Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Na vida adulta, todos viramos um pouco 'pais' dos nossos pais
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Em julho, meu pai passou por uma cirurgia para botar uma prótese que une o fêmur a um pedaço da bacia. Era a solução em titânio para as dores que o acompanhavam fazia um tempo e que o levavam a andar vacilando, com uma das pernas mais curta que a outra por conta de anos e anos de desgaste ósseo.
O pós-operatório, para quem não sabe, é um filme de terror B. Tem sangue, tem pele cortada, mal cicatrizada, tem gritos de dor, pesadelos constantes e noites insones.
Foram dez dias de perrengue, incluindo uma noite no hospital, até que ele conseguisse ao menos descer sozinho da cama. Subir ainda é um problema. Entre as muitas orientações do médico estava a de nunca, jamais, sentar no sofá pelas próximas semanas nem cruzar uma perna de titânio com a outra de carne e osso.
Por teimosia ou descuido, meu pai flertava com o perigo toda vez que se propunha a levantar para fazer o que queria. Foi uma das muitas inversões de papéis desde que ele atravessou a risca dos 60 anos e adentrou em uma viagem sem volta em direção à velhice: lá era eu quem deveria ficar alerta e dar a bronca em caso de desobediência.
Não era a única contraversão da estadia.
Nas tarefas mais elementares que ele já não podia tocar sozinho, como preparar o jantar, chamar os gatos para dentro de casa e tomar banho, os traços da velhice iam além da contingência momentânea.
Uma delas era a dificuldade de alguém que se cuidou sozinho a vida toda ter de, de repente, se envergonhar por pedir ajuda para vestir um simples calção, se cobrir à noite ou ensaboar as próprias costas. É uma pancada na testa da autoestima que produz um ambiente de estresse e irritação para quem se vê imobilizado de uma hora para outra.
Não faltou muito para flagrá-lo consertando alguma coisa no telhado com uma perna só. (Não sei o que acontece, mas aparentemente o telhado se transforma na Disneylândia dos homens após certa idade).
Do lado de cá das perspectivas, tentava fazer o que podia para parecer um adulto como outro qualquer. Ou seja, minha missão ali era fingir que sabia alguma coisa do que estava fazendo, pensando e falando. É o que acontece quando estamos diante de uma criança, mas também quando precisamos cuidar de quem cuidou da gente até outro dia.
Durante algumas noites, improvisei com um colchão surrado uma cama ao lado da dos meus pais. Era o que eu fazia, nos tempos de criança, quando tinha medo da noite e não conseguia dormir. Com a diferença de que naquela época ele me xingava (sorry, hoje entendo).
Passam os anos, mudam-se os medos, e o que agora apavora é a possibilidade de ele sentir dor, cair da cama ou pensar que a gata, que não desgrudava dele, pule novamente bem em cima da perna operada.
Nas muitas caminhadas lentas e calculadas em centímetros do quarto até a cozinha com a ajuda de um andador, lembrava sempre do dia em que fomos a uma festa popular, durante uma visita dos meus pais a São Paulo, onde eu morava com meu irmão, e só percebemos que havíamos atravessado um beco mal iluminado e sinistro quando chegamos ao destino.
Alguém alertou que deveríamos evitar aquela via onde se concentravam os assaltos da região. Era verdade. Provavelmente eu teria notado o design arriscado daquela travessia e dado meia volta se estivesse sozinho. Mas naquela ocasião eu estava com meu pai, e ele já não ostentava o vigor físico de outros tempos. Não é que não notei o risco. É que, com ele perto, não havia por que ter medo.
Das relações quase nunca harmoniosas e cheias de rusgas entre pais e filhos, a nossa ao menos conseguiu atravessar o tempo, e aquele beco, com a sensação inconsciente de segurança: se nada desse certo, ele saberia o que fazer. Ou pelo menos fingiu bem esse tempo todo.
Isso talvez tenha me poupado alguns anos de terapia — para compensar o trauma de não saber dirigir por culpa dele (longa história, volto a ela qualquer dia).
Essa sensação de amparo foi acionada, alguns anos depois, quando meu filho nasceu dois meses antes da hora. A notícia, junto com a internação abrupta, veio após um exame de rotina. E eu, antes de começar a pensar no que fazer nos próximos 40 dias, tempo em que o bebê nascido às pressas com apenas 1 kg passou trancafiado em uma incubadora, telefonei para casa (não a minha, a de meus pais).
"Fica calmo. Estamos indo."
Fiquei calmo. E eles vieram.
Não havia o que fazer naquele hospital onde nossa família só tinha acesso ao hall de entrada.
Numa ala reservada apenas aos pais (no caso eu e a mãe, recém-paridos) e equipes médicas, esbarrei com meu pai em área não autorizada em busca de informações sobre o neto. Não sei até hoje como ele fez para passar aquela catraca. Ele foi o primeiro a saber que o neto já estava em uma UTI neonatal, sob cuidados, mas a salvo. E juntos, naquele encontro proibido, soubemos que tudo ficaria bem.
Quase dez anos depois, era esse mantra que eu deveria repetir enquanto disfarçava os outros tantos medos que carregamos nessa fase da vida. Entre eles o de não saber o que fazer com os velhos e as crianças que não estavam no elenco original de nossas vidas até pouco tempo.
Pois hoje somos nós, os filhos, que deixamos família e trabalho em outra cidade para socorrer os pais nos perrengues. Dizem que esses perrengues só tendem a aumentar em um mundo de envelhecimento e longevidade e que essa é a boa notícia para quem sobreviveu até aqui.
Minha temporada na cidade dos meus pais me fez ficar longe por mais de uma semana, pela segunda vez em nove anos, de meu filho. Pela segunda vez, passei os dias num pico de ansiedade tomado pelo temor de que, se algo ruim acontecesse, eu não estaria por perto.
Enquanto dava um suporte básico à outra criança, a de 66 anos, não via a hora de reencontrar o pequeno e deixá-lo consumir, com seus olhinhos infantis, a mim e a tudo o que eu quis, como tem sido desde que ele chegou aos berros nesse mundo.
Na primeira visita de meus pais ao neto, lembro de ter perguntado, olhando para o berço, ele já com portentosos 3 kg adquiridos em seu spa compulsório — e e eu com a camisa vomitada —, quando é que aquela brincadeira ficaria tranquila, leve e divertida. Me pergunto até agora.
Mesmo tendo hoje um parceiro de futebol como sempre quis. (A alegria projetada aos domingos ensolarados de manhã, como se fosse as manhãs fossem uma propaganda de TV, é implodida toda vez que brigamos por um simples lateral. Com 9 anos, o danado já aprendeu como engambelar o juiz — no caso, eu. E a como me tirar do sério com um simples controle da TV).
O que os adultos não contam quando transpõem à paternidade a um cálculo de mercado ("dá trabalho, mas compensa", "é nosso melhor investimento", etc.) é que essa alegria até existe, mas se manifesta apenas como intervalo de alívio cômico, com hora para acabar, no meio de uma agenda de tensões e preocupações aos berros: "olha pra atravessar a rua", "desce dessa estante", "não bate bola aqui dentro", "solta o pescoço da cachorra", "abaixa o caralho desse som".
E, de novo, os medos se renovam, e se sobrepõem aos da criança que ainda tem paúra ao escuro. O meu é mediado pelo temor recorrente de que num vacilo ele desapareça da minha vista para sempre.
E isso exige do pai, e da mãe, uma vigília permanente. Alucinada. E cheia de paranoias.
Perto dos 40, me sinto num ponto equidistante entre duas paternidades. A de pai dos pais. E de pai do filho. As broncas às vezes são as mesmas diante de teimosias comuns, como a resistência de uns e outros a ficar em casa ou usar a máscara nos tempos mais delicados da pandemia.
Não faz muito, amigos em comum lançaram numa rede social o desafio de postar uma música que fatalmente nos leva às lágrimas. Botei para tocar "O filho que eu quero ter", que o Vinícius de Moraes confeccionou ao Toquinho, e me debulhei de verdade, como sempre, no trecho final: "Dorme meu pai sem cuidado / dorme que ao entardecer / teu filho sonha acordado / com o filho que ele quer ter".
Diz se um troço desses tem alguma condição. Ainda mais numa época assim.
Passado o apuro, e se sonhar acordado ainda é permitido, penso num ponto de chegada ilusório antes da próxima pernada, e de outra, e de outra. Mas sonho: daqui uns anos, depois de tanto penar, vejo um menino estudioso com um diploma abraçado aos amigos e aos avós e uma mensagem escrita em um cartaz: "pai, você não fez mais que sua obrigação".
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