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As quatro estações de Chico do Horto

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

06/04/2023 04h01

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Eu só pareço triste, mas não sou triste. É o meu jeito, assim meio quieto, de mais observar que falar, não gostar de discussão, aporrinhação. Nunca nem briguei na vida, pro senhor ter uma ideia. Tristeza que tem é a de todo mundo, de perder parente, amigo, essas coisas. Mas sou feliz, um sujeito realizado. O que sonhei eu conquistei. Até porque, antigamente, numa cidade pequena como a nossa a gente sonhava curto. Era o trem que trazia e levava os nossos sonhos. Hoje em dia nem isso. Faz um ano e meio mais ou menos o movimento zerou. Nadinha. Ah, sim, saudade danada do ruído das rodas passando sobre as emendas dos trilhos, sabe? Até o ano 2000 ainda foi intenso. Aí primeiro tiraram o trem de subúrbio, depois proibiram o transporte de carga pra São Paulo e ficou só pra Santos, pouca coisa. Na pandemia interrompeu de vez.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Esses vagões e locomotivas que o senhor vê parados aí tão só pegando ferrugem e criando mato. Já tiraram jararaca de dentro. Isso sim derruba a gente. Trem parado é a coisa mais triste que existe, ainda mais aqui em Mairinque, que nasceu e cresceu por causa da estrada de ferro, a grande Sorocabana, depois Fepasa, e da estação, que é a primeira construção em concreto armado do Brasil, o senhor sabia disso? É. Patrimônio histórico. Uma joia. Nesse desmazelo que taí.

Sim, senhor. Filho, neto e sobrinho de ferroviário. Eu não falo que sou ex-ferroviário. Eu sou ferroviário aposentado. Porque a gente nunca deixa de ser. Mesmo depois que se aposenta, o sangue do ferroviário continua circulando nesses trilhos que a gente passou, nem que seja só em pensamento. Faz 35 anos que eu me aposentei e desde aquele dia, 4 de janeiro de 1988, nunca mais subi num trem. Não sei, difícil. Nos primeiros dias acordava assustado e eu, que nunca perdi a hora, nunca cheguei atrasado no serviço, pensava: "Mas por que eu tô na cama ainda? Por que não tô na locomotiva?" Aí levantava correndo procurando o meu apito, cadê meu apito?, cadê meu apito?, e então me dava conta de que não tinha mais apito, não tinha mais serviço. Demorava um tanto até me acalmar.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

O apito é porque peguei o finalzinho da locomotiva a vapor, antes de entrarem as diesel e as diesel-elétricas. Todo maquinista de locomotiva a vapor tinha o seu apito particular. Cada um apitava diferente, de modo que, quando estava chegando de volta na estação, a gente carregava no apito pra avisar a família. Ou, como a turma brincava, pra dar tempo de o Ricardão fugir. Era uma alegria, viu. Depois de um tempo de aposentado eu morei uns anos em Portugal e nem lá andei de trem. Pro senhor ver como é que é. O mais perto que cheguei foi ver por fora a estação de Coimbra, que não é tão linda como a nossa de Mairinque, mas muito bonita. Fui de carro deixar minha filha. Só de imaginar as plataformas cheias, trem chegando, trem partindo, aquele movimento bonito, me tremeu o coração. Então achei melhor não entrar. Além do mais, ser passageiro não me diz muita coisa. Meu lugar sempre foi na locomotiva.

Eu nasci e vivi até meus 19 anos no Horto Florestal aqui da cidade, hoje transformado em parque e abandonado. Éramos umas 20 famílias de ferroviários ali. Tinha o grupo escolar, a casa do engenheiro-chefe, o escritório da estrada de ferro onde meu pai trabalhava, produção de sementes e extração de eucalipto pras fornalhas das locomotivas, tinha capela, campo de futebol. Sabia que na ponta-esquerda do nosso time jogava uma garota já naquele tempo? A Nina. Era a única moça da região que jogava bola. Um chute forte que nossa senhora. Chutava mais forte que o Pepe do Santos.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Bom, no Horto tinha saci também. O senhor ri é? Vou lhe contar. Num domingo, umas 18 horas, a turma pronta pra subir pra missa, começou um alvoroço. Tinha desaparecido um menino, vizinho nosso, de três anos. Estavam nuns quatro ou cinco brincando no pátio e, quando a mãe veio buscar, cadê o fulano?, os outros disseram: um pretinho de uma perna só levou. Aí junta todo mundo pra procurar. Noite adentro procurando. Foi o pai dele mesmo que achou, na manhã seguinte, morro acima, num lugar difícil até pra adulto chegar. Ele estava calminho, deitado na moita. Depois virou ferroviário e mudou pra Sorocaba. Até hoje ele diz que, como todos nós, passou a vida andando de trem, mas foi o único que passeou com o saci. Eu conto pro senhor não de ouvir falar, mas porque presenciei. Ajudei nas buscas. Bons tempos aqueles no Horto.

Eu cresci ali querendo ser maquinista. Meu pai me queria escriturário como ele, dizia que o serviço era mais leve. Mas eu queria maquinista, porque não gosto de ficar parado. Eu queria movimento. Tanto é que depois cheguei a inspetor de estação e sempre dava um jeito de subir no trem só pra ir até Júlio Prestes e voltar, pra não ficar maluco. Mas, bom, pra dizer a verdade não tinha muita opção de trabalho na cidade. Era o comércio ou a estrada de ferro. E a carreira de ferroviário era muito boa. Tinha emprego garantido, podia formar família, criar os filhos. Todo pai e mãe de menina torcia pra que a filha se casasse com ferroviário.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Então, primeiro, eu estudei dois anos pra ser telegrafista. Isso, código morse. O ouvido hoje tá destreinado, pra receber mensagem eu vou ter um pouco de dificuldade, mas se precisar enviar eu garanto que ela chega direitinho. Aí prestei concurso, passei em primeiro lugar e quando fui entrar na empresa não tinha vaga de telegrafista. Me puseram de truqueiro. É o camarada que repara os truques, conjuntos de rodas dos vagões. Lembro do dia de receber meu primeiro salário de ferroviário. O tutu chegava no trem pagador na estação. Eu fui lá, tava muito ansioso. Peguei meu envelope e na mesma hora fui comprar um anel pra minha irmã Marinês, minha única irmã, melhor amiga e confidente até hoje.

De truqueiro passei a ajudante de maquinista. Na locomotiva a vapor, o ajudante abastecia a fornalha. Na diesel-elétrica, ele revisava os níveis do óleo, as sapatas de freio e mantinha a beleza da máquina. Ou seja: ele limpava a locomotiva todinha por fora, tinha que ficar um brinco. Antes da primeira viagem do turno, 40 minutos era só pra limpar a locomotiva. O trem só partia se a locomotiva estivesse sem uma poeirinha, um cisco sequer.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Aconteceu várias vezes de eu eu pegar quatro locomotivas de uma vez aqui em Mairinque, limpava as quatro e elas seguiam pra Campinas, vamos dizer. Lá trocava com o pessoal da Mogiana, e as quatro locomotivas deles que voltavam pra cá chegavam imundas. Eu tinha que limpar também. Era um esmero só. Tudo bem cuidado, tudo funcionava, tudo era tratado com capricho. Essa Estrada de Ferro Sorocabana foi o Brasil que a gente podia ter sido, sabe? Passageiro, ferroviário, todo mundo tinha orgulho. Mas não cuidaram, descarrilou.

Ficaram as lembranças, né? As boas e as ruins. Ah, tem lembrança ruim também, claro. Por exemplo. No Dia de Finados de 1979 eu entrei de serviço à meia-noite aqui e fui até Botucatu. Na volta, mais ou menos uma e meia da tarde, perto de Brigadeiro Tobias, eu conduzia em baixa velocidade por causa de uns reparos na linha e, do nada, pum! Levei um tiro na cabeça. Na hora até falei pro meu ajudante: Conduz você, faz favor que tomei uma pedrada. Mas era tiro, calibre 22. Fiquei zonzo, fomos até a estação e de lá o chefe correu comigo pra Santa Casa de Sorocaba. Fiz a radiografia e a mocinha enfermeira veio falar comigo: O senhor é o maquinista? Sou eu mesmo. Ói, passaram fogo no senhor, hein. Sorte que o senhor trabalha de lado e o tiro atingiu de revestrés. Mas a bala taí dentro. Pode ir pra casa e se sentir alguma coisa o senhor volta aqui. Naquela noite me deu uma dor de cabeça que vou te falar. Aí voltei e tiraram a bala. O Dia de Finados quase vira meu dia. Beirou.

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Noutra ocasião eu tava indo pra Santos. Tinham limpado a linha, não se via um matinho, tava uma beleza. Um pouco pra lá de Mario Souto, Embu-Guaçu, numa reta comprida, eu olho lá adiante e vejo uma coisa se mexendo, tremelicando. Era domingo de manhã e fazia um sol de lascar. Que será? Cachorro não é, porque bicho não fica se mexendo no mesmo lugar, vai pra lá e pra cá. Por via das dúvidas apliquei freio total e dei a buzina. E o trem, não sei se o senhor sabe, nunca para de imediato. Depois do freio ele ainda vai andar uns 500, 600 metros. Freio, buzina e aquele negocinho lá tremelicando sem sair do lugar.

Conforme fomos seguindo de freio aplicado, minha mãe do céu!, era um garotinho sentado no trilho, brincando de cavalinho e dando tchau pro trem. Meu ajudante quis saltar e correr lá. Eu digo "não vai, porque senão você morre junto". Buzina, buzina, buzina. Eu já tava vendo o garotinho embaixo do trem. Pro lado direito assim tinha um casebre muito simples, de onde saiu correndo uma mulher com um bebê no colo. Ela galgou o barranco, passou pelo meio da cerca de arame e vapt!, puxou o garotinho a tempo. Quando o trem parou, eu sentei no chão da locomotiva pra tomar fôlego. Aí fui lá. Minhas pernas tremiam. Dona, a senhora quase acaba com a minha vida hoje. Se a senhora não chega, o seu filho ia morrer e eu ia morrer com ele, porque nunca mais ia ter coragem de subir numa locomotiva. Bota mais arame nessa cerca, pelo amor de deus. Na volta dei uma paradinha lá e levei um pacote de balas pra eles. A mãe e mais um monte de criança pequena. É, terminou bem, graças a deus, mas eu nunca mais me recuperei daquilo.

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Agora, tem umas histórias engraçadas também. Quer ver uma coisa? Na locomotiva a vapor existe uma válvula de segurança que a gente chamava de bujão. Quando dava superaquecimento, ela derretia e o bujão caía, pra evitar que a caldeira explodisse. Mas isso acontecia por culpa do maquinista quando ele esquecia de botar água pra resfriar o sistema. Uma vez, um colega nosso metido a poeta ia indo pra São Paulo. Na subida de São João Novo, ele deixou faltar água e a válvula de segurança foi acionada. Quando chegou de volta, ele escreveu assim no relatório:

Do maquinista Paixão
Para o inspetor de tração
Na subida de São João
Puxando grande lotação
Houve excesso de pressão
E arriou o bujão
Conto com sua compreensão.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

O chefe não pensou duas vezes e mandou de volta no relatório:

Do inspetor de tração
Pro maquinista Paixão
Pelos seus lindos versos
Sem choro nem vela
São quinze dias de suspensão.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

É, foi uma vida. Eu penso nessas coisas quando atravesso a pé o túnel que leva à estação. Quase todo dia eu venho. Tem o museu que eu ajudei a montar com peças antigas, ferramentas, material da estrada de ferro, da própria estação, dos trens e o prédio mesmo, que apesar dos pesares, continua bonito. Foi inaugurado em 1908.

Mas vou dizer a verdade pro senhor. Cada vez mais eu sinto que é um espelho nosso esse monte de coisa que só dá saudade na gente. Sabe aquela cena de um homem parado na plataforma vendo o trem partir levando sua amada embora? Então. Eu tô com 77 anos, naquela idade que a gente se espreguiça pro lado, porque se espreguiçar pra cima a turma do céu puxa pelos braços. Todo ano a gente organiza o nosso encontro de ferroviários, mas sempre são dois ou três a menos. É assim. Trem não pode andar pra trás. Se anda, resulta em punição pro maquinista.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Mas veja o senhor a estação. Como eu disse, é patrimônio histórico. Tudo aqui mexe comigo. Nessa placa ainda se lê o nome da nossa cidade na grafia antiga, Mayrink. Muito melhor, no meu gosto, mas sempre tem vereador pra mexer no que não tem necessidade. Aí tem os vidros. De olhar o senhor pode imaginar a beleza que era. Nesses círculos bem no meio, tá vendo?, ficavam os relógios. Hoje é tanta teia de aranha que as andorinhas se embaralham nelas e morrem. Aqui ficava a bilheteria. Bem aqui. Ali nós tínhamos sete estações de telégrafo. Sete! E o bar? Quando vinha chegando de São Paulo, o bar, por ficar na ponta da estação, de frente, era a primeira coisa que o maquinista via. A adega subterrânea que refrescava as bebidas ainda taí, é mais uma saudade. Hoje a prefeitura usa a estação pra aulas de músicas e outras atividades, além do museu. Quer dizer: está tudo aí, mas não está nada mais aí.

Dia desses eu tava em casa e mandaram me chamar. Tinha um professor estrangeiro de faculdade, doutor, de Michigan, parece, que veio conhecer a estação e queriam saber se eu podia acompanhar. Eu vim. Ele olhou tudo, tirou uma porção de fotografia, anotou no caderninho e só falava oh, oh, oh. Antes de ir embora ele vira pra mim e diz assim: "O senhor não sabe a importância que tem isso tudo." No que eu respondi pra ele: "Ah, eu sei sim, senhor. Quem não sabe são eles."

Francisco Antônio de Camargo, 77 anos, o Chico do Horto

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é uma trégua, um reencontro.