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'O Talibã levou tudo que eu tinha': família afegã conta sua saga no Brasil

Num pequeno hotel, a família de refugiados de Cabul encara a nova vida na maior metrópole da América do Sul - Fernando Moraes/UOL
Num pequeno hotel, a família de refugiados de Cabul encara a nova vida na maior metrópole da América do Sul Imagem: Fernando Moraes/UOL

Claudia Castelo Branco

Colaboração para o TAB, de São Paulo

05/10/2022 04h01

"O Talibã levou tudo que eu tinha", desabafa o afegão de 43 anos. É um homem elegante, de cabelos pretos, barba curta e postura altiva. No dedo, um grande anel de ouro. "Obrigado por nos receber. O Brasil é o melhor lugar do mundo", diz. Acompanhado da esposa de 38 anos e cinco meninas, desembarcou no aeroporto de Guarulhos em meados de setembro, com visto de acolhida humanitária.

Cinco crianças é um número comum para a maioria das famílias no Afeganistão — um país onde as mulheres passam boa parte da vida adulta grávidas na tentativa de ter um menino. Numa cultura em que ser mulher significa ser vista apenas como mãe, filha ou irmã, a tomada do poder pelos talibãs e sua visão fundamentalista do Islã trouxe restrições ainda mais severas para as afegãs — que passaram a sofrer ameaças de violências e foram impedidas de ir à escola.

A reportagem do TAB encontrou a família afegã dias depois de sua chegada ao quarto de um pequeno hotel em São Paulo. Os nomes e detalhes que poderiam identificar a família, como datas e localização, foram omitidos para a proteção dos refugiados.

Traduzindo tragédias

Usando o Google Tradutor do celular para se comunicar em português, a mãe e o marido lembram as ameaças de estupro feitas a ela e às filhas pelos talibãs. "Estamos muito gratos por você estar aqui", dizem. O quarto simples tem quatro camas de solteiro. Em uma delas estão duas bonecas e um urso de pelúcia, brinquedos das filhas mais novas — que, naquela tarde, tinham saído para brincar com filhas de uma integrante da rede humanitária da brasileira Swany Zenobini, 29, ativista do enfrentamento contra tráfico humano.

"Ela [Swany] tem um coração bondoso e queremos escrever um livro sobre seu amor em língua brasileira", diz a filha mais velha, uma adolescente de 17 anos, de cabelos castanhos na altura dos ombros, que consegue se comunicar em inglês.

Família imigrante do Afeganistão em SP - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
O pai usa o Google Tradutor para contar a sua história à reportagem
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Tragédias são tão comuns nas vidas dos afegãos que eles não se incomodam de compartilhar suas histórias. É como Jenny Nordberg, autora do livro "As meninas ocultas de Cabul", escreveu: no Afeganistão não há nada certo além do céu acima e da morte ao final.

Receptiva, a família oferece suco, água e uma bacia de pistaches à reportagem — não aceitar é considerado falta de educação. "Você gosta?", pergunta a mulher enquanto descasca a semente consumida tradicionalmente em seu país de origem. Ao lado, o pai concentra-se em digitar no tradutor seu relato em persa. Minutos depois, ele exibe o texto traduzido de um jeito confuso para o português.

Família imigrante do Afeganistão em SP - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Na cama do hotel, os brinquedos das duas filhas menores
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Fuga de Cabul

"Eu era uma autoridade de segurança de um ministério quando o país foi mais uma vez tomado pelo Talibã. Estava em casa, preocupado, quando o novo regime entrou ameaçando estuprar minhas filhas e me matar. Naquele momento, todas as fronteiras dos países vizinhos estavam fechadas para os afegãos. Havia apenas uma maneira de sair: pela província de Kandahar, distrito de Boldak."

O relato prossegue: "Um senhor nos ajudou a atravessar a fronteira para o Paquistão até chegar a notícia de que o Talibã anunciara uma anistia geral para os funcionários do governo anterior retornarem ao Afeganistão. Garantiram que nossas vidas estariam seguras. Quando voltamos, nossa casa estava incendiada. Ficamos na casa de amigos em Cabul. Mais tarde, conseguimos permissão para entrar no território do Paquistão onde ficamos por nove meses."

Nesse período, a família recorreu à Embaixada brasileira em Islamabad e entrou com pedido de visto humanitário. Foi o tempo necessário para juntar todas as suas economias e comprar as passagens — cada uma custa, aproximadamente, R$ 10 mil.

Os afegãos que conseguem chegar ao Brasil em geral tinham boa condição financeira lá. São sobretudo famílias com integrantes nos cargos de alto nível no governo. "Agora preciso de ajuda. Tenho filhas menores e estou preocupado em como posso dar abrigo, comida e roupas a elas, quando não conheço a língua brasileira."

Família imigrante do Afeganistão em SP - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
No dia 24, 38 afegãos se amontoavam no saguão do Aeroporto de Guarulhos
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Perdidos na burocracia

Em setembro de 2021, o governo brasileiro publicou uma portaria estabelecendo a concessão de visto temporário, para fins de acolhida humanitária, a cidadãos afegãos. Para pleitearem o visto, os perseguidos pelo atual regime precisaram, além de fugir para países vizinhos, organizar-se financeiramente no último ano. Por isso estão chegando só agora ao Brasil.

O atual fluxo de chegada de refugiados também se deve ao aumento recente do número de voos procedentes de países vizinhos ao Afeganistão, como a Turquia, o Paquistão e o Irã. Além disso, apenas a espera pelo visto humanitário pode levar até seis meses.

No momento, a capacidade de emissão de vistos está reduzida. "Recebemos dezenas de e-mails por dia com pedidos de pessoas que fizeram os requerimentos, mas não conseguem vagas para a entrevista", conta João Chaves, 41, coordenador do setor de Migrações e Refúgio da Defensoria Pública em São Paulo. A Defensoria fez uma recomendação para que o Itamaraty retome esses agendamentos.

Chaves ressalta o papel importante que tem sido desempenhado pela sociedade civil. Organizações como a Aprisco, Cáritas e União das Mulheres Muçulmanas no Brasil estão envolvidas com o acolhimento dos viajantes. Depois de muita pressão os refugiados alojados no saguão do aeroporto passaram a ser encaminhados a um centro de acolhimento alugado pela prefeitura na capital paulista.

"O acesso é superlimitado, com o objetivo de não expor os afegãos ao tráfico humano ou ao aliciamento", afirma o defensor. Em boas condições, o centro de acolhimento tem internet, água, quartos individuais para cada família e comporta até duzentas pessoas. "Tem gente lá com passagem já comprada para outra cidade ou país. São várias situações". A tendência, porém, é que muitos outros afegãos cheguem nas próximas semanas, já que cerca de 6 mil vistos de acolhida foram emitidos.

Família imigrante do Afeganistão em SP - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
A mãe oferece aos visitantes os tradicionais pistaches de sua terra natal
Imagem: Fernando Moraes/UOL

O TAB esteve no aeroporto de Cumbica no dia 21 de setembro. A situação, naquele início de noite, era menos crítica que a da semana anterior. Em frente ao desembarque internacional, entre a janela com vista para as aeronaves e as cadeiras, uma espécie de acampamento foi montado, onde nove pessoas permaneciam, cobertas por lonas e colchões.

Logo à esquerda, a sala identificada como Posto Avançado de Atendimento Humanizado aos Migrantes, gerido pela prefeitura de Guarulhos, é a porta de entrada do Brasil para os estrangeiros. Lá, os migrantes são informados dos seus direitos, recebem informações para a sua segurança e também quentinhas que alimentam as famílias durante a permanência no aeroporto.

Criticada por não funcionar 24 horas por dia e pela demora no encaminhamento das famílias, a prefeitura responde que "o Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante funciona de segunda-feira a domingo, das 7h às 19h e é responsável pelo atendimento emergencial dos afegãos, garantindo a segurança alimentar com marmitas no almoço e kits lanche no jantar, além de água e cobertores". E ressalta que, no quadro de funcionários, há até "um mediador cultural afegão naturalizado". No dia 24 de setembro, 38 afegãos se amontoavam no saguão do aeroporto.

Família imigrante do Afeganistão em SP - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Um quarto privativo com quatro camas de solteiro acolhe a família afegã
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Rede de apoio local

A situação das últimas semanas era esperada pela rede criada por Swany Zenobini. No dia 15 de agosto de 2021, quando o Talibã voltou ao poder no país, a ativista foi procurada por brasileiros preocupados com conhecidos naquele país. "Resolvi juntar todo mundo num grupo de WhatsApp em janeiro de 2022. Tinha advogado especialista em refúgio, empresários, jornalistas", conta Swany. "Às vezes era um contato para comprar remédios em Cabul ou um contato numa embaixada".

Relações públicas de formação, Swany é cristã protestante. Garante que não trabalha para nenhum grupo nem tem interesse em política. "É tudo voluntário", diz. Foi a ativista quem procurou a ajuda da médica cardiologista Ludhmila Hajjar, que acionou seus contatos, incluindo autoridades. A mãe de família entrevistada pelo TAB teve que passar por uma cirurgia de hemorroidas logo na chegada ao Brasil e foi tratada pela equipe de Hajjar.

No hotel, já recuperada da operação, ela mostra imagens de tempos melhores no Afeganistão. "Tínhamos uma vida ótima, muitas terras agrícolas", conta. Perdidos no idioma, sem parentes no Brasil e com a vida interrompida, eles não param de agradecer aos brasileiros, "pessoas muito gentis".

A proibição do Talibã de que meninas acima de 11 anos frequentassem a escola afetou especialmente a adolescente de 17, que agora quer voltar a estudar no Brasil. Sobre a profissão que gostaria de seguir, ela responde: "Minha mãe diz que eu tenho que ser uma mulher forte".