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Trombadas

As ondas curtas de Bil

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

23/03/2023 04h00

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Primeiro lugar eu quero dar bom dia pra quem vai me ouvir amanhã ou depois. Sou pernambucano, sou lá do Nordeste, vim da capital Recife pra São Paulo aprender a ser dono de casa e do meu destino. Porque meu pai me criou foi naquela indignação: vá a São Paulo saber o que é um quilo de arroz, um quilo de feijão. Lá você põe no prato só a parte que vai comer, não a mais a ponto de tirar de quem passa necessidade. Vá e tenha atenção no suor que escorre da tua cara. Mas eu vim também por curiosidade, achando que a casa de minha avó aqui era melhor de que a minha lá. Vim de Itapemirim num dia de 1979, um frio arretado. Minha mala era um saco. O cadeado, um nó. Igualzinho Zezinho Barro lá de Exu.

Desde os oito ano de idade meu pai me ensinou trabalhar. Eu era marreteiro, vendia embaré moleque, que era um docezinho pequeninho, quadradinho, que todo pernambucano conhece, o senhor não se preocupe com isso. Quando a safra de embaré moleque caía eu vendia amendoim. Doce, olha o doce! Amendoim torrado, olha o amendoim torrado, carreguei teu pai no carrinho quebrado! Eita, seu Bil, pro senhor é 5 mil! Bom dia, dona Bia, a senhora leva e paga outro dia! A vida do nordestino é essa aí, a gente tem que viver de poesia pra ganhar o pão de cada dia.

Em São Paulo eu comecei a trabalhar de servente de pedreiro com meu tio, que deus o guarde em bom lugar nessa hora. Ele arrumou pra mim um macacão com seis bolso, onde é que eu, com uma fome da peste, metia dois filão em cada bolso. Filão era aquele pão grandão que acha mais não, hoje só miúdo só. No serviço, cada picaretada que eu sentava no chão pra cavar a vala dos alicerce da casa dos ricão era uma mordida que eu dava no pão. Às onze hora eu almoçava farinha com o que tivesse: meu marmitão.

Fui desenvolvendo bem. No sábado recebia a minha mixaria e passava na estação, onde tinha o frigorífico, e comprava oito quilo de carcaça de frango. O senhor não conhece isso não. Carcaça é o espinhaço do frango, que a turma hoje em dia já não quer, mas pra nós era uma boa mistura e ainda é pra quem sabe cozinhar com prazer. Eu chegava na casa de minha avó e era bem tratado sábado de noite, domingo de dia e domingo de noite, onde eu comia o espinhaço do frango. Na segunda-feira já tinha acabado e se eu reclamasse apanhava, pois que minha avó escondia a mistura pra ela comer mais minhas tias e meus primo. Eu sofria calado com meus filão e minha farinha no marmitão, ia dizer o quê?

Mas deus me estendeu a mão. Hoje sou um homem casado. Fiquei dezenove ano amigado e tenho onze de casado, o que dá trinta. Me amiguei doze vez perante essa luz que hoje me alumeia, mas sem deixar criança nenhuma sem pai por aí. Na vez de número treze, casei. A primeira foi em Pernambuco ainda. Ela tinha oito fi e estava desagradada do marido. Por que o cara era o quê? Cachaceiro, maconheiro e festeiro. Eu na ilusão daquela idade de menino de ter uma mulher me amiguei mais ela. Tinha 13 ano, ela uns 28. Corage da bixiga né não? Se chamava Joana, eu nunca mais esqueci. Ela falou da relação, que o marido brigava, isso aqui, aquilo outro, então a gente fomos conversando, se acertando e se gostando. Às três da manhã, quando o marido saía pra roça, ela pulava a janela e corria pra cá onde que eu tava pra ficar perto de mim. Mas meu pai me mandou pra São Paulo e Joana ficou. Vim vindo. Três ano com uma, dois ano com outra, ano ali, ano lá e assim por diantes. Parava de dar certo quando um não queria mais cuidar do outro. E também se elas queria coisa boa que eu não podia dar por ser assim analfabetizado como eu sou.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Em Pernambuco eu fiz o primeiro ano. Oito vezes. Não passei nenhuma. Meu pai, minha mãe, esse negócio de escola não é pra mim não. Eu não sou capaz de guardar nada que presta na minha cabeça e as professora fica me apertando pra aprender, me apertando, me apertando. Saí. Quando vim pra São Paulo, nas obra aprendi a ler. Vinha o material e eu perguntava: O que é isso aí? Cimento, tá vendo escrito não? É que eu não sei ler. Mas ali comecei, vendo os saco de cimento. Ci-men-to. Ia devagarzinho, me apessoando cada vez um tanto mais com as letra. Mas ainda é muito difíci. Não sei ler realmentes tudo. For letra corrida então, vixe, aí lascou. Mas na letra de forma eu dou acabamento. As mensagem que de manhã cedo chegam no meu celular eu me esforço, presto atenção. Um dia abençoado pra você. Que deus ilumine a tua família. O amor vencerá hoje. Essas assim. Se consigo ler eu passo pra frente, praquelas pessoa que no meu entendimento eu acho que precisam. Nessa hora eu me sinto um homem feliz, por não saber ler mas contribuir com a população.

E mesmo assim, sendo um aprendiz, vamos dizer, eu trabalhei três vez em rádio aqui nessa Carapicuíba, visse? Rádio de fundo de quintal que a Anatel vinha e fechava, mas eu gostava do serviço e os ouvinte gostava de mim. Falava sim, senhor. Era apresentador. Inspirado por Eli Corrêa, homem de voz potente e elegante. Dava catorze horas ele começava: Oooooooooi, geeeeeente! Que saudade de você. Programa Eli Corrêa, o home sorriso do rádio! Cê entendeu? Eu ouvia, achava bonito e ia pegando. Meu jeito era assim: Boa tarde Carapicuíba, boa tarde São Paulo, boa tarde Brasil. Aqui hoje com você o Bil. Só eu, você e a saudade, boa tarde! Aí você telefonava e eu atendia: Alô, que fala? Olá, Bil, aqui é o Christian. Faz o que da vida, Christian? Sou jornalista. E você fala de onde, Christian? Falo da Fazendinha. Que música você quer ouvir, Christian? "Meu Ex-Amor", de Amado Batista. Alô Carapicuíba, alô São Paulo, alô Brasil. Atendendo o ouvinte Christian jornalista, que pediu um sucesso bem apaixonado de Amado Batista. Ele oferece pra sua esposa, pros seus filhos, pra sua neta e toooooodos seus familiares. Deixa o som rrrrolar! Eu levava a minha filha, que era criança de idade mas já crescida nas leitura. Ela anotava os pedido e procurava as música nos CD. Período muito bom de minha vida.

Tinha ouvinte mulher que pedia pra ir na rádio me conhecer. Chegava lá e eu assim que nem eu sou: banguela, de shorts e chinelo. O estúdio também não era aquelas maravilha. Então elas se decepcionava um pouco. É o mesmo que o seu caso. O senhor é jornalista mas ninguém sabe. Faz coisa que um cabra lá do outro lado ali admira sem lhe conhecer e aí tem curiosidade. É normal. Como é que esse cara aí escreve essas coisa tudo?, eles perguntam. Já não lhe aconteceu? Pois então. Na rádio comigo era igual. Eu me sentia bem de todo jeito, porque pela frente era uma coisa e por trás da microfonia do rádio a gente podíamos ser outra, quem ouvia é que imaginava. E minha vida foi assim, fazendo e acontecendo.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL
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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Eu tiro por mim: por eu ser um cara desenvolvido, a leitura faz muita falta, não vou mentir. Mas se você é um cabra que não tem vergonha, você veve. Os colega aqui no ecoponto me censura. Eles acha que eu entrei no serviço público com mutreta. Foi não. Tenho 23 ano de prefeitura concursado. Entrei de lixeiro, quer dizer, coletor, porque lixeiro é quem produz o lixo que nós coleta. E os morador joga tanta coisa fora que joga até manga, maçã, até pêra boa de comer. Eu comia. Depois fui coveiro, trabalhei em nosso cemitério enterrando rico orgulhoso e indigente sem roupa, tudo igual. Aí fui pedreiro, eletricista, encanador. Sempre auxiliando a população das classe mais baixa. O senhor não tem noção: é muito difícil ser pobre. Hoje eu sou operador de motosserra. E as modéstia à parte, sou um operador de motosserra desaforado, visse? Tem que ser. Subo no cesto do caminhão que me leva a 15 metro do chão. Dali em diantes, escalo mais dez metro no braço e nas perna e efetuo a poda das árvore que dá cupim ou em risco de tombar em cima das casa e dos fio.

Fiz concurso, sim senhor. As pergunta da prova vieram na letra de forma, pude fazer. Eu parava, analisava e na hora de escrever era só marcar a resposta certa com a letra X. Igual os cartão de loteria esportiva treze ponto. Tinha pergunta assim, vamos supor: O Christian jornalista é um bom jornalista? É razoávi? É ruim? É horrívi? Dessas quatro eu tinha que escolher uma e lascar o X. Ah, ele é um cara daqueles mas é razoávi. Então eu ia e marcava a resposta "razoávi". Isso eu tô dando exemplo que é pro senhor conseguir entender. O mais difícil era as pergunta com conta. Tem quatro tipo de conta, não é? O senhor me ajude aí. Somar e diminuir eu aprendi dando troco quando era marreteiro. Multiplicar e as divisão é complicado. Na calculadora eu não creio, serve de nada: quando a pilha fraqueja ela mostra o resultado errado, o senhor sabe disso. A sorte é que a prova pra gente que era ajudante-geral só pedia soma e diminuição. Os outros dois tipo de conta iam pros cargo mais alto, pras carreira, pros engenheiro.

Gosto muito do meu trabalho. É a melhor coisa que tem. Porque quando acordo de manhã e tomo um café pretinho eu sei que tenho pra onde ir. Depois, no fim do dia, eu sei que tenho uma casa e uma família pra voltar. Falando nisso, ó a Nega Véia chamando. O senhor me dá um minuto. Oi, amor. Tô ocupado agora. Dando entrevista pra Christian jornalista. Que entrevista? Contando a minha vida e a tua. Isso. Christian igual ao nosso neto que foi morto. Tá bem. Mais tarde eu lhe explico. Chau. Esse meu neto que era teu xará tinha 19 anos. Um moleque que tinha de tudo. Por a gente morar em área livre, a chamada favela, viver com dificuldade, não faltava nada pra ele. Nós dava de comer, de beber, de vestir e conselho. Mas uma hora ele parou de ouvir: começou andar de moto sem capacete, a ir pra baile funk. Um dia deu confusão no baile, ele ficou com medo da polícia, correu de moto e bateu. Eu tenho outros três neto. Sou ignorante, mas eles me falam: Vô, o senhor é um vozinho muito bom. O ocorrido com o mais velho faz dois anos. Dolorido demais. Tanto a mãe dele, que é minha enteada, e a Nega Véia ficaram desgostosa da vida.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Eu? Se essas coisas desse pra escolher eu queria ir dormir hoje e, vamos supor, amanhecer amanhã cedo lá deitadinho na minha cama, quietinho, geladinho, durinho, do mesmo jeito que me deitei. Sem dor, sem perceber, feliz. Mas é difíci conseguir morrer assim. A gente que é pobre corre muito risco. Quando não é enchente é bala, quando não é bala é ônibus que passa por cima na avenida, quando não é ônibus é barranco que desliza. Então sei não. E eu falo pra Nega Véia: quando eu me for, você trate de arrumar um outro véio pra você. Pra vocês dar o remedinho um pro outro, ir no shopping junto comprar xampu, prosear e você não ficar sozinha. Faça a tua vida, deixe passar não, entendesse? Pra outras coisa nem adianta, porque tem uma altura que você chega e não tem mais aquele apoio, aquela força, e prosear fica sendo melhor de que sexo.

Mas falta um tanto mais pra eu morrer. Se não morri quando bebia. Vixe. Foi antes de conhecer a Nega Véia. Comecei a desandar na cachaça inclusives por causa de uma mulher que não me quis. Era Drurys, era 51, era conhaque de alcatrão. Das 24 hora do dia eu ficava oito bêbo. Eu tinha uma madrinha macumbeira e eu ia no terreiro só pra bater tambor e filar a pinga, do que me arrependo, pois não se manga da fé de ninguém. Foi na macumba que eu conheci a Nega Véia. O nome dela é Cida. Eu chamo de Nega Véia que é uma forma de carinho nossa em Pernambuco. Ela ia no terreiro levar o marido pra curar ele dumas ferida na cabeça. Não curou, ele morreu e nós ficou junto. E desde então parei de beber, porque a Cida deu a ordem e eu também já estava com medo. Cheguei num ponto com a bebida que via uns capeta com o galfo querendo me matar, me furar todinho, me apunhalar nas parede. Eu dormia e no meio da noite acordava num susto da bixiga. Mas que coisa é essa? O pata de bode dentro do meu quarto vindo de galfo pra cima de mim e eu gritando sem poder fugir. Até que eu pensei: isso aí é o mé, Bil. Aí decidi parar, parei e toda vez que dava vontade de beber eu chupava uma bala. Funcionou, sim senhor. Faz 30 anos que eu tô seco, o tempo que tenho ao lado da Nega Véia.

Agora, sonho desses que se tem de sonhar de olho aberto, eu sonho com um terreninho de dez metro de frente por 25 de comprido. Ia fazer dois cômodo, uma área com terraço pra eu mais Cida se sentar nas cadeira e se divertir e plantar um coentro, uma macaxeira, um pé de jaca. Aí sim, visse. Quem sabe quando eu me aposentar. Pra completar a pensão pensando no terreno eu acho que vou fazer divulgação pras loja de rua. Pego o microfone aqui e ó: Alô, dona de casa, bom dia. Seja bem-vinda na Loja Marabraz, a loja que vende muito mais. Como vai, meu senhor, bom dia. O senhor está na Casas Bahia, antes de casar era o senhor que decidia. Eu gosto disso. Mas posso também ir vender bolo de manhã na estação. Saio de casa três e meia, quatro hora e fico na porta da estação até nova hora. Aí volto pra casa, tomo meu lanche, descanso e sigo pro microfone nas loja até uma cinco da tarde. Retorno de novo em casa, tomo um banho, dou um cheiro na mulher e volto pra estação, aí pra vender um gatinho assado até umas nove da noite. De que mais um cabra precisa?

Severino Francelino da Silva, 57 anos, o Bil

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é uma trégua, um reencontro.