Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Com tanto racha, bolsonarismo virou a maior ameaça à família brasileira
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Duas faixas e uma geração inteira separam os personagens das músicas "She's Leaving Home" e "When I'm Sixty Four" no álbum "Sgt. Peppers", dos Beatles.
Pela ordem, tudo aparentemente estava em seu lugar naquele distante 1967, ano de lançamento do disco: os adultos sofriam com o amadurecimento dos filhos, e os filhos sofriam com antecedência com a perspectiva da velhice.
Os dramas e papéis estavam bem definidos em cada letra.
Os pais da primeira música acordam certo dia com uma carta de despedida da filha rebelde e se perguntam o que fizeram de errado durante a vida toda além de trabalhar duro e dar a ela tudo o que parecia ao alcance. Ainda assim, a jovem fugiu com o rapaz da concessionária, deixando na pista a conclusão de que diversão era a única coisa que os adultos de casa não poderiam comprar.
Duas faixas depois o eu-lírico de Paul McCartney inverte o olhar. Ele já não é o adulto assombrado diante da rebeldia juvenil, mas um jovem imaginando como seria a vida quando tivesse 64 anos e os cabelos caíssem (spoiler: ele já tem 80 anos e a cabeleira segue intacta). Na época ele se perguntava: alguém vai trancar a porta se ele estiver na rua em plena madrugada? Alguém ainda precisará dele? Ele, afinal, ainda pode ser útil trocando o fusível ou tirando a erva daninha dos jardins. Quem poderia pedir mais?
Não deixa de ser irônico que, passados 55 anos desde o lançamento do álbum, os jovens adultos de hoje, se por acaso disseram que dessa água jamais beberiam, estejam afogados entre tempestades em copos de água produzidas pela malcriação dos pais.
Desde o fim das eleições, tenho lido relatos de amigos preocupados com as picardias adolescentes de quem passou a andar com companhias nocivas, elegeram novos ícones e referências de autoridade como guia para a vida e decidiram sair às ruas pedindo a revolução — uma revolução de base reacionária, de trás pra frente, mas que não deixa de ser disruptiva.
Esses "adolescentes" de hoje são os sexagenários da música de ontem e os adultos preocupados, os jovens de alguns dias atrás.
Taí uma prova cabal de que o mundo virou de ponta cabeça em 2022, ano em que coube aos jovens atentos às pautas progressistas saírem em defesa de instituições como o Supremo Tribunal Federal e as urnas eletrônicas e quem está com coquetel molotov nas mãos são os velhos da história.
"Onde foi que erramos", perguntam os filhos em choque ao verem a imagem dos pais vestidos de verde e amarelo bloqueando estradas ou causando tumulto na frente dos quartéis.
Não era para ser o contrário?
No imaginário do sujeito rebelde, era mais provável visualizar um jovem incendiário, com a camiseta do ídolo pop (poderia ser Che Guevara, poderia ser Marilyn Manson) saindo por aí correndo o mundo e os perigos da vida com aquela coragem que só quem não sabe o que está fazendo é capaz de correr.
Um dia os filhos trocaram os ensinamentos dos pais pelas letras transgressoras dos ídolos do rock. No outro dia os pais parecem dar o troco.
"Eu não abandonei meu pai. Ele me trocou pelo Bolsonaro", disse uma jovem à repórter Camila Corsini ao narrar o momento em que os pais resolveram fugir de casa — a dela, no caso.
"Na cabeça do meu pai, eu sou comunista, satanista, abortista, quero o país virando uma Venezuela e quero que comam cachorro", contou a entrevistada, que pediu para não ter o nome revelado.
Histórias do tipo acontecem nas piores famílias.
A explicação para o fenômeno passa, é claro, pelas lentes da ciência política e da ascensão da extrema-direita pelo mundo. Mas passa também por um conflito geracional.
Em 1967, quando os Beatles eram jovens preocupados com a velhice, a expectativa de vida ao nascer, ao menos no Brasil, era próxima de 58 anos. Hoje é de 76,3 em média.
Junto com essa mudança, novas configurações de relacionamento e convívio familiar entram em cena. E os filhos, que amadureceram em passadas mais largas do que as gerações anteriores e talvez lidem hoje melhor com as escolhas, as incontingências da vida (inclusive as políticas), o conflito de ideias e os traumas da primeira infância, viraram os pais dos pais.
Nessa nova correlação, há tempo, vitalidade e energia de sobra para os pais reivindicarem protagonismos nos rumos de uma história que, com razão, entendem que não chegou ao fim.
A figura do rebelde, com ou sem causa, ganhou algumas rugas e agora anda com a camisa do Bolsonaro por aí.
Sem querer correr o risco de fazer psicanálise de botequim, mas já correndo, é possível imaginar que do mesmo jeito que os jovens inseguros com o futuro queriam chamar a atenção dos adultos a certa altura da vida, os pais rebeldes querem hoje chamar a atenção dos filhos pelo avesso.
Não deixa de ser uma vingança por terem ficado sozinhos em casa após os filhos tomarem rumos próprios da escada da cozinha para fora, como a personagem dos Beatles.
É como se o pedido de intervenção militar fosse na verdade um pedido de socorro para que Bolsonaro e companhia restituíssem uma ordem na qual os filhos deviam obediência aos pais e permaneciam sob suas asas pela vida toda, ou morando na mesma casa, ou evitando flertes com estilos de vida mais diversos e menos reprimidos (mais maduros?), que não reconhecem como legítimos.
A cada post dos revolucionários que botam fogo na estrada, no quartel e até na igreja é possível entrever uma chantagem mais ou menos explícita: "Filho(a), você vai mesmo passar mais um fim de semana com amigos e namorados(as) na cidade grande e fazer pouco caso do frango que já mandei assar? Vai mesmo deixar minhas mensagens de WhatsApp no vácuo? Pois então lide agora com essa vergonha: vou sair com meus amigos sim, vou ouvir aquela música que você odeia, sim, vestir aquela camisa sebosa, sim, e me sentar nesse pneu de estrada até você, seus amigos e esse país inteiro me darem um pouco de reconhecimento e atenção".
Quem diria que o bolsonarismo seria, no fim das contas, a maior ameaça à família tradicional brasileira?
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