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Trombadas

Os cheiros de Charlie

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

04/05/2023 04h00

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Bueno, yo sou una sequência traumas e cheiros que não consigo esquecer. Yo sou outras coisas también, mas vamos ficar com essas. Os cheiros do passado son terríveis, alguns, mas os de hoje son ótimos: cheiro de croissant, que yo faço toda terça pra vender aqui no café, e cheiro do rocío, como fala em português?, isso, orvalho, que palavra bonita, orvalho, o cheiro de orvalho quando yo abro a minha janela de manhã. No. Trauma non tem novo, só los viejos. Yo fui uma criança sofrida, sabe?, receosa de tudo, das pessoas, do mundo. Nem sei como pude andar tanto, sair de Maroñas, na periferia de Montevidéu, e vir parar em Cotia.

Primero que más nada, yo nasci com uma hérnia inguinal. Minha mãe conta que me operaram com dias de vida e demorei para sair do hospital. Mas disso yo no tengo memória. O que yo lembro, porque meu nariz no deixa esquecer, é de quando queimei meu corpo com leite quente. Guri de 4 anos. Naquela época era como se a vaca entrasse em nossa cozinha pra gente ordenhar: minha mãe recebia um tancón de 20 litros de leite e colocava num panelón deste tamanho pra ferver. Nesse dia yo quis beber água, subi no banquinho, ele bambou e pra no cair yo me segurei na panela. O leite virou por cima de mim. Quase o corpo todo. Cicatriz aqui, aqui, aqui em em todo lugar. No me acuerdo da dor, só da cara do meu pai, una cara de pavor enquanto ele me embrulhava numa toalha molhada.

Fiquei meses no hospital, meses!, e todos os dias tomava injección. Acho que o trauma de agulha yo só curei quando fiz tatuagem, adulto. Una espécie de antídoto. Mas lo peor de todo era aquele cheiro de jabón Astral. Duas vezes por dia me colocavam numa tina com água e esse jabón usado para matar las bactérias. Si, si, si, muy marcante. Yo no uso e no vou usar nunca esse jabón por toda la vida. Se você me pregunta um resumo de minha infância, é esse: o cheiro de jabón Astral. Es assombroso o que o nosso nariz faz com a nossa cabeça.

Por causa desse processo com hospital, injección e jabón, até doze anos yo era um bitcho do mato. Saía pouco de casa, nas festas ficava de canto, no conversava, no me divertia, gritava quando via alguém de roupa branca, porque pensava que vinha injección. Sobre todo yo sentia medo. Pero sarei por causa do fútbol. Um dia descobri que podia jogar bem e segui. Yo usava a camisa diez, como se diz zurdo?, si, canhoto, tinha un cabelón por aqui, as meninas prestavam atençón em mim. Aí a vida começou pra valer. Naquela altura nem meu nome incomodava mais. Porque Charlie Brian, né? Charlie tudo bem, mas Brian não dá. Era como Enzo hoje no Brasil. Comprovante de endereço: chama Brian, mora longe, na periferia. Pior só o meu irmão: Mike Christopher. Hahaha. Charlie Brian, el diez.

Trombadas - Charlie Brian Cibils - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Fútbol é una coisa muy rica. Mas tem que jogar pra entender. Só assistir no serve. Ao mismo tempo que é um jogo que se joga com outros, quer dizer, não dá pra jogar sozinho, você está sozinho: tem que tomar decisões por sua cabeça, procurar fazer as escolhas certas, administrar as erradas. Tem que acreditar em tus campanheiros. E precisa se emocionar. No se estressar como os argentinos, eles son estressados no fútbol. Os uruguaios somos emocionados. É diferente. E todo eso do fútbol é formación de caráter, para quem prestar atención. Pena que joguei pelo Peñarol e no pelo Nacional. De toda manera, o fútbol me salvou. Acho que até demais.

Porque, escucha, com 14 anos yo fui trabalhar num açougue e a coisa ficou louca. Era de segunda a segunda, com descanso no domingo depois da uma da tarde. Yo carregava boi nas costas, tamos falando de meia rés, 100 quilos pra cima, e destrinchava o bitcho todo. Mas o pior, de novo, era o cheiro. Nesse caso o cheiro da linguiça que yo tinha que lavar. Ela vinha com um sebo, uma baba assim por fora, e yo lavava e punha pra secar. Fedia aquilo lá. Mas fedia. Até hoje yo sou meio de lado com choripán, o sanduíche mais tradicional em Uruguai. Prefiro las milanesas.

Mas um dia yo estava no meu horário de almoço e um amigo contou de outro amigo nosso: "Charlie, você viu que fulano vai morar em Paysandú? A mãe dele já foi e hoje vai ele, levando a mudança. Vamos também?" Por que no? Yo no voltei pro açougue, no passei em casa, nada. Entrei no caminhón com sete amigos e fomos pra Paysandú, que é bem longe da capital, uns 400 quilômetros. Se juntasse o dinheiro dos oito não dava R$ 300. E ninguém pensou quando voltar, como voltar, se voltar. A gente só quis ir. Ficamos dormindo no quintal do amigo que se mudou pra lá. Quando acabou o dinheiro, em dois dias, no más, começamos a roubar pão, lata de atum, cerveja. Roubar de pegar e sair correndo. Uns desmiolados. Logo nós éramos os marginais que vieram da capital infernizar Paysandú. Um dia um dos nossos arrumou uma briga na praça. Pedrada, paulada, foi todo mundo preso. Só aí que yo parei pra pensar, dentro da cela apertada que cheirava cimento viejo e mijo: Que carajo estoy haciendo? Foi a minha maior cagada na vida. Bah, yo gosto dessa palavra: cagada. Una grande cagada que me deixou outro cheiro eterno no nariz. Cimento com mijo. Nunca mais fiz nada parecido. Hoje meu máximo de rebeldia é parar no bar pra tomar duas cervejas e ouvir música brasileira antes de voltar pra casa. Mas peço permiso para minha mulher, claro.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Sabe que em Maroñas a minha família era conhecida como "los brasileiros"? Todo domingo de manhã meu pai ouvia música brasileira bem alta. Música alegre, acho que Xorge Ben, Caetano Veloso, Xilberto Xil. No Carnaval nós tirávamos a mesa e as cadeiras para fuera, minha mãe fazia pizza e a família comia no quintal vendo as escolas de samba do Rio na TV. Virava a noite assim. O Brasil é sempre mágico pros uruguaios. De niño yo sonhava em vir pra cá. Nas férias da escola caminhava oito quilômetros da minha casa até a praia só para olhar e escuchar os turistas brasileiros. Era fácil identificar: o homem com a namorada loira grandona do lado.

Claro, fazíamos churrasco también. Mas o churrasco no Uruguai no tem nada que ver com o do Brasil. Yo tengo um pensamento sobre este punto: para mi, o que define o Brasil no é o samba, ou o fútbol, é o churrasco. No Uruguai, churrasco é algo familiar, no entra em tua casa pessoas que você nunca viu. Aqui no. Aqui você está lá na churrasqueira cuidando do fogo e de repente, quando vira, tem quatro ou cinco desconhecidos. E aí?, como que tá?, no sei o quê. Amigos dos amigos do amigo. Eles trazem carne, cerveja, sorvete, abrem tua geladeira pra guardar e pronto. Yo amo isso. É bem brasileiro. Aí começa o churrasco. No Uruguai a gente assa toda a carne junta de una vez, tira tudo e senta pra comer. No Brasil: primeiro põe o corazón de galinha, o frango, quem quer una linguicinha?, tá saindo a picanha, pessoal. Mal passada pro avuelo, al punto pra tia, tostada pro cunhado. Aí corta tudo em pedazos pequeños e roda o prato pra cada um pegar o seu. No precisa de mesa. O churrasco define o Brasil.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Esta é a segunda vez que yo vivo aqui. Na primeira, vim com um amigo abrir uma representación de una firma argentina de manequins. Sí, desses de vitrine, de roupa. Pusemos uma loja na rua José Paulino e ficamos um ano e meio. Después, falência. Bah, tudo errado. Muito cheque sem fundo, muito. Sábado de manhã paravam ônibus e mais ônibus de excursión e yo esfregava las manos. É hoje que vamos arrebentar. Na segunda-feira, a metade dos cheques era sem fundo. Outra cagada fue que assinamos contrato com um importador brasileiro, para ele trazer os manequins da Argentina. A comisión era pra ser 1,4%. Nós no lemos direito o contrato e ficou 14%. Fechamos e voltamos pro Uruguai.

Só que yo tinha me apaixonado por uma brasileira e ela ficou em San Paulo. Era inverno. Aquele frio, aquele vento, todo dia que yo saía pra vender licores nos barrios obreros de Montevidéu, o novo trabalho que yo consegui lá, o cheiro de lenha queimada me jogava na melancolia. Voltei pro Brasil. Fui trabalhar em restaurante, de lavar louça, fazer suco, café, depois garçom, e morar com a namorada. Só que ela tinha pressa. Queria que eu ascendesse, ganhasse mais dinheiro e eu falava Escucha, eu vim ficar com você, estou começando do zero outra vez, preciso de tempo. E yo só trabalhava, só trabalhava. Chegou num dia que ela disse que yo era ausente, yo le pedi calma, ela não quis ter calma e só restou sair de casa.

A primeira noite eu passei num motel que cheirava a desinfetante de eucalipto. Después passei de ônibus e vi uma "república para estudantes". Desci, fui lá. Era uma pensión: 14 camas no quarto, sete beliches. Logo yo pensei no filme Carandiru, sobre aquela prisión. A cama de cima era mais barata, peguei. Yo no consegui dormir. E logo descobri por que no alto custava menos: mais perto do teto, mais abafado e onde os cheiros paravam. Cheiro de perfume, de chulé e pizza de calabresa, porque todo dia tinha um desgraciado que pedia pizza. De linguiça! Putaqueopariu! Bah, outra palavra que eu adoro em português. Putaqueopariu. Vaisifudê también. No parece palavrón. Parece poesia. Vaisifudê, putaqueopariu!

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Aí dessa vez yo no queria volver. Me disse a mi mismo: Bueno, yo estou sozinho, longe da minha terra e da minha gente, só tengo compromisso comigo; vou aproveitar para descobrir de que desejos yo sou feito. No descobri de todo. Mas yo acho que ser imigrante es eso. A gente siempre está incompleto. Pode ser uma vantagem, porque o imigrante se esforça pra se completar, mesmo sabendo que es imposible. Hoje yo estou menos incompleto, apesar da saudade que sinto do Uruguai. Mas me casei aqui, abri o café e vou administrando meu desejos com calma e presença.

O que eu desejo? Além de acertar na Mega-Sena, você diz? Bueno, primero que más nada eu desejo conseguir falar a letra xota. Si. Xota do xuão, de xabuticaba, xacu, berinxela. É só uma letra, xota, mas você percebe como é importante saber a pronúncia correcta, no é? Aí eu desejo también alugar o espaço ao lado para servir milanesas, fazer noites de tango. No, no, no. Gardel es nuestro. Nació en Tacuarembó. Eu já fui lá e vi a placa: Aqui nasceu Carlos Gardel. E no mismo departamento, só que em outra cidade, em Paso de Los Toros, nasció Mario Benedetti, para mi el mejor de nosotros, junto de Vilaró, Mujica e Cavani. No cardápio eu mandei escrever una frase de Benedetti, você viu? "Ninguém nos avisou que sentir saudade é o preço dos bons momentos."

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Charlie Brian Cibils, 41 anos
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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é uma trégua, um reencontro.