Topo

Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Você sai dos grupos para não discutir política, mas eles não saem de você

Deputado bolsonarista Douglas Garcia ataca verbalmente a jornalista Vera Magalhães - Reprodução
Deputado bolsonarista Douglas Garcia ataca verbalmente a jornalista Vera Magalhães Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

18/09/2022 04h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Uma eleição nunca é igual à outra.

Em 2010, as redes sociais ainda engatinhavam e não havia tantas câmeras de celulares para testemunhar um ataque com bolinhas de papel e fita crepe sobre um candidato a presidente. Era preciso chamar o perito Molina para atestar a (não) veracidade da agressão.

Das bolinhas de papel aos ataques de fezes por drones, parece que regredimos um tanto à medida que a tecnologia avançava.

Uma cena do debate promovido pelo UOL, em parceria com a TV Cultura, com os candidatos ao governo de São Paulo na terça-feira (13), mostra como ficamos idiotizados desde que os celulares passaram a registrar e modular nossos afetos políticos.

Com um smartphone, um candidato a deputado federal gravou o seu insulto contra a jornalista Vera Magalhães. A ideia era obter imagens da agressão e espalhá-las como herói pelas redes. Em volta, uma pequena multidão se aglomerava passivamente com outros celulares em mãos.

Até que o jornalista Leão Serva cortou a cena e tirou os espectadores ao redor do sono profundo. Como? Arremessando o aparelho do agressor para longe, como se precisasse lembrar que aquilo tudo era um grande absurdo. Como diz a música, o real resiste.

Cenas do tipo, de agressão e violência, são as marcas da disputa eleitoral deste ano.

Se na última campanha amigos e familiares racharam numa guerra de narrativas alimentadas por bobagens enviadas diariamente para nossos celulares, neste ano é difícil encontrar quem tenha ainda qualquer disposição para brigar por qualquer ideia. Como a água estava suja de sangue desde 2018, optamos agora por jogar fora a banheira e seus habitantes pelo ralo.

A apatia de hoje é o efeito rebote da paixão levada ontem ao extremo.

A consequência mais evidente disso é o medo apontado por uma pesquisa recente do Datafolha, em parceria com a Rede de Ação Política pela Sustentabilidade e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo o levantamento, 67,5% dos entrevistados têm receio de serem agredidos fisicamente por sua escolha política ou partidária. É nesse clima que vamos às urnas daqui a menos de duas semanas.

Pudera: um dos lados da disputa está armado até os dentes, sob incentivo e a bênção do atual presidente.

Quem não se dobra a esse projeto já não sabe, ao entrar numa casa ou loja de departamento enfeitada com as cores da bandeira, se está acessando um território do contraditório ou contratando um risco à própria segurança. A reação natural é recuar. Ninguém quer virar notícia no dia seguinte.

Chico Buarque cantou que a raiva era filha do medo e mãe da covardia. O esgotamento, e esse é um grifo meu, é seu neto. Chego a ter saudade dos tempos em que sentia raiva.

Quatro anos de bolsonarismo, somados aos anos anteriores em que seu caldo foi engrossando, não azedaram apenas as relações com aquele parente preconceituoso que agora é um preconceituoso com selo de virtude. Azedou quem se indigna com gente do tipo.

Repara: o cidadão que não perdeu a capacidade de se indignar virou o chato de galocha com quem ninguém mais aguenta conversar. Geralmente é aquele sujeito que se rebelou com uma regra básica de qualquer grupo de WhatsApp: "Aqui não falamos de política; da última vez o seu Antônio perdeu um olho".

Não porque política, de repente, virou um assunto incompatível com uma mesa de bar montada à sombra de um sábado à tarde. Mas porque hoje envolve uma visita a nossos medos mais enraizados de aniquilamento.

Eu mesmo, por cansaço, fiz questão de sair de todo grupo em que política era o prato principal dos assuntos de todo dia.

Fiz isso por sobrevivência e algum respeito à saúde mental: trabalhando com o tema há quase 20 anos, chegava em casa, ao fim do dia, e me via atolado em dezenas, às vezes centenas, de mensagens indignadas com a última barbaridade de Bolsonaro e à espera de uma opinião — nem que fosse sobre a opinião de alguém.

Me sentia um açougueiro que passou o dia cortando carne e chegava em casa sem qualquer disposição fatiar o próprio bife.

O problema é que você sai dos grupos, mas os grupos não saem de você. Tem sempre um amigo ou colega que por alguma razão precisa sempre compartilhar no privado a sua indignação com o mundo, com o fim dos tempos, com os amigos em comum que não entenderam os perigos do apocalipse etc.

Um amigo que não suporta receber toneladas de notificações e opiniões não solicitadas por minuto em seu celular outro dia perguntou: será que meu silêncio a cada nova mensagem já não é suficiente para sinalizar que não quero conversar sobre o assunto? Será que o único assunto que temos em comum com os amigos agora é um assunto digno de indignação? Ninguém mais liga ou escreve para dar uma mísera boa notícia, com um mísero bom presságio que seja? Nem que seja pra dizer que o filho de alguém nasceu? Que o gatinho da vizinha finalmente voltou pra casa?

Não tenho respostas. Ando (andamos) esgotado demais para isso.

O ar rarefeito das últimas semanas de eleições me deixou como um personagem de Juan Rulfo em "Chão em Chamas" que a certa altura sentencia: "Nenhum de nós diz o que pensa. Já faz tempo que se acabou a nossa vontade de falar. Acabou com o calor. Eu mesmo conversaria à vontade em outro lugar, mas aqui dá trabalho. Aqui a gente fala, e as palavras ficam quentes quentes dentro da boca por causa do calor que faz lá fora, e vão se ressecando na língua da gente até a gente ficar sem fôlego. Aqui as coisas são assim. Por isso ninguém fala".

Triste o país que desaprendeu a conversar. E desaprendemos a conversar não porque falamos demais, mas porque falamos de menos desde os tempos em que éramos calados pela ditadura e seus herdeiros.

Deveríamos debater sobre esse assunto durante horas. Mas aqui ninguém diz o que pensa. Já tem um tempo que acabou nossa vontade de falar.