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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que abrimos as comportas do preconceito em tempos de eleição?

Alexandre de Almeida/Arquivo pessoal
Imagem: Alexandre de Almeida/Arquivo pessoal

Colunista do UOL

09/10/2022 04h01

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Na reta final de mais uma eleição, me lembrei que estou há exatos quatro anos sem falar com a pessoa que um dia foi a minha melhor amiga na escola.

Já andávamos afastados, é verdade, mas tudo ficou impraticável depois que ela decidiu demonstrar em público sua frustração pelo resultado do primeiro turno das eleições de 2018, quando o apoio em massa dos eleitores do Nordeste ao candidato petista Fernando Haddad impediu a vitória de Jair Bolsonaro já no primeiro turno.

A postagem dizia algo como: "Votam no PT e depois vêm pedir emprego em São Paulo".

Ela não foi a única a postar mensagens do tipo. Nem foi a única que me levou a apertar o botão "desfazer a amizade" no Facebook e limar qualquer contato que nos ligava desde então. Naquele dia, se me lembro bem, o dispositivo foi acionado em pelo menos dez ocasiões.

A razão do meu espanto não foi o que ela pensava ou deixava de pensar sobre um candidato ou partido político. Eu poderia ficar aqui falando durante horas sobre os problemas e contradições de cada um deles. O problema é quando usamos uma posição partidária (ou antipartidária, no caso) para referendar um preconceito de classe, de origem, de raça, do que for.

Divergência política é parte do jogo. Mas a cada quatro anos essas discordâncias abrem uma fenda que não separam apenas orientações divergentes, mas formas inconciliáveis de encarar o mundo. Você sentaria à mesa com uma pessoa assumidamente antissemita, que nega o Holocausto?

Teria coragem de dizer que a pessoa tem essas ideias polêmicas, mas no fundo é gente boa, não fala nada daquilo de coração?

A mesma régua de distanciamento social vale para quem, de quatro em quatro anos, decide sublimar a frustração com uma caça às bruxas: o primo gay que de repente se transforma numa aberração que quer destruir o modelo de família tradicional, o amigo defensor do fim à guerra às drogas confundido com garoto-propaganda de paralelepípedos de crack, a vizinha da umbanda acusada de "magia negra".

Ataques do tipo são recorrentes em uma sociedade que desaprendeu a lidar com derrotas — nem as dos planos pessoais nem as dos delírios coletivos. O período eleitoral é propício a isso.

É nessas horas que o segundo colocado joga fora a medalha de vice, maldizendo tudo à sua volta. No Brasil, a Geni da vez, e não é de hoje, é a região Nordeste — que, nas últimas eleições para presidente, tem demonstrado um desalinhamento político evidente com o restante do país. Esse "restante do país" tem na capital do estado mais rico um lema ilustrativo da situação: não sou conduzido, conduzo. E isso explica muita coisa.

Quando alguém começa a manifestar sua insatisfação com os votos de boa parte do país de alguma forma tira do armário o espírito do senhor de escravos atualizado em pose de patrão e de patroa: aquele que se autodenomina o "centro" de onde irradia todo o poder sobre corpos e subjetividades. Quem desobedece que vá pra rua — ou pra Cuba.

É como se o Brasil inteiro fosse um grande condomínio no qual os sinhozinhos combinam de não dar panetone no fim de ano para o porteiro porque ele não votou como os empregadores.

Essa conversa já estava à mesa em eleições anteriores. A corrente do "não dê panetone ao porteiro" já circulava por e-mail antes mesmo de a ultradireita virar modinha no país.

Só não dá para dizer que as coisas melhoraram de lá pra cá. Pelo contrário: a arrogância ficou ainda mais escancarada.

Aquela minha amiga afastada do meu círculo social é na verdade uma multidão, como mostrou uma reportagem recente da Folha de S.Paulo.

"Nós geramos empregos, pagamos impostos e gastamos nosso dinheiro lá no Nordeste. Não vamos mais ao Nordeste dar o nosso dinheiro para quem vive de migalhas", disse em vídeo uma advogada e vice-presidente da OAB em Uberlândia (MG).

"O Nordeste deveria parar para pensar que quem vai lá e sustenta o turismo somos nós brasileiros que trabalha (sic) de verdade", postou uma dentista do interior de Rondônia.

"Não conheço o Nordeste e não quero conhecer. Deus me livre desse lugar de gente horrorosa", atacou uma advogada de Bragança Paulista (SP).

O pior é que todo mundo conhece um amigo ou parente que fala exatamente a mesma coisa, com a taça e os dedinhos levantados para cima, quando sente estar entre os "seus". Alguns, trabalhados no ódio e na certeza da impunidade, só perderam o filtro e correram para ostentar a própria pobreza de espírito nas redes — além, é claro, da ignorância de quem não reconhece, nem quer reconhecer, as potencialidades de uma região rica e diversa que não se encerra em estereótipos.

O próprio presidente Jair Bolsonaro (PL), que passou a vida associando política distributiva a voto de cabresto, abriu a carteira para engordar o Auxílio Brasil e recebeu um sonoro "não" de quem avisou pelas urnas que suas convicções não estão à venda. Ele agora prefere associar a botinada ao suposto analfabetismo de quem o despreza.

Como disse o historiador Severino Vicente, da Universidade de Pernambuco, na reportagem da Folha, os ataques à população nordestina em tempos de eleição revelam um esforço de reduzir e negar ao outro o direito de ser quem ele é e dizer que "só interessa aquilo que é parecido comigo". "O preconceito é filho da deseducação, daquele que não abre a cabeça (quando) observa o mundo".

Quando alguém decide expurgar seus demônios nas redes, é apenas sobre si que está falando.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL