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Trombadas

A coragem de Ceição

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

24/11/2022 04h00

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O lugar que eu gosto é a biblioteca. Só não venho de noite porque tenho medo. Eu, hein, arrepia. Ai, não sei dizer. É que de noite os livros ficam fechados e livro é assim: se tá aberto, os personagens te rodeiam, dançam em volta de você, te sopram coisa no ouvido.

Eu pego qualquer um deles, abro e vejo na minha frente mulheres de vestidão, cabelos compriiiidos, com aquelas tranças bonitas, eu vejo príncipes, vejo até as caveirinhas dos defuntos que morrem nas histórias. Mas livro fechado é muito diferente. É o autor, entendeu? Ele que te vigia. Eu digo pra menina daqui: Ó, trabalha direito porque os homi que escreveram esses livros tudinho tão te vigiando. E não pense que você tapeia eles porque não tapeia. É gente séria. Eles moram dentro dos livros e esperam dar a noite pra sair, quando tá tudo calmo, silencioso e distraído. Saem, mas claro. Pra tomar chá, comer bolo com recheio de goiaba, jogar dominó. Isso aqui de noite é uma reunião que não tem fim. Não, de noite eu não entro, deus o livre. Mas passo fora e escuto as conversas pelas frestas das janelas.

Eu prefiro livro antigo, da época do D. Pedro, da Dona Carlota Joaquina, livro de reis e rainhas. Mãe contava história de princesa pra gente. Até hoje eu não sei como ela descobriu, porque não sabia ler nem escrever, nunca veio pra São Paulo, viveu a vida toda na roça, mas sabia contar inteirinha a história de Maria Borralheira, que é a mesma chamada Cinderela, depois eu fiquei sabendo. Seis horas da tarde a gente sentava na esteira e ficava todo mundo agarrado em mãe, de medo, mas querendo ouvir. Ela contava das Joanas, as irmãs da Maria, que quando abriam a boca pra falar com as pessoas, de tão ruins que eram, vomitavam bosta de cavalo pela boca. Era um ensinamento que mãe queria ensinar pra gente. Cuidado com o que você fala. Se for abrir a boca pra maldizer os outros, melhor deixar fechada.

Eu aprendi tudinho. O que as histórias de mãe falavam eu aprendia. Na escola é que era difícil. Quando eu tava na segunda série lá em Minas eu não aprendia a ler porque a professora me deixava pra trás. Eu não sei de onde vinha a birra dela comigo. Acho que era porque eu tenho cor, cabelo crespo, e as outras meninas eram tudo branquinhas. Essas iam lá pra frente e a professora paparicava elas, tudo filha de fazendeiro. Apesar que pai tinha terra também. Um homem muito alinhado. Sempre de calça e camisa branca, um casaco preto por cima, as botas brilhosas e chapéu. Só que ele tinha cor. Era caboclo, meio índio. Aí que a professora não queria me ensinar e me punha no fundo da sala. Eu era doida com matemática. Queria tanto aprender a dividir uma conta, a multiplicar. Somar eu sabia, subtrair mais ou menos. Mas a professora só ensinava pras meninas que tinham uma roupazinha melhor e sapato. De raiva eu cantava pra professora uma música que ela não gostava:

Dona Zefa Silva Pereira
Pega pinto na carreira
Pra comer segunda-feira
Debaixo da bananeira

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

E depois vinha uma parte que agora tenho vergonha de repetir. Uma vez ela me disse que eu nunca ia saber ler e por isso ela ia me repetir de ano. Aquilo me feriu tanto. Pois esperei as férias de julho, peguei um livro e li ele inteirinho. Eu lia cantando, que era pra decorar bem bonitinho, palavra por palavra. Eu cantava o livro até de noite, em pensamento, já na cama pra dormir. Voltei na escola com a linguagem que ninguém me segurava mais. Dei foi uma boa piaba na professora. Mostrei que sabia ler mais que todo mundo, passei de ano e aprendi uma coisa de mim: que eu não gosto que me desafiem. Se você falar que eu não sei, que eu não posso, que eu não sou capaz, eu viro onça, não onça pintada, onça lombo preto, que é mais valente, e vou te mostrar que eu sei, que eu posso, que eu sou capaz e que eu vou fazer. Então não não me cutuque, entendeu?

Pai era João Pereira e mãe, Damásia. Treze filhos vivos, eu bem no meio. Seis irmãos e irmãs pra cima, seis pra baixo. Eu, a número sete, o sete que divide as partes importantes da nossa vida. Por exemplo: quando eu tinha sete anos eu ouvi pai dizer pra Faustina, minha irmã, pegar querosene e tacar fogo nas minhas bonecas de pano. Faustina obedeceu. Era tarde da noite. Levantei da cama, fui no quintal e vi aquelas chamas levando minhas bonecas. Chorei um ano escondida de pai, porque ele não queria lamento. Mas não foi maldade da parte dele. É que nessa altura pai já tava doente e precisava que os filhos ajudassem mãe nos serviços, que sozinha, sem ele, ela não dava conta. Queimando as bonecas ele achava que me tirava da brincadeira pro trabalho. De modo que foi uma tristeza muito grande que eu senti. Uma ferida custosa de sarar. Sarou comigo adulta, já trabalhando aqui na escola, onde todo São João o aluno, pai, mãe, avô, avó, professor, funcionário, todo mundo faz uma fogueira muito linda, grande, pra se renovar, anunciar coisas novas e boas pra nossa vida. A escola inteira canta e a gente volta feliz pra casa, de coração cheio.

Bom, de menina lá em Minas eu também gostava de tomar banho no riacho. Sempre que ia, tinha um toco na beirada e em cima de um toco um cágado me esperava. Eu chegava, ele mergulhava. Eu saía, ele voltava pro toco. Mas todo dia. Foi nesse mesmo riacho que perdi o copo de ouro que madrinha me deu. Amarelinho, pesado, um brilho que só não brilhava mais que o sol. Madrinha tinha posses. Eu fui lavar o copo no riacho, deixei cair e assim foi. Pai botou um monte de gente pra caçar esse copo e ele nunca apareceu. A água carregou e a terra pegou de volta.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Aí depois do banho de riacho eu ia pro canavial e chupava cana até o vestido ficar duro. Tudo escondido, porque mãe me queria em casa pra cuidar das galinhas. Maria? Cadê Maria? Onde se meteu essa menina? E eu lá chupando cana. Um dia pai descobriu, eu não sei como, porque eu entrava bem pra dentro do canavial, ia lá no meio, afastando as canas com cuidado pra passar e não deixar rastro meu. Mas pai descobriu e uma noite eu ouvi ele conversar com mãe:

— Damásia, amanhã cedo você me faça um laço de vara que eu vou deixar amarrado pelas pernas o bicho que tá chupando a nossa cana.

Eu nunca mais voltei. Eu era esperta.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Mais ou menos nessa época que pai ficou doente. De manhã cedo ele tomou um café e saiu pra roça. Pela janela eu vi ele montado no cavalo, se afastando e sumindo dentro da garoa. Quando voltou na hora do almoço, voltou tremendo e daí em diante tremeu até o último dia. Ele falava que ficou daquele jeito por causa que tomou café quente e saiu na garoa fria. Não foi nada disso. Foi mal de Parkinson, uma doença que nunca ninguém tinha ouvido falar por aquele sertão nosso. O nosso lugar lá se chamava Cruz dos Araújo, que na ocasião pertencia à Januária. É norte de Minas, quase Bahia. Com pai doente, ele foi vendendo tudo pra comprar remédio e se tratar. Vendeu a troco de banana as roças, o engenho de farinha, o engenho de mel. Mas não teve tratamento que desse jeito. Ficou 26 anos em cadeira de roda, até que um dia desistiu.

Das últimas coisas que pai vendeu foi o brejão, a nossa roça de arroz. Colhemos 102 sacos no final. Eu não esqueço porque pai me tirou dois meses da escola e me pôs lá no brejão pra vigiar o arroz. Meu dever era espantar os periquitos, pra eles não comerem o arroz. Eu tinha uma sacola com pilotinhas de pedra e atirava nos passarinhos pra eles irem embora. Passava noite e dia lá. Eu num jirau que ficava dentro da água, tinha que se molhar pra subir nele, e meu irmão Mauro no jirau que ficava no seco. Dormia um de cada vez, porque se pai soubesse que periquito tinha comido o arroz ele ficava muito brabo. Nesses dois meses a comida nossa na semana era pequi com arroz. No sábado mãe levava uma galinha bem fritinha. Num sábado desses mãe quis aproveitar pra lavar a louça. Quando ela desceu com o balaio cheio na cabeça pra beirada do riacho uma cascavel enrolou na perna dela. Mãe ficou paradinha, amarela de medo, coitadinha, e tremendo mais que pai. Ela falou baixinho pra mim:

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

— Vá buscar Mauro.

O jirau dele ficava distante uns 15 minutos. Eu trouxe ele e com a espingarda Mauro acertou a cabeça da cobra. Ela tinha 9 anos, que nós contamos nove gomos no chacoalho dela. Mardita, miserávi, tava toda jogando o bote já. Sorte que Mauro sempre foi bom de pontaria.

E depois que pai vendeu tudo, levou anos, nós mudamos pra cidade. Foi aí que vim conhecer luz, sapato, sorvete e pasta de dente. Eu tinha 14 pra 15 anos. Antes a gente escovava o dente com uma planta que dava uma flor amarelinha e bem cheirosinha. Nos pés eu usava palha de buriti pra andar no mato. Quando saía a lua nova eu gostava de mostrar os pés pra ela: Olha que bonito o meu sapato. Uma vez pai me levou a minha primeira sandália. Era cor de laranja. Eu ia todo dia pra escola de pé no chão e a sandália na mão, pra não sujar. Chegava e punha a sandália embaixo da cadeira, que era pra professora ver que agora eu tinha calçado. Um dia precisei usar a sandália e fui calçar. Ela tava pequena assim e meu pé crescido desse tamanho. Eu achava que ia ficar criança pra sempre e nunca ia perder a sandália, ói. Depois eu entendi que a gente cresce mas tem jeito de ser de novo criança. Sonhando mesmo, procurando ser feliz. Tenho sorte de conseguir fazer isso no trabalho. Basta ver a criançada chegando pra aula de manhã e pronto. Dona Ceição, a senhora me faz aquele seu chá de menta que cura. Dona Ceição, tem chá de gengibre hoje? O de gengibre quando tamos no inverno, né? Dona Ceição, hoje tem chá de quê. Capim-santo. Mas hoje é feriado e tá um dia triste, porque só tem os funcionários. Amanhã é aula de novo e a vida volta, você vai ver.

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Comecei aqui em 1985. Eu tinha vindo pra São Paulo e já tava numa fase crescida que a gente esquece de acreditar em história. Eu morava no alto desse morro, olhava a escola aqui embaixo e me dava uma vontade danada de conhecer. Teve uma noite que eu sonhei e no sonho eu tava ali no Jardim de Infância e tinha um galpão com um monte de roupa antiga e as prateleiras cheias de milho verde. Aí eu pegava na roupa e ela virava cinza na minha mão. Passado nem um mês eu tava aqui trabalhando. Diz que sonhar com milho verde é riqueza. E roupa que estraga é sinal de que você vai ter roupa nova. Eu não tinha nada, nem ideia de rumo que a vida ia me dar. Encontrei tudo aqui na escola. Cheguei e já abracei a cozinha, que tinha um chão vermelho, bonito, mas muito gasto de tanto pisar nele. Eu lavei, encerei, fiz café pros professores, pus vaso com flor. Cheguei seis e meia da manhã e só fui embora às sete da noite, depois de ver a escola brilhosa e perfumada. Eu nunca tinha sido tão feliz na minha vida. A diretora me pôs de encarregada de zeladoria e fiquei até hoje.

Mas eu também cuido do camarim do nosso teatro, ensino os pais a fazerem coroa do advento com ramo de pinheiro e fazerem o pão também. Eles acham que vou ensinar a fazer o meu pão, mas é o pão dos filhos deles. Tem que começar aprendendo o pão que as crianças aprendem. Vai sair meio torno, meio duro, mas é assim mesmo. As coisas melhoram aos poucos, nunca é de uma vez. É igual a gente na vida. Pra que pular etapas e ficar parte faltando? Pra escrever. Você primeiro tem que aprender a segurar o lápis. Aí pega a folha de papel e só com muita prática é que vai poder assinar a carta com letra redondinha, caprichada: Com amor, Conceição. Felicidades, Conceição. Satisfação, até logo, Conceição. Cada um assina do seu jeito. Mas o caminho é ir devagar. Eu acho que uma das coisas mais bonitas e importantes de tudo que a gente aprende aqui é que as coisas que duram levam tempo pra serem construídas. Pode ser carta, vaso de barro, uma pessoa. Tudo leva muito tempo.

Eu sei porque eu já tive pressa. Eu saí de Minas falando: Vou pra São Paulo mas vou querer meus pés branquinhos, não vou mais sujar eles no barro. Aí passei a minha vida trabalhando aqui, que tem roça de milho, de melancia, horta de tempero, jardim e terra pra todo lado. Então eu nunca fiquei com os pés branquinhos. Mas tô mais feliz do que podia ser. E aí é outra coisa que a gente precisa aprender, que é lidar com a vida quando ela foge do nosso plano. Às vezes ela foge porque tem que fugir pra te pôr no rumo certo. Viu? O universo quer o nosso bem. Tem que ter coragem, como diz um desses homi aí que de noite saem de dentro dos livros.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Maria da Conceição Farias Ribeiro, 63 anos, a Ceição

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro -- é fundamental parar --- e escuto. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.