Topo

Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que leva um patriota a vaiar a celebração dos gols do Brasil na Copa?

Desde 31 de outubro, bolsonaristas protestam em frente ao quartel do GAC, em Jundiaí (SP). Durante a estreia do Brasil na Copa do Qatar, vaiavam a cada gol da Seleção - Felipe de Souza/UOL
Desde 31 de outubro, bolsonaristas protestam em frente ao quartel do GAC, em Jundiaí (SP). Durante a estreia do Brasil na Copa do Qatar, vaiavam a cada gol da Seleção Imagem: Felipe de Souza/UOL

Colunista do UOL

27/11/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Bertioga, no litoral paulista, tem algumas das praias mais conhecidas da costa brasileira. Tem a da Enseada, do Itaguaré, do Indaiá e da Vista Linda — o nome é autoexplicativo.

Tenho amigos capazes de passar dez horas numa estrada em dia de feriado só para poder molhar os pés na água e ver o mar antes de voltar à rotina cinzenta das grandes cidades.

Não conhecia quem tivesse feito o caminho contrário em data festiva, até saber da história de um casal que pegou a estrada no dia do jogo de estreia da seleção brasileira na Copa do Qatar, na quinta-feira (24), para se juntar a um agrupamento de verde e amarelo às margens da rodovia Anhanguera, em Jundiaí. Deve ser mesmo um programão trocar a areia da praia pela fuligem do concreto e do asfalto.

Embora devidamente trajados com as cores da bandeira nacional, ninguém estava ali para festa, segundo o relato do repórter Felipe de Souza, que assistiu ao jogo da seleção com a turma.

"Copa tem de quatro em quatro anos e nesse momento preferimos ajudar o Brasil", disse o patriota de Bertioga ao se somar às fileiras golpistas em frente a um quartel.

Mas ajudar como? Pedindo que os militares saiam da caserna para distribuir bofetadas em brasileiros que teoricamente não sabem o que fazer com essa tal liberdade.

Parece estranho, e é.

O dia de estreia do Brasil no Mundial foi uma dessas datas que serão lembradas pelo curto-circuito no sistema nervoso dos nativos.

Torcedores que não queriam saber de política tinham receio de serem confundidos com eleitores que não queriam saber de Copa. E eleitores que não queriam saber de Copa tinham receio de serem confundidos com simples torcedores.

O desgosto estava escancarado na fala de um manifestante de Jundiaí que confidenciou a um amigo: não torceria pela seleção canarinho e pronto. A bronca se direcionava àquele "monte de gente desesperada querendo chegar em casa pra ver essa porcaria".

Tenho amigos que, por suas razões, não gostam nem simpatizam com a seleção brasileira desde sempre. Mas é a primeira vez que vejo gente que passou os últimos quatro anos vestindo a camisa da CBF dizer que, no fundo despreza, a seleção de seu país. Tem lógica?

Deve ter.

Jair Bolsonaro, que tantas vezes vestiu camisas de times e foi aos estádios em busca de votos, não postou nenhuma linha, em suas redes, sobre o jogo da seleção. Os filhos, idem.

Era como se a seleção, de repente, tivesse perdido para eles a utilidade como símbolo.

(Na ditadura, quando a Seleção de 1970 se confundia com o ideal de Brasil Grande vendido pelos militares, resistir era celebrar cada gol da equipe sem cair no ufanismo barato. O filme "O ano em que meus pais saíram de férias" mostra que até presos políticos vibravam com Pelé e companhia. Essa alegria não lhes foi podada.)

Entender o bolsonarismo é hoje um dos desafios mais complexos das ciências humanas. Embora, vistos de longe, todos se pareçam, há diferenças fundamentais entre as muitas camadas de eleitores que se fantasiam de verde e amarelo para comunicar seus afetos políticos.

Tem os que se acoplam ali por rejeitar as outras opções. Tem os que se viram representados por um discurso calcado numa certa liberdade que rejeita normas e o tal politicamente correto. Tem quem se identifique com o jeitão errático de seu mito fundador. Tem quem viu no movimento uma chance de alavancar os negócios e ganhar dinheiro.

E tem quem goste de sofrer.

É o que se pode concluir quando alguém abre mão de uma vida minimamente interessante para se sentar numa beira de rodovia, orar diante de um pneu, chamar extraterrestres para exterminar nossa espécie e pedir a militares que tomem o poder e nos disciplinem, como faziam os antigos professores com suas palmatórias.

Por alguma razão, o discurso militarista de Bolsonaro — aliás um mau militar, diria Ernesto Geisel — deixou muita gente sonhar com a restauração de uma ordem disciplinar que se supunha debilitada pelos novos tempos, libertários demais, com direitos demais e deveres de menos — frases recorrentes em qualquer roda de conversa entre representantes da nova direita brasileira.

Por isso, para essa ala específica (a que não aceitou a derrota e ainda não virou a chave das eleições), precisamos de medidas corretivas. E quem poderá nos corrigir se não as instituições que atravessaram os novos tempos com uma base hierárquica intacta, como as Forças Armadas e as igrejas? O que podemos querer, diante de um mundo de múltiplas possibilidades, se não alguém que nos diga o que é certo e o que é errado e que nos puna, caso alguém saia da linha? Não é mais confortável?

No livro "Discurso sobre a servidão voluntária", Étienne de La Boétie coloca no centro da análise não o tirano, mas as pessoas tiranizadas que, por alguma razão, se submetem e passam a cultuar a figura do opressor. Ali estão muitas das chaves de compreensão sobre o que acontece hoje em um país (ainda) governado por quem cultua torturador, defende a ditadura e emprega aliados defensores de castigos físicos, porrada em adversários e por aí vai.

Ao saber que, durante o jogo do Brasil, bolsonaristas reunidos em frente a um quartel em Jundiaí vaiaram os compatriotas que celebravam os gols de Richarlison, fica difícil não se lembrar da resposta de Jorge de Burgos, o soturno personagem de "O Nome da Rosa", de Umberto Eco, ao ser questionado sobre o que havia de tão alarmante no riso.

"O riso mata o medo e, sem medo, não pode haver fé. Sem medo do diabo não há mais necessidade de Deus."

Os gols de Richarlison levaram boa parte do país a explodir de emoção, choro e riso. E isso, para muita gente, também precisa ser contido. Já pensou se a moda pega?

O suposto patriota que vai às ruas expressar a sua pulsão de morte é uma figura que tem horror às manifestações mais festivas de seu país, como o samba, o Carnaval, as danças de rua, as artes e as diversas formas de afeto presentes na música, nos filmes e nos livros. Muitos deles têm horror também a futebol, Copa, sambinha e a ideia de que um país atravessado por injustiças pode encontrar nos intervalos de tanta dor uma potência política represada.

O que une a turma é o desprezo, só artificialmente identificado em um partido político ou grupos sociais específicos. O que a turma despreza, no fundo, é a alegria.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL