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Trombadas

O cerco a Filippo e Raffaella

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

06/07/2023 04h01

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Um belo dia io tô dando de comer às codornas, me tocam a campainha. Vou ver. Era o Antônio, um dos corretor de imóvel da rua. Hoje em dia tem mais corretor que pardal por aqui. Ele fez assim com mão, vieni qua:

— Que é, Antônio?

— Filippo, a construtora quer comprar tua casa. Três milhão e meio. Toma a proposta pra você ler e pensar.

Va bene. Peguei o papel e voltei pra dentro. Três milhão e meio, hã? Um bruto dum dinheiro. Ma não sei perché me veio na cabeça la guerra. Estranho. Me senti em Laurito, a minha cidade piccolina na Itália. Conosci? No sul, perto de Salerno. Na guerra io era giovanotto, tinha 14, 15 anni. Da nostra casa se ouvia o barulho, se viam os avião, os paraquedista americani, os buraco de bomba na terra, uns buchi enormi que pegava isso tudo assim. Ma foi no campo. Na cidade mesmo, niente. Não destruiu nada, não morreu ninguém. Como aqui. Até aquele dia em que o Antônio tocou a campainha, da nostra casa dava pra ver e ouvir la guerra: os bate-estaca, as serra, os caminhão de concreto, as tropa de operário, quello maledetto guindaste tutti i giorni em cima de noi e os prédio subindo, avançando, ocupando tutto. Ma continuamo vivo, grazie a dio.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Quando io saí de Laurito, em 1953, tinha dois milepouco morador. Hoje tem 800. Já essa rua Cristiano Viana, mamma mia. Noi mudamo pra aqui em janeiro de 1958, o Brasil não era campeão na Suécia ainda. Sessenta e cinco anni fa. Passou rápido, quase não vi. Essa Cristiano Viana tinha cinco automóvel. E digo pro senhor de quem. Dottore Pascoal Imperatriz, advogado. João Rizzo, taxista. Seu Manoel não lembro do quê, também taxista. E os irmão Mario e José Justo, donos de uma loja de sapato na Avenida São João. Ecco. Solo cinque famiglie com automóvel, punto e basta. Tinha quello único prédio de três andar na calçada de lá e o resto tutto casinha de portãozinho, murinho e jardinzinho na frente. Esse pedaço entre a Rebouças e a Artur de Azevedo era o mais bonito. Nessa mesma altura do ano, nas festa de São João, dona Ana trazia o curau, dona Clélia, a pipoca, outro vinha com a batata doce, mais um com o milho e io era o responsável por espalhar a areia e fazer a fogueira em cima. Una alegria. Passava a noite inteira os vizinho no meio da rua. Quase tutti velhinho. Io e dona Raffaella, minha senhora, noi era jovem. Hoje inverteu. Noi due siamo os velhinho e os vizinho novo que chegam aos monte são os jovenzinho. Ma entra, entra. Prendiamo un caffè.

Escuta, noi siamo do tempo em que um jardineiro podia ser proprietário de una casa aqui e criar quatro filho, não digo com tranquillità, perché nem sempre foi facile, ma pelo meno com dignità. Si signore, io trabalhei de jardineiro até os 82 anni. Agora tenho 93 e dona Raffaella também. Quase tutta la mia vita in Brasile foi de jardineiro. Ma, antes, quando cheguei, vendi doce na rua. Sfogliatelle. Conosci? Una massa folhada ripiena de creme e ricota. Io comprava os doce perto da minha casa na Bela Vista e revendia pra qualquer um. Pro mecânico, pro alfaiate, pro barbeiro, pro sapateiro. Descia a rua 13 de Maio, pegava a Maria Paula, viaduto Jacareí, Consolação e antes da Paulista a cesta com duzentas sfogliatelle tava vazia. Vendia tutto. Ganhava bem. Comprava cada doce por cinquenta centavos e revendia por um cruzeiro e meio, dois.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Ma o que acontece. Enquanto io não entendia o português, va bene. Quando comecei a entender que me chamavam de carcamano piolhento, de morto de fome, veio matar a fome no Brasil, volta pra tua terra, não aguentei. Digo no! Não vou engolir isso. Quero trabalhar, não quero ser humilhado. Io tinha 23 anos, era forte e corajoso pra tentar outra coisa.

— Ma perché tá falando disso, Filippo? É passato. Já foi.

— Dona Raffaella, falo perché ele quer conhecer la nostra história. E la nostra história é questa, cosa posso fare?

Então fui falar com um tio de Dona Rafaella que era jardineiro e ele me colocou na firma de um empreiteiro alemão, seu Guilherme. Meu primeiro jardim foi numa casa na rua Guadalupe, no Jardim América. Por sorte a patroa era italiana também.

No primeiro dia:
-- Filippo, não precisa mais trazer marmita. Semana que vem você come com noi.
-- Grazie, dona Amalia.

No segundo dia:
-- Filippo, quanto o Guilherme te paga a diária?
-- Sessenta cruzeiro, dona Amalia.
-- Ma que pouca vergonha! Ele me cobra 120.

No terceiro dia esperei o seu Guilherme passar de caminhão, acenei assim, ele parou e io fui falar com ele:

-- Seu Guilherme, quero ganhar 100 cruzeiro.
-- Não dá, Filippo. A firma tem 70 funcionário. Se eu aumentar todo mundo pra 100 cruzeiro vou ter que fechar.
-- Va bene. Semana que vem não venho mais.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Então fui na rua Florêncio de Abreu e comprei todas as ferramenta que um jardineiro precisa. Pus elas nas costa e tchum: Aclimação. Andava tutto lá. Quando via um jardinzinho feio, mal cuidado, io apertava a campainha: "Mi scusi, signora, posso cuidar do seu jardim? É 100 cruzeiro." Depois de tanti "não precisa", dei sorte. Dona Claudia, italiana também, foi a minha primeira cliente. E dali pra frente io progredi.

Cheguei a cuidar do jardim de 72 prédios. Trabalhei pro Andrea Matarazzo, na casa dele na esquina da Paulista com a Alameda Casa Branca. Hoje tem um edifício alto no lugar com o busto do dottore Andrea dentro. Dopo atravessei a rua e por um ano, um ano e pouco cuidei do jardim do irmão, o conde Francesco Matarazzo, na famosa mansão da Paulista. Cáspita, que bruta casa! Ele tinha planta lá que io nem sabia o nome. Planta da China, da Malásia, do Japão. Só via o conde de vez em quando. Buon giorno, dottore. Ele dava buon giorno e desaparecia. Ma che?! Dove si trova?! Por onde saiu? A governanta dizia que ele ia da mansão até o Hospital Umberto I por um túnel que passava embaixo da São Carlos do Pinhal. Ma non sei se é vero. O que é vero é que tutto que tenho nella vita io devo a essas duas mão. A essas duas mão e à inteligência de dona Raffaella. Perché enquanto io trabalhava, ela cuidava do nostro dinheiro. Sem dona Raffaella, estávamos até hoje no aluguel na Bela Vista. Não tinha essa casa que agora querem botar abaixo que nem as casa dos Matarazzo. Ma che! Nunca, nunca, nunca! Dona Raffaella é a grande responsável.

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A gente se conheceu no grupo escolar, com oito anni de idade. A professora fez a chamada: Salvatore. Presente! Giuseppe. Presente! Filippo Mauro, que sono io. Presente! Raffaella Mauro. Come?! Rafaella Mauro?! Io não tenho uma irmã Raffaella, não tenho uma prima Raffaella, nem tia, nem sobrinha, niente. Que Raffaella é questa com o mesmo sobrenome que o meu? Ela disse "Presente!" e quando io virei a cabeça pra ver, santo dio!, fiquei innamorato. Fui perguntar a mia mamma como podia ter uma Raffaella Mauro que não era nostra parente. Ela disse que Mauro era um sobrenome comum. Va bene. Aí noi começamo quello namorico de criança, escreve bilhetinho, toma o lanche junto, eccetera. O tempo passa, a gente cresce, tudo ia bem, ma chega la guerra.

Foi duro. Meno male que comida na minha casa nunca faltou, perché noi vivia da terra. Tinha vaca, cabra, trigo pro pão, galinha, peru, tutto. Minha mamma fez o enxoval das minhas três irmã trocando leite por lençol, queijo por prato, tomate por talher, trigo por louça. Dava pra viver. Só que ia ser de quello jeito, não tinha como melhorar. Dopo la guerra, io esperei melhorar um ano, due anni, tre, quattro, cinque. Niente. Tutto iguale. Io já era um uomo e minha mamma me passava um ovo por baixo do avental, assim pra ninguém ver, io escondia no bolso e ia trocar por um cigarro. Ma isso não é vita! Até quando vou pedir esmola dentro da minha casa pra poder fumar um cigarro?! Papà, mamma, io tenho que ver la mia vita. Vou embora pro Brasile.

— Foi tão triste o dia que ele partiu. Ma tão triste.

— Ti ricordi, dona Raffaella?

— Como fosse ontem. O ônibus encostou, o moço jogou tua mala em cima. Quando você segurou no apoio pra subir, tuo papà te puxava pra trás, tua mamma gritava 'Não vai, filho. Não vai perché non te vejo mais'. E io chorava. Ninguém queria que você viesse pra tão longe.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Ma io vim. E dona Raffaella ficou. No dia antes fui me despedir da mãe dela. Falei assim: Io vou, ma dentro de um ano se dona Raffaella não vai me encontrar lá io volto. Ela não acreditou:

— Filippo, você é solteiro, vai estar do outro lado do mundo sem tua mamma pra te controlar. Você vai fazer o que te der na cabeça. Toma questo queijo que io fiz pra você e vai com dio.

A sogra achou que io ia chegar no Brasil, arrumar outra e esquecer dona Raffaella. Ma che! Io cheguei no dia 23 de abril de 53. No dia 14 de julho saiu meus documento e io escrevi a carta de chamada pra ela.

— Ma mio papà não me deixava vir. A cidade inteira foi na nostra casa pedir pra ele deixar.

E io no meu quartinho na Bela Vista com a alma no purgatório. Até que em janeiro de 54 chega una carta de dona Raffaella: 'Mio papá deixou. Estou indo'. Ma esqueci de contar um pedacinho importante. Em catorze meses no Brasile, vendendo sfogliatelle, io já tinha juntado quinze mil cruzeiro pra voltar pra Italia. Io ia embora. Não aguentava a saudade. Io achava que se a gente se conosce desde oito anni de idade não pode ficar longe così. Mesmo sendo inocente de tudo, io juro pela minha mamma, que não vi mais mesmo, ela estava certa, que dio a tenha em bom lugar, ma io juro que noi era inocente. O que io mais queria era ter dona Rafaella do meu lado. Então, se o papà dela não deixava ela vir, io tava pronto pra voltar. Ma ela veio me encontrar.

— E tô aqui até hoje. Casamo na Paróquia Nossa Senhora Achiropita no mesmo ano que io cheguei.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

E se noi não tivesse junto, te falo pra você, não sei como ia ser enfrentar tutto. O que io chorei de saudade da minha mamma no colo de dona Raffaella não tá escrito. A primeira vez que conseguimos ir pra Italia de novo foi em 1976. Depois fomos mais quatro vezes, a última em 2009. Ma siamo felice aqui, em nostra casinha, com quatro filho e duas neta. Deu certo, grazie a dio. O que tem é que de uns ano até aqui tem mudado tutto muito rápido. Noi já tinha até visto uma outra casinha na Artur de Azevedo pra alugar. Chamei um sobrinho meu que é contabilista e ele fez as conta: três milhão e meio no banco dá 22 mil por mês. Dá pra pagar o aluguel, as conta e comprar a cereja de 120 reais o quilo que dona Raffaella gosta. É cara, vem da Argentina. Ma se dona Raffaella gosta, io compro.

— Seu Filippo, nos tapumes da obra do prédio aqui ao lado tem umas palavras escritas em inglês.

— O que tá escrito?

— What's next?

— Que cosa significa?

— É uma pergunta. Quer dizer 'E agora?'

Bene, quem tem que responder é quem vem morar aí. Per noi foi muito bom. E pra eles? Festa junina na rua não vão fazer. E vão andar a pé na rua ou só ficar dentro do apartamento? Vão poder ir na feira sem a carteira e mesmo assim voltar com o carrinho cheio? Vão passar no açougue na Teodoro Sampaio, pegar um quilo de pancetta e voltar só no dia seguinte pra pagar? Perché ter a confiança dos vizinho, dos comerciante, ser respeitado pra poder comprar fiado lava muito tempo, una vita inteira. Io caminho nessas rua todo dia e não vejo os morador os prédio novo. Só vejo os porteiro, no máximo os zelador.

— Deus me livre morar num prédio desses, né, Filippo?

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Nem pensar, dona Raffaella. Nem pensar. Se tiver que sair, andiamo pra uma casinha. Apartamento no! Ma o Antonio outro giorno veio dizer que o negócio da venda da nostra casa não deu certo. O vizinho da esquerda não quis vender a dele e a construtora desistiu, perché queria as três casa pra derrubar e subir o prédio no lugar. Dois terreno era pouco, ela queria os três. Então noi ficamo. Já temo prédio atrás, prédio dos lado e vamo ter prédio na frente. Siamo cercado. Ma sono cose della vita. Il progresso. Eles mudam tutto, io continuo: dou de comer às codornas, faço os meus cestinho de bambu e tricoto as minhas blusa e minhas meia de lã. Não compro meia, li faccio io. E tem feito frio questo inverno, hã?, é bom se agasalhar direitinho. Io vou te fazer um par de meia, va bene?

Filippo Mauro e Raffaella Mauro, ambos de 93 anos

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é uma trégua, um reencontro.