Topo

'E se me confundem com bolsonarista?': público da Flip põe Seleção no divã

Na Feira Literária Internacional de Paraty, o craque Machado de Assis substitui Neymar na camisa canarinho - Claudinei Plaza/UOL
Na Feira Literária Internacional de Paraty, o craque Machado de Assis substitui Neymar na camisa canarinho Imagem: Claudinei Plaza/UOL

Luciana Bugni

Colaboração para o TAB, de Paraty (RJ)

24/11/2022 20h05

Galvão Bueno abriu a transmissão do jogo Brasil e Sérvia dizendo que a Copa é de Neymar. "O mundo inteiro está torcendo por você", ele disse. Em Paraty, durante a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), essa unanimidade não era assim tão evidente.

"O sonegador vai se contundir no começo do jogo", disse alguém na rua. Mas, apesar da aparente aversão ao astro, o clima de Copa do Mundo tomou a cidade — e grande parte dos que passeavam pelo Centro Histórico trocou as camisas e vestidos florais por camisas verde-amarelas ou azuis. Desde segunda-feira (21), o comércio atendeu a demanda e a avenida principal estava tomada de lojas nas cores da Seleção.

Duas horas antes do jogo, uma pancada de chuva ameaçou tirar o ânimo de quem já andava por ali procurando um local para ver o jogo. Mas não durou muito. Logo depois, o sol brilhava quente e dava para ver bandeiras e camisetas oficiais da CBF — entre várias releituras da peça. Tinha de tudo: a imagem de Machado de Assis no lugar do escudo da CBF, condizente com os ares intelectuais da festa, camisetas amarelas com o número 13 atrás ou a estrela vermelha do PT, como foi sugerido pelo presidente eleito Lula, e modelos vermelhos que deixavam claro qual foi a escolha política do público do evento no 2º turno das eleições.

Mesmo que a galera fosse majoritariamente de esquerda — e boa parte dos jogadores da Seleção sejam assumidamente de direita —, não houve apatia. A Praça da Matriz lotada gritou e pulou desde o apito do juiz até o encerramento da partida, com vitória do Brasil por 2 a 0.

Logo depois do Hino Nacional, o público cantou o "olê, olê, olê, olá, Lula, Lula", jingle da campanha eleitoral do presidente eleito. Nos dois gols do progressista Richarlison, bandeiras agitadas e a gritaria quase encobriram a voz de Galvão Bueno nas caixas de som no telão. "Disse que não ia me empolgar e estou aqui pulando", diziam os torcedores.

Estreia do Brasil na Copa na Flip - Claudinei Plaza/UOL - Claudinei Plaza/UOL
Apesar da aversão geral ao craque bolsonarista Neymar, o clima de Copa do Mundo tomou Paraty
Imagem: Claudinei Plaza/UOL

Bode da canarinho e Marielle presente

A 500 metros dali, no espaço da Flipei (Festa Literária Pirata das Editoras Independentes), pessoas de verde e amarelo dividiam tapetes na areia com muitas camisetas vermelhas. "Peguei bode da amarela por causa do uso político e preferi gastar meu dinheiro nessa camiseta vermelha, feita por um coletivo da Bahia, que vi Wagner Moura usar na capa de uma revista", disse a contadora Luísa Pinheiro, 31. Acima da TV instalada provisoriamente no local, podia se ver uma bandeira do MST e outra em homenagem à vereadora assassinada Marielle Franco.

Ao lado, banhistas saíam do mar para dar uma olhada no jogo. Num bar vizinho, o dono se desculpava pelo som baixo na TV. "Está no máximo", dizia. Um torcedor inconformado foi para perto do aparelho, obstruindo a visão de quem estava confortavelmente instalado em suas cadeiras de plástico, com o pé na areia e garrafas de cerveja de 600 ml à mão. "Te empresto meus óculos", gritou alguém. O rapaz inconformado se sentou.

Estreia do Brasil na Copa na Flip - Claudinei Plaza/UOL - Claudinei Plaza/UOL
A comerciante Evelyn Sartori: 'Pelo menos essa roupa lembra mais o uniforme dos Correios que o do Neymar'
Imagem: Claudinei Plaza/UOL

'E se me confundirem com bolsonarista?'

A comerciante Evelyn Sartori, 38, pensou bem antes de colocar uma roupa com cores da bandeira do Brasil. O look amarelo e azul foi a solução. "Tentei achar algum acessório vermelho ou uma estrela pra mostrar que não votei no Bolsonaro. Vai que sou confundida com um bolsonarista, aí acabou minha vida. Pelo menos essa roupa lembra mais o uniforme dos Correios que o do Neymar", brincou, no Centro Histórico.

Ela procurava um barzinho para ver o jogo, mas o calor e os preços desencorajavam o passeio. "Talvez eu veja do hotel, mesmo. E se o Neymar não fizer 225 gols hoje, eu vou dizer que não sabe pagar impostos nem jogar futebol", concluiu, sorrindo.

No cinema da praça, às 15h, começava o único evento programado da Flip simultâneo ao jogo do Brasil. Era a exibição do filme "Os anos do Super-8", seguida de conversa com a escritora Annie Ernaux e David Ernaux-Briot. Na praça, o público duvidava que o evento tivesse quórum: "Ninguém avisou a francesa que era hora do jogo?", perguntavam.

Em frente ao cinema, porém, o clima era diferente. Uma fila de gente havia chegado duas horas antes para pegar as senhas e garantir sua entrada. No saguão, alguns atrasados reclamavam por não terem imaginado que lotaria tão rápido. A comunicadora Maíra Carvalho, 32, estava na fila quando descobriu que não haveria ingressos disponíveis para todos. "Você vai contar a história do meu fracasso?", perguntou para a reportagem.

O plano de Maíra era estar dentro do cinema durante o jogo do Brasil e depois ir a uma academia malhar. "Nunca curti Copa do Mundo, mas a pressão social sempre me obrigou a assistir aos jogos. Dessa vez, graças à polarização política, a pressão social diminuiu. E o fato de o Mundial ser no Qatar, um país em que os direitos humanos nem são levados em consideração, também contribuiu. Se você me vir em um bar daqui uma hora, pode colocar na legenda da foto que foi minha última opção", disse.

Estreia do Brasil na Copa na Flip - Claudinei Plaza/UOL - Claudinei Plaza/UOL
A comunicadora Maíra Carvalho: 'Nunca gostei de Copa, mas a pressão social sempre me obrigou a assistir'
Imagem: Claudinei Plaza/UOL

'Não quero ver Neymar'

Na fila, com a senha na mão, o construtor Carlos Donizetti da Silva, 54, disse que a opção pelo filme foi uma decisão anti-Neymar: "Não quero ver esse cara em campo. Se ele não jogar, volto a torcer", contou. "Se outro jogador fizer o gol, posso até vibrar. Mas o Neymar não dá". A camisa amarela que estava usando era uma coincidência, apressou-se em explicar, fazendo um L com a mão.

Fã de Anne Ernaux, a professora Priscila Calado, 35, veio de Brasília para ver tudo em que a autora estivesse envolvida. "Só vim para ver Anne, a quem leio desde 2020. Tenho até um clube literário sobre ela. Pode chover, acontecer um temporal, estarei aqui. O que é Copa do Mundo perto dos livros da minha musa?".

Também esperando para ver o filme, a jornalista Mariana Abdo, 35, afirmava também não se sentir confortável para vestir a camiseta do Brasil pós-eleições: "Está na hora de fazer um 'rebranding' da nossa bandeira". As professoras Ana Paula Apolínia, 54, e Estela Squianque, 45, concordaram: "Tem coisa mais importante que futebol. E Copa tinha que ser em julho."

 Estreia do Brasil na Copa na Flip - Claudinei Plaza/UOL - Claudinei Plaza/UOL
O construtor Carlos Donizetti só não torce pelo camisa 10: 'Se outro jogador fizer o gol, posso até vibrar'
Imagem: Claudinei Plaza/UOL

Ser ou não ser Seleção?

A mesa "Resenha: bate-bola literário" lotou o Sesc da cidade duas horas antes do jogo. Ali, Milly Lacombe e Xico Sá, esse último trajando a canarinho com o símbolo da CBD (Confederação Brasileira de Desportos), discutiam o uso da camisa da Seleção. Enquanto o escritor defendia que era hora de a esquerda ressignificar a peça, a colunista do UOL era radical: "Eu deixaria a camisa ir embora, porque se tornou o símbolo do naziascismo brasileiro. Por que não exaltamos uma camiseta preta, cor da pele do povo que fez a riqueza desse país?", defendeu, arrancando gritos empolgados do público que lotava o local. "Vamos pegar essa camisa e entregar para os fascistas: podem levar", completou.

Com postura mais amena, Xico lembrou uma história contada pelo colega Juca Kfouri sobre Dilma Rousseff: uma 1970, na prisão, a ex-presidente lembrou que vibrava e abraçava as amigas quando Rivelino fazia o gol na vitória do Brasil contra a Checoslováquia, por 4 a 1. "A paixão por futebol e pela Seleção prevaleceu até sobre a ditadura. Agora é colocar essa camisa no divã e entender o que a gente quer como país. É um processo quase terapêutico, mesmo", disse.