na Netflix, o filme conta a história de sete rapazes negros que deixam suas famílias, nas áreas rurais do interior, atraídos por uma proposta aparentemente irrecusável de trabalho na cidade grande.

No galpão onde terão a mobilidade vigiada, seus documentos são apreendidos já na entrada pelo patrão interpretado por Rodrigo Santoro. Endividados para pagar comida e hospedagem, passam a viver assim em situação análoga à escravidão.

Guardadas as proporções, há um país inteiro a ser investigado quando um talento com potencial de gerar milhões desperta nos novos donos de engenho o desejo de uma apropriação. Como se aquele corpo ainda lhes pertencesse.

Quando anunciou o rompimento com Allan Silva Jesus, seu antigo empresário, Luva de Pedreiro reclamou por não conseguir fazer nada do que queria. Não podia sair com amigos, gravar os vídeos de seu jeito nem postar as músicas que gostava. Ele foi proibido até de participar de uma festa de São João em sua cidade no interior da Bahia.

Seus documentos, como RG e passaporte, estavam nas mãos de seu então agente, com quem afirma ter assinado um contrato sem a supervisão de um advogado.

Em entrevista ao "Fantástico", da TV Globo, ele disse que seus pais não poderiam opinar sobre as cláusulas, já que mal sabem ler.

Os detalhes desse contrato são um mistério. Uma liminar obtida na Justiça por seu antigo empresário impediu a divulgação dos termos ou de qualquer menção ao seu nome.

Desde que aceitou a proposta aparentemente irrecusável de gerenciamento de carreira, e mesmo tendo protagonizado campanhas e atuado como comentarista de partida oficial, Iran diz ter movimentado apenas R$ 8.000 em sua conta bancária até hoje. "Todo o dinheiro que eu pedi, eu pedi emprestado. Até tô devendo 70 conto (para) um cara lá que eu comprei a bola", disse na TV.

O empresário alega que não repassou os valores dos contratos de publicidade porque eles ainda não foram pagos.

Em entrevista à repórter Beatriz Cesarini, no UOL, o novo agente do influencer disse ter sido procurado com um pedido de socorro. Apesar do sucesso, Iran e sua família seguiam vivendo em situação de extrema pobreza e sem auxílio.

Dá para imaginar?

Dá. Estamos, afinal, falando das relações de trabalho sobrepostas em um campinho de terra esburacado e atravessado pela marca da escravidão. Ela se atualiza mesmo com as ferramentas de trabalho digitais mais contemporâneas.

No filme "A balada de Buster Scruggs", faroeste dirigido pelos irmãos Coen, um jovem artista talentoso percorre o velho oeste com seu empresário quieto e protetor. Suas apresentações levam encanto a plateias emocionadas por sua capacidade de recitar Shakespeare, Abraham Lincoln e Percy Shelley de cabeça.

O detalhe é que o personagem não tem pernas nem braços. É guiado e precisa de seu empresário, responsável por recolher o dinheiro da plateia, até para se alimentar.

Quando o sucesso escasseia, o condutor interpretado por Liam Neeson nota a animação de outra plateia com uma galinha que sabia fazer conta. Comprada dos antigos donos, a nova atração, transportada em uma gaiola, passa a dividir a carroceria com o orador.

É quando o jovem artista percebe que ele e o animal estão igualmente aprisionados. Ele em breve será arremessado à própria sorte (desculpa o spoiler).

O jovem do filme é a alegoria perfeita de uma relação que muitas vezes se resume a uma grande espoliação. Ou não é isso o que atletas, bem (poucos) ou mal (muitos) remunerados, denunciam ao se queixar de uma rotina de concentrações, viagens, renúncias e sacrifícios para levar diversão e entretenimento ao respeitável público? Quantas vezes essa plateia não entra em campo como cúmplice e testemunha das sentenças mais draconianas aplicadas quando quem nos diverte ousa se divertir?

De maneira involuntária, Luva de Pedreiro se tornou também uma alegoria de quem foi podado e trancafiado na gaiola antes de ser convencido a cantar como queriam seus senhores.

Seu drama, que felizmente parece perto do fim, não é individual. Está inserido na mesma estrutura de expropriação de trabalho e talento para concentrar diversão e riqueza aos grupos de sempre.

Riquezas, como diz a música, podem até ser diferentes. Mas seus detentores, via de regra, não possuem mais do que 50 tons de branco.