Topo

Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Brasileiros deixaram de discutir política por medo. Tem como ser diferente?

O guarda civil Marcelo Arruda, tesoureiro do PT assassinado por bolsonarista em seu aniversário - Reprodução/Twitter
O guarda civil Marcelo Arruda, tesoureiro do PT assassinado por bolsonarista em seu aniversário Imagem: Reprodução/Twitter

Colunista do UOL

02/08/2022 04h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

De 2014 para cá, é difícil encontrar alguém que não bloqueou, silenciou nem rompeu relações com parentes, vizinhos e amigos devido a alguma conversa mais ríspida motivada por política.

A situação degringolou em 2018 e, mais à frente, durante a pandemia do coronavírus, quando até debates sobre o simples uso de máscara denunciavam predisposições políticas capazes de transformar mensagens de "bom dia" numa prévia da Terceira Guerra Mundial.

Aconteceu, acontece e está acontecendo nas melhores famílias — muito provavelmente, inclusive na minha e na sua. Com o arrefecimento da pandemia e a memória distante das últimas eleições, encontros e reencontros inevitáveis, como festas de aniversário, esbarros no supermercado e até enterro de parentes, viraram motivo de estresse e de tensão. Como demonstrar cordialidade com quem já soltou cobras e lagartos em grupos virtuais que implodiram qualquer possibilidade de convívio real?

Spoiler: abordar amenidades, como o resultado do último jogo, não funciona.

Para encontros inevitáveis, a estratégia quase sempre adotada é nunca, jamais, em hipótese alguma falar sobre as eleições passadas ou futuras. Principalmente as futuras.

Uma pesquisa recente do Datafolha colocou em números a sensação de que, nos tempos recentes, política virou assunto proibido com o cunhado e ou a tia militante. O instituto mostrou que metade dos brasileiros (49%) evita falar sobre política com amigos e familiares por conta do acirramento eleitoral nos últimos meses. O receio é ainda maior em determinados grupos sociais, como pessoas negras (60%) e homossexuais (65%).

Os dados mostram que tretas assim acontecem nas melhores famílias. Nem por isso deixam de ser preocupantes. Quem discorda é golpista.

A razão para o nível da tensão é uma contradição em termos. Parte dos problemas do país não decorre do nosso hábito de falar sobre política, mas o contrário. O que leva à conclusão de que não é a política que está levando ao acirramento das tensões — e do receio de ser alvejado em nossas festas de aniversário — mas a ignorância galopante do que seja política.

Até pouco tempo, a pessoa "política" era aquele amigo ou amiga que transitava em diferentes tribos e era admirado(a) pela capacidade de colocar gregos e troianos na mesma mesa de bar. Dela se esperava ao menos que se elegesse vereador(a), tamanha habilidade em buscar consensos — seja para encontrar um denominador comum a respeito do sabor da pizza ou coletar assinaturas do abaixo-assinado para reformar a quadra do prédio.

Nos últimos tempos, a palavra "política" passou por um processo de ressignificação. E se alguém rompeu relações por causa dela é porque ela deixou de fazer sentido.

Não é por "política" que 15% dos entrevistados pelo Datafolha dizem já ter sido ameaçados verbalmente, ou até fisicamente (7%). É por causa da falência de uma ideia de política, quase sempre baseada em personalismo e culto à personalidades, que levou ao surgimento de verdadeiras seitas que querem tudo, menos debater.

Sou um dos muitos que evitam entrar em vespeiros quando sinto que estou sendo testado a emitir opiniões e colocar em risco meu domingo de descanso ou minha integridade física. Muitos amigos jornalistas hoje evitam falar em público sobre seu trabalho com desconhecidos.

Mas reconheço que a deterioração desse ambiente é grave e não vai ser resolvido se, às vésperas da eleição, quando deveríamos discutir questões coletivas e temos a chance de medir o pulso do diagnóstico social em tempo real, optarmos pelo silêncio ou pelo trânsito livre e confortável em uma mesma bolha de torcedores. Seu primo não vai ser alertado de que a mamadeira de piroca é fake news se entre ele e você a única norma para uma existência pacífica for a lei do silêncio.

A abordagem, porém, é sempre complicada e não existe um guia para isso.

A razão que leva alguém a gostar desse ou daquele candidato é mais complexa do que supõem o apoio e a rejeição manifestados na mesma pesquisa.

Em 2018, a atriz Regina Duarte, por exemplo, usou a figura da autoridade paterna que tinha em casa para justificar o voto em Jair Bolsonaro. Não há cânone da ciência política capaz de fazer alguém refletir sobre o próprio voto quando ele é mediado por uma relação afetiva e emocional. Para ela (e para uma multidão), as críticas, mesmo as mais legítimas, contra seu candidato amado equivalem a uma agressão em sua ideia de paternidade. (Não cito esse exemplo como justificativa para nada, mas para mostrar a complexidade envolvida em uma decisão).

Há, no entanto, um campo de racionalidade que perde a chance de ser pavimentado quando a conversa é bloqueada por medo e terror.

O afastamento por receio da treta nos distancia da possibilidade de entender o que move os eleitores com quem não nos identificamos. O risco é nos distanciar da realidade e nos converter naquilo que deploramos. Não é com acusações frágeis, incompletas, deboches do tipo "eu avisei" ou falas em tom professoral que essas pontes serão reconstruídas — se é que alguém quer reconstruir alguma coisa a essa altura. Pior: quanto mais longe ficamos, mais fantasmagóricas assumem as feições de quem não entendemos.

Essa deterioração é resultado da imaturidade de uma cultura política que mal chegou à vida adulta, como muitos de nós (adultos que passamos a nos compreender como sujeitos políticos nos anos 2010) e já foi dinamitada pela infantilidade dos discursos que crescem como erva daninha nas redes sociais.

Em tempos de crise econômica, não é difícil esbarrar em sujeitos ainda em vertigem com essa compreensão pela metade e que se tornaram presas fáceis de quem sonha justamente com um país que perdeu a capacidade de dialogar e se compreender — seja o concurseiro não aprovado que culpou as cotas, o homem que não conseguiu ser macho alfa e culpou o feminismo ou o adulto que se sentia intelectualmente inferior e culpou o marxismo cultural, como bem apontou o professor de filosofia Rodrigo Nunes em entrevista recente.

Os fracassos pessoais mal assimilados em uma sociedade que venera o vencedor deram a grupos políticos articulados o ressentimento necessário para vender no atacado respostas simplórias a problemas complexos. Essas respostas empacotadas em memes e slogans de fácil assimilação transformaram um país inteiro em personagens do Teletubbies que se definem apenas a partir da diferenciação entre cores da camisa ou da bandeira.

Há um trabalho árduo para eleitores que, por motivos variados, inclusive os mais nobres, vestem a camisa e se mobilizam em busca de votos para essa ou aquela bandeira levantada por candidatos e candidatas.

Esse trabalho tem sido solapado por quem mais lucra com a ignorância e as relações sociais avariadas. Na bolha não há conflito, e não existe solução de conflito que não passe pela mediação política.

Nessas bolhas o que prolifera é a raiva e/ou a devoção. É a guerra, enfim. Política é outra coisa.