Reasfaltar única ligação rodoviária de Manaus com o país é esperança local
"Era top aqui. Tinha trânsito 24 horas por dia. A gente mesmo chegou de ônibus, e a estrada era um tapete." Jacira Souza, 56, descreve o ano de 1977 quando, aos 11 anos de idade, mudou-se com os pais para o poeirento distrito de Realidade, encravado à beira da BR-319, mais conhecida como rodovia Manaus - Porto Velho.
Hoje, o asfalto só resiste nas pontas desse caminho. Ao sul são 220 quilômetros pavimentados entre a capital de Rondônia e o município de Humaitá (AM). Ao norte, quase a mesma extensão entre a capital amazonense e a localidade de Careiro Castanho. Entre esses trechos, há mais de 400 quilômetros de terra que ficam intransitáveis de seis a nove meses por ano.
O reasfaltamento da única ligação da malha rodoviária nacional com Manaus, e consequentemente com Boa Vista (RR) e Caracas, na Venezuela, é a esperança da população que migrou nos últimos anos para sua margem — e é ponto de preocupação para ambientalistas e nações indígenas que vivem no coração da Amazônia.
Sua recuperação já esteve presente em planos nacionais como o Brasil em Ação (1996-1999), durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, e dos Programas de Aceleração do Crescimento (entre 2007 e 2014), das gestões de Lula e Dilma Rousseff. Agora é Jair Bolsonaro quem promete em campanha que, se for reeleito, vai asfaltar o chamado "trecho do meio", restaurando uma obra da última ditadura (1964-1985).
A estrada que sumiu
Com o lema "integrar para não entregar", os presidentes militares rasgaram a imensidão verde com estradas, sendo a mais emblemática a Transamazônica (BR-230). Em março de 1976, Ernesto Geisel inaugurou a BR-319 asfaltada em "caráter experimental". A produção da Zona Franca de Manaus passou a escoar por ali, e ônibus de passageiros vindos de São Paulo e Rio cruzavam a floresta equatorial.
As obras foram iniciadas em 1968 e a via já apresentava trafegabilidade em 1973. Mas as chuvas constantes eram o principal desafio para sua construção: o solo, após ser compactado, era coberto por quilômetros de lona para não desmanchar.
Como faltava pedra na região, camadas de cimento com argila e areia serviram de base para o asfalto. A técnica, porém, não resistiu à planície alagadiça, ao clima extremo e ao trânsito pesado. Após anos de crise econômica e falta de manutenção, no final da década de 1980 a rodovia permanecia fechada por longos períodos.
Os atoleiros se multiplicaram, pontes de madeira se deterioraram, a vegetação invadiu a via e partes soltas de asfalto foram retiradas por tratores. Ele mais atrapalhava do que ajudava quem tentava manter a velocidade.
Alguém viu um posto?
No entroncamento com a Transamazônica, as placas originais estão enferrujadas. Só forçando a vista para ler: "Manaus 640 km". Logo ao lado, um cartaz novo entre a pista e a mata anuncia a "execução dos serviços de manutenção" com prazo até outubro de 2022. Na verdade, são trabalhos para nivelar trechos e colocar cascalho e brita nos locais mais críticos da BR-319.
Em julho último, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) concedeu a autorização para pavimentar o chamado "meião". Enquanto políticos e população comemoraram, indígenas das etnias Parintintins e Apurinã, com reservas próximas à rodovia, denunciaram que não foram consultados pelo órgão, como é obrigatório por lei. Em setembro, começou o processo de asfaltamento.
"Com o asfalto, vai ter mais tráfego por aqui e mais serviço pra mim. Muitos não se arriscam porque a estrada é ruim. Se melhorar, vai virar uma rota", vislumbra o mecânico Davi Furlanetto, 52. Ele fechou sua oficina em Jaru (RO), trouxe os equipamentos em um caminhão por 584 quilômetros e abriu outra há quatro meses à beira dessa estrada de terra.
Um trator próprio para derrubada de mata está aguardando conserto. Mas Davi priorizou a picape do designer Luis Fernando Oliveira, 34, que teve a caixa de câmbio avariada, de tanto buraco e pedra que enfrentou ao sair de Manaus. "Eu e minha mulher passamos a noite no meio da mata. De manhã, um carro com trabalhadores que estão fazendo a obra na rodovia nos resgatou e viemos buscar um guincho para trazer o veículo. Essa estrada é uma vergonha. E olha que tenho vários dias pela frente até chegar em Santa Catarina", queixou-se o designer.
O "meião" tem 475 quilômetros sem um posto de combustível — levar um galão com gasolina extra no bagageiro ou na mochila é item essencial. Sinal de internet, bem oscilante, só em alguns pontos do percurso perto de antenas.
Um lugar chamado Realidade
"Devia se chamar Ilusão, porque é só o que tem por aqui", desabafa a capixaba Marta Soares, 49, que abriu há 13 anos o hotel Flor da Amazônia no distrito à margem da BR-319. "O nome Realidade é pelo sofrimento. Só fica quem tem garra."
Ela trabalhou cinco anos ali como cabeleireira para erguer a pousada feita com madeira da região e pintada de verde. "A internet chegou recentemente. Antes, tinha só um orelhão e a fila era longa dia e noite", lembra.
Água encanada a população só conheceu em 2007, quando foi aberto o poço artesiano na única escola local. "Na secura do verão, o hotel não fica limpo 5 minutos de tanto pó. E, no inverno, temos de descer para empurrar o ônibus que só patina e atola. A vida é difícil, moço." Marta diz que, "de três anos pra cá", o movimento aumentou, com as reformas na estrada. Torce para um futuro asfaltado e cheio de viajantes.
Realidade parece um vilarejo saído de algum faroeste equatorial. No meio das lufadas de poeira, aparecem as casas de madeira com placas na fachada identificando sua função: dentista, farmácia, mecânica e por aí vai. Até a floresta próxima ganha uma cor cobre, recoberta com tanto pó. Só uma chuva limparia as plantas, mas o que cai do céu são flocos de cinzas das constantes queimadas da região.
Deitada em uma rede na varanda, Iraci Brito, 82, é a guardiã do passado de Realidade. "Aqui era um acampamento de seringueiros, uma comunidade ribeirinha. Meu pai extraía borracha, açaí e castanha. A gente tomava banho no rio, até que chegou a BR e mudou tudo", conta. Persiste ainda o silêncio — sonorizado pelos pássaros da floresta —, interrompido só pelo barulho de uma motosserra ou uma moto que passa.
Madeira sem lei
O rio Madeira corre quase paralelamente à BR-319. Por suas águas, principal caminho das mercadorias entre os dois estados, o barco de passageiros demora três dias no trajeto de Porto Velho até Manaus. Pela rodovia são 22 horas de ônibus nos meses secos (de julho a setembro).
São poucos os restaurantes e as placas na estrada federal. Mas todos estão repletos de adesivos de grupos de motoqueiros que querem registrar suas aventuras. Em um deles, a carne de caça, seja anta ou paca, é o prato principal. Caminhoneiros transportando cavalos de raça de Goiás até Roraima param para experimentar.
Com os pés estirados na janela de seu carro, o mineiro José Luis França, 61, cochila depois do almoço. No porta-malas, ele traz de sua cidade, Uberlândia (MG), um estoque de botinas de couro e solado grosso de borracha. "Eu tenho que vender onde tem barro, onde tem mata. Trabalho aqui há 15 anos. O pessoal daqui não acha fácil esse produto", conta França, que descobriu esse nicho de mercado quando era caminhoneiro e passou por ali.
Placa vendendo fazendas, chácaras e terrenos aparecem em qualquer poste ou cerca. Com a notícia do futuro asfaltamento, grileiros e posseiros se multiplicaram para ocupar com documentos precários as terras do entorno da rodovia.
Além de parques nacionais, reservas extrativistas e aldeias indígenas, a área possui 29 glebas federais, e um projeto do atual Ministério da Economia quer regularizar as ocupações particulares para viabilizar economicamente a pavimentação da BR-319. Nesses territórios, há indícios de grilagem (documentação falsificada) de, pelo menos, dois fazendeiros.
O temor é que a pavimentação acelere o desmatamento, como é regra na Amazônia. O distrito de Realidade tem cinco serrarias, mas apenas uma está operando. "O manejo legal da madeira já terminou na região. Por isso, está tudo parado. E a logística para trazer madeira de mais longe é muita cara", afirma Sidney Poletini, 64, que há dez anos veio de Rondônia para montar uma serraria.
"Não ter asfalto prejudica o povo daqui, mas não é só isso. É preciso um plano de desenvolvimento. Hoje quem está derrubando a mata é pecuarista, desperdiçando árvores que apodrecem na chuva ou ficam esturricadas nas queimadas", afirma o madeireiro.
Poletini conta que foi para Realidade porque era uma cidade pequena, "sem roubos nem drogas", para morar com mulher e filha. Hoje não quer mais trabalhar com madeira e não sabe o que fazer. Por outro lado, sua plantação de açaí, depois de quatro anos, está dando a primeira safra. Bem ao lado das palmeiras carregadas do fruto roxo, vários caminhões sem placa e sem farol carregando toras dos desmatamentos ilegais passeiam pela BR-319, livres de qualquer fiscalização.
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