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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Dívida de R$ 300 mil: descaso de patrão deixa mulheres presas em Noronha

Em Noronha, trabalhadoras denunciam cobrança ilegal de taxa de permanência - Arquivo pessoal
Em Noronha, trabalhadoras denunciam cobrança ilegal de taxa de permanência Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

28/07/2022 04h00

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O paraíso, no Brasil, não é um arquipélago vulcânico, com águas cristalinas, parque marinho e santuário ecológico protegido a 350 quilômetros da costa nordeste.

Paraíso é ter carteira assinada, com direito a férias, 13º, descanso nos finais de semana e feriado, contribuição previdenciária, auxílios de seguridade social, como auxílio-doença e indenização em caso de demissão sem justa causa.

Em Fernando de Noronha, um dos mais conhecidos (e caros) destinos turísticos do país, o sol não é tão bonito para quem vem do continente trabalhar em uma pousada de bacanas e vai parar na rua.

Atualizada como força de trabalho para prestação de serviços de limpeza, a nova classe operária, quando vai ao paraíso, sai de lá sem receber nenhum centavo por trabalho extra e sem descanso e também endividada.

Isso quando sai. No caso da camareira Rejane dos Santos Pereira, de 53 anos, e de Sandriely Gomes Rodrigues, de 20, a volta para casa só será possível se elas pagarem uma dívida superior a R$ 300 mil ou se assinarem uma kafkiana confissão de calote com o compromisso de não pisarem nunca mais no arquipélago.

Isso porque seus empregadores se "esqueceram" de registrá-las como prestadoras de serviço durante o tempo em que trabalharam na pousada. E, em Fernando de Noronha, apenas quem mora ou tem contrato formal de trabalho está isento ou isenta de pagar uma taxa de preservação ambiental (TPA). Atualmente a taxa é de R$ 87,71 por dia.

Rejane e Sandriely pediram demissão após terem o direito a folgas e horas extras negados durante pelo menos sete meses.

Por conta do imbróglio, uma versão com mar e sol de um romance de Franz Kafka, as trabalhadoras vivem agora em uma espécie de cárcere privado há quase dois meses. Quanto mais tempo ficam lá, mais a dívida aumenta.

A situação é inédita mesmo para Rejane, que trabalha no local há cerca de 22 anos. Até pouco tempo, segundo ela, era possível trabalhar ali com contratos bem definidos e os pagamentos em dia. Isso mudou com o arrendamento de parte dos empreendimentos a grupos estrangeiros. Rejane só descobriu que estava trabalhando sem registro (e cheia de dívidas) na hora de pedir as contas. Sem esse registro, a empresa ficou isenta de pagar o Imposto Sobre Serviços (ISS) de cada profissional.

No Brasil, nada menos do que 40,1% da população que trabalha se sustenta em empregos informais. Um levantamento recente da revista piauí mostrou que, em um país de desigualdades escancaradas, a vulnerabilidade do trabalho está diretamente associada à fome. No ano passado, 21% das pessoas que trabalhavam sem carteira assinada estavam em situação de insegurança alimentar grave. A taxa é de 7% entre quem tem carteira assinada.

Entre tantas atrações turísticas em Fernando de Noronha e outras praças, a sede de lucro encontrou na precarização de trabalho à brasileira o cenário perfeito para prosperar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL