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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Em restaurante de bolsonarista, clientes ignoram entrevista do 'mito' ao JN

Coco Bambu em shopping de Campinas (SP) - Matheus Pichonelli
Coco Bambu em shopping de Campinas (SP) Imagem: Matheus Pichonelli

Colunista do UOL

22/08/2022 23h58

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A entrevista de Jair Bolsonaro ao Jornal Nacional, nesta segunda-feira (22), foi anunciada como uma espécie de luta do ano. Era a volta do agora presidente à emissora sobre a qual passou os últimos três anos e meio se referindo como "GloboLixo".

Como torcedores de uma partida de futebol, os espectadores que estavam nas ruas precisavam escolher bem o local onde assistir à peleja. Por que não em uma das muitas unidades do Coco Bambu, rede de restaurantes cujo proprietário é uma das estrelas de um grupo de empresários bolsonaristas do WhatsApp que, há poucos dias, segundo o portal Metrópoles, defendia um golpe de Estado caso o atual presidente não se reeleja em outubro?

Em um shopping de alto padrão de Campinas (SP), os letreiros do restaurante pareciam um convite à trincheira. Não deveria ter lugar melhor para acompanhar o momento em que Bolsonaro fuzilaria com os olhos os apresentadores William Bonner e Renata Vasconcellos, certo?

Mais ou menos.

A arquitetura do restaurante estava mais para bunker do que para trincheira. Da entrada, os clientes são acompanhados em direção a uma área restrita, um andar abaixo, onde ficam protegidos de eventuais olhares curiosos de quem circula pelo centro comercial.

Para uma noite fria de segunda-feira, o salão principal até que estava movimentado.

Casais degustavam as iguarias da rede cearense à base de camarão.

Clientes no restaurante Coco Bambu - Matheus Pichonelli - Matheus Pichonelli
Clientes no restaurante Coco Bambu
Imagem: Matheus Pichonelli

Aniversariantes sopravam velas trazidas sobre um bolo improvisado, entregue com direito a parabéns — numa entonação um tanto mais discreta do que as tradicionais cantorias do vizinho Outback Steakhouse.

Em uma das mesas, um jovem com cabelo undercut, uniforme esportivo e pinta de jogador de futebol parecia negociar os termos de seu futuro com um empresário de sotaque lusitano.

Perto dali a conversa entre amigos girava em torno de investimentos.

Já à entrada alguma coisa parecia fora da ordem. Dos recepcionistas aos garçons, passando pelos bartenders, todos ali usavam máscaras, aquele acessório escorraçado pelo presidente desde as primeiras horas da pandemia de covid-19.

Nas mesas de madeira enfeitadas com jarros de flores não havia bandeiras que remetessem às cores sequestradas pelo capitão. Não havia cartazes em estilo outdoor em defesa dos valores pátrios, contra o comunismo e a ideologia de gênero.

O espetáculo parecia reservado a alguma das TVs instaladas entre as mesas e o bar. O destaque era o camarão no azeite com tomate seco anunciado em looping.

Às 20h30, horário previsto para o início da entrevista, ninguém parou para tocar o hino nacional. Em vez disso, o que começou a tocar foi o violão de um cantor solitário, numa espécie de gaiola do segundo andar de onde o som era enviado para todo o recinto.

Enquanto Jair Bolsonaro entrava em campo, os clientes conversavam animados ao som de "Fogo e Paixão", de Wando.

Os televisores seguiam anunciando os pratos de destaque do chef. Ninguém cruzou um mísero talher para interromper o jantar e acompanhar o tão esperado embate.

Com exceção de um cliente.

Diante da negativa do garçom em colocar uma das TVs na transmissão, o jeito foi pedir a senha do wi-fi e acompanhar a peleja pelo tablet.

Entre a guarnição de creme de mandioquinha e o filé de tilápia com crosta de pão de alho e pesto de rúcula, Jair Bolsonaro dizia que não teria problema em respeitar o resultado das urnas, desde que as eleições fossem limpas e transparentes ao seu gosto.

Perto da única mesa onde o capitão discursava, os garçons — simpáticos, bem treinados e aparentemente e imunes às paixões do chefe — se entreolhavam, confusos.

Na mesa atrás, um rapaz de roupas casuais batia no ombro do amigo para mostrar a tela onde o presidente protagonizava as primeiras patadas.

Era como se os ocupantes das mesas vizinhas pensassem: "O que esse cara tem na cabeça?"

"Esse cara", no caso, era o cliente que tentava jantar assistindo à entrevista do presidente ao Jornal Nacional.

Havia muitas razões para alguém ir até um restaurante chique numa segunda-feira à noite, afinal. Política não estava no menu.

Se, em alguns estabelecimentos comandados por bolsonaristas fanáticos, o apoio ao atual presidente é explícito em cores e slogans — caso das lojas Havan —, no Coco Bambu uma coisa parecia uma coisa, e outra coisa, outra coisa.

No restaurante-símbolo da causa bolsonarista, é possível dizer que só se falava de outra coisa enquanto Bolsonaro fazia seu discurso de sempre, de olho em seus apoiadores-raiz. Talvez ele não tivesse o voto de metade dos clientes do local.

Desde que vazou a lista dos empresários animados com um golpe de Estado, o restaurante virou alvo de grupos indignados que prometiam boicote aos traidores. Apesar disso, o restaurante segue bem, obrigado, longe das batalhas travadas nos campos digitais. Ali as únicas panelas que batiam eram as da cozinha.

As pessoas naquela sala de jantar estavam ocupadas apenas em nascer e comer em paz.

Ao fim da entrevista, a música que tocava era "Piano na Mangueira", parceria de Tom Jobim com o lulista declarado Chico Buarque.

Ali, nem o golpe nem a revolução serão televisionados.