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Trombadas

As pedaladas de Ita

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

27/07/2023 04h01

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O futebol nunca me deu nada. Mas o futebol sempre me deu tudo. De bem material, só tenho a minha bicicletinha mesmo. Não ando de ônibus, metrô, trem, Uber, nada. Só de bicicleta. Vou no banco, na farmácia, no mercado, carrego nela as bolas dos treinos e os uniformes da garotada, a minha sobrinha-neta, o cachorro, tudo, tudo, tudo. Nessa Guaianases inteira o povo me conhece por causa dessas duas coisas. Lá vai a Ita da bicicletinha! Lá vai a Ita do futebol! Minha bicicletinha é meu único patrimônio.

Agora, se a gente for falar do que eu ganhei dentro de um campo, aí, cara, aí eu sou milionária. Juntei uma fortuna. Só que são coisas que ninguém vê. Sinais interiores de riqueza, sabe como é? Pra você entender. Ontem eu conversava com uma amiga, desabafava sobre meu momento financeiro apertado, com pouco trabalho, e ela me pergunta: Mas, Ita, até quando você vai ficar nisso de futebol? Você tá envelhecendo, mulher, e insiste nisso ainda? Não tá na hora de acordar e fazer a sua vida, não?

Pôxa. Como é que eu explico pra pessoa que eu não posso, não consigo e não quero deixar "isso de futebol" porque "isso de futebol" é a minha vida? Como é que a gente abandona uma paixão, um amor, um sonho, um troço que faz a gente se sentir bem? Se mata? Não aprendi isso não. Agora que tô com cinco ponto três bate um cansaço de nadar contra a correnteza. Mas se parar eu afundo de vez. Então sigo jogando, ensinando, ajudando outras meninas a sonhar, a se divertir. Sigo vivendo, né? Sei lá, viu, às vezes parece uma missão. É maior do que eu.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Ah, isso de futebol, como diz a outra, vem de muito longe. Vem de Aguada Nova, sertão da Bahia, aquele sertão bem seco dos livros e da televisão. Eu, mais três irmãos, pai e mãe. É roça, bem afastado da cidade. Nasci e vivi ali em vários períodos, indo e vindo conforme meu pai conseguia trabalho noutros lugares e carregava a gente. Miséria, né? Lembro que meu pai ia à feira na cidade e voltava trazendo farinha e mais nada. Um dia eu perguntei 'Mas, pai, por que o senhor nunca traz uma fruta, algo diferente pra gente comer?' 'Porque o meu dinheiro não dá. Eu trago o que rende, não adianta comprar fruta e comer um dia só.' Pegou a matemática do sertão? A farinha dava pra misturar no feijão, que a gente plantava e colhia, e aí tinha comida pra semana inteira. Era assim. Outra coisa que eu lembro é de apanhar depois de fazer uma bola com as meias de meu pai. Ele só tinha um par, era pra batizado, missa, casamento, velório, ocasiões importantes, e eu chutando as meias dele no quintal. Resumindo: a minha primeira alegria com o futebol terminou assim, em pancada.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

A verdade é que pancada nunca me faltou. Mas a minha canela é dura. A que mais doeu nem foi física, se você quer saber. Foi só na palavra. Aconteceu que um tio nosso que morava aqui no Sul todo ano voltava pra Aguada Nova levando presentes. Coisinhas bestas, uma balinha, um chinelinho de dedo, um corte de tecido pra nossa mãe costurar um vestidinho. Meu deus, como a gente esperava por esse dia. Teve um ano que o tio me deu uma boneca. Foi o primeiro e único brinquedo que eu ganhei em toda a minha vida. Eu devia ter uns sete anos. Abracei a boneca, e até hoje eu sinto o cheiro dela, abracei e falei 'Ai, tio, ela é tão bonita, muito obrigado, mas eu queria ganhar uma bola de futebol.' Ele virou pra mim, muito bravo e 'Pra que você quer uma bola?! Bola não é coisa de mulher!' Eu peguei a bonequinha, saí prum canto e me bateu uma tristeza, mas uma tristeza que eu nunca tinha sentido. Eu não entendia o que estava acontecendo. Por que era tão errado querer uma bola?

Outra lembrança que eu tenho desse tempo na Bahia, uma imagem bonita até certo ponto, era a gente jogando futebol ao luar, uma lua imensa que clareava tudo. No sertão, a lua faz a noite quase virar dia. E ali, como ninguém tinha televisão, nem eletricidade existia nas casas, as famílias saíam nas noites de luar pra se visitar. Nessas horas, eu e umas amigas corríamos pruma ruazinha deserta, colocávamos umas pedras pra fazer os gols e dá-lhe futebol. Tudo rapidinho, porque as visitas e as conversas não duravam muito tempo e os pais de algumas meninas não gostavam que elas jogassem. Os meus eram indiferentes. Desde que eu não roubasse as meias de meu pai pra fazer bola, tudo bem. Mas os pais das minhas amigas não podiam saber. Então a gente jogava escondido.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Essas partidas ao luar nunca terminavam, porque lá pelas tantas os pais se despediam, tchau, fica com deus, até amanhã, gritavam os nossos nomes e a gente voltava correndo. Onde vocês estavam? Brincando de esconde-esconde. Mentira, né?, a gente tava jogando futebol. Mas e o medo do falatório? Meninas jogando futebol? Ih, você viu a filha de Sebastião? Mulher-homem. E a filha de Joselito? Tão novinha, maria-macho. Gilvanete, minha amiga, teve uma hora que perdeu o nome. Ninguém mais chamava ela de Gilvante. Era só Machadão. É a primeira vez que tô contando isso, porque me emociono. Gilvanete ficava tão ferida, tão machucada. Aonde fosse, por onde passasse, caçoavam, apontavam. Lá vai Machadão. Era minha amiga da escola e eu sangrava junto com ela.

Aí tinha os bailes de formatura, as festas de São João, do padroeiro da cidade, tem festa pra tudo na Bahia, vinha banda de Irecê, a cidade próxima maiorzinha, muita gente na rua, só alegria. Mas pras meninas que jogavam futebol era uma tristeza. Porque a gente não conseguia dançar, não conseguia namorar. Menino nenhum queria conversa com a gente. Pelo contrário: eles olhavam e ficavam de risadinha. Meu deus, como esquecer dessas coisas? Bem que eu queria. Doía tanto. Teve um amigo de meu pai, amigo de comer em nossa mesa, um dia ele passou, me viu jogando futebol e gritou 'Vai, Roberto!' Porque ele era vascaíno e gostava do Roberto Dinamite. Só que não foi um elogio. Foi deboche, censura, crítica. Eu era uma criança se divertindo na brincadeira favorita dela. Mas futebol?! Acho que seria menos pior se estivesse assaltando o banco da cidade. São sentimentos pesados pra uma criança. Por mais que eu não me desse conta, não entendesse o deboche, é uma coisa que marca a gente. Fica.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Mais pra frente, ainda em Aguada Nova, comecei a praticar futebol na escola. Uma professora de Educação Física, dona Cleuza, notou meu interesse e o de outras três meninas e botou a gente pra jogar com os garotos. Times mistos. Eles reclamaram, xingaram, não quiseram de jeito nenhum. Diziam que não dava jogo, que a gente atrapalhava. Aí dona Cleuza deu uma enquadrada neles. Vocês não querem jogar com as meninas? Então tá bom. A partir de agora, em vez de jogar duas vezes por semana, vocês jogam uma, porque o outro dia vai ser inteiro delas.

Cara, a professora sertaneja bancou o futebol feminino lá naquele fim de mundo, cê entendeu? Não tem um dia em que eu não pense em dona Cleuza desde que fundei a Asape, Associação Atlética Pró-Esporte, dezoito anos atrás. A gente usa o campo do CEU Jambeiro pra treinar três vezes por semana. Comecei com meninas e hoje tem meninos também. Daqui saíram Miriam, que tá no profissional do Corinthians, Rafaela, do São José, e outras garotas que jogam futsal na Espanha e Portugal. Trabalho voluntário, não recebo um tostão. Recentemente cortaram o nosso lanche. Se fosse uns anos atrás, quando eu estava num emprego legalzinho, isso não ia fazer diferença. Eu mesma iria até a padaria, compraria pãozinho, queijo, mortadela e beleza. Mas hoje eu não posso, infelizmente. Também não tenho transporte pra levar a turma pra jogar fora. A única coisa que eu tenho é o material, que eu cuido como se fosse um pote de ouro. Costuro as bolas que perdem os gomos, lavo as camisas, deixo tudo arrumadinho. E levo pra cima e pra baixo de bicicleta. Aliás, esses dias me disseram que não posso mais estacionar minha bicicletinha aqui dentro. E lá fora já me roubaram duas, tô vendo a hora que vão roubar esta também.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Mas voltando: em Aguada Nova o futebol era só a minha brincadeira favorita. A primeira vez que eu joguei de forma organizada foi em Santa Helena, Goiás, pra onde meu pai tinha carregado a gente. Um dia eu tô sozinha em frente de casa chutando a bola e uma vizinha, de saco cheio do barulho, diz 'Ei, garota, por que você não vai jogar mais pro fim da rua? Tem um campo lá. O caseiro até treina um time de mulher.' Fui na mesma hora. Era o estádio da cidade. E o roupeiro do time, seu Lola, que morava numa casinha ali dentro, treinava uma equipe de garotas. A primeira pergunta que ele me fez: 'Você joga de quê?' Eu: De Flamengo. 'Não, menina, que posição no campo você joga?' Nunca tinha me passado pela cabeça que existia posição certa pra jogar. Eu também nunca tinha calçado chuteira. Seu Lola guardava os refugos do time masculino e passava pra gente. Tudo chuteira rasgada, detonada, tamanho 41 pra cima. Pra dar certo no meu pé 36 eu usava com dois meiões e preenchia o resto com jornal. Naquele primeiro dia, seu Lola me mandou voltar no sábado pra fazer um teste. Me me deu a camisa 10, me pôs de meia-esquerda e eu fiquei pra sempre.

Aí começa uma paixão dentro da paixão: Diego Armando Maradona. Cara, eu fui procurar saber o que fazia um meia-esquerda camisa 10, caí em Maradona e foi fulminante. Até hoje eu amo esse tranqueira. Tenho mais de cem fotos dele e trocentos recortes numa pasta. Outro dia eu tava vendo um vídeo, Maradona já famoso jogando num campo que era pura lama. De agasalho pesado, imundo, um dia frio horrível, e ele sorrindo. Eu me vi ali, sabe? Não era pra ninguém estar jogando futebol naquela situação. Mas Maradona estava — e estava se divertindo. Aquilo tocou meu coração. Poucas coisas no futebol são mais emocionantes do que ver Maradona com a bola. Parece que ele está noutra dimensão, que não existe mais nada em volta. Tudo contra ele, a lama, a droga, os zagueiros, a Fifa, a mídia, e ele sorrindo se estivesse com a bola. A maior beleza do futebol pra mim é essa: dar um nó no impossível, no não-pode. Como não pode? Quem falou que não pode? Eu amo esse negócio, me faz feliz, eu vou jogar sim. Me deixa em paz! Tempos depois eu comecei imitar o visual de Maradona. Cabelo encaracolado, tornozeleira por cima da meia, chuteira amarrada na canela, meio troncudinha. Isso já era São Paulo. Foi quando joguei no Corinthians. Mas se me sobrava amor por Maradona, me faltava a canhota dele.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

É, disputei umas competições pelo Corinthians, pelo São Caetano, mas numa época em que o futebol feminino não era tão forte e organizado. Não tinha salário, prêmio, nada. Só promessa. Que não cumpriam. Nunca ganhei pra jogar futebol. Pelo contrário: paguei. Quando eu vim pra São Paulo, porque não aguentava mais aquela miséria na Bahia e porque alguma coisa me dizia que tinha mais vida pra mim aqui, logo fui jogar no Elite Itaquerense. Uma amiga do colégio me levou. O clube existe até hoje, mas o futebol feminino deles, futsal na verdade, que foi bem forte, supercampeão, não existe mais. Era uma experiência social do treinador, também diretor lá, um cara chamado Moreno. Ele queria arrebentar o conservadorismo do clube. Estamos falando de 30 anos atrás, veja só. O Moreno era um visionário. Um provocador. O clube nunca quis um time feminino, mas a gente vencia tudo, então pegava mal encerrar. O jeito era dificultar, espalhar pedra no caminho. Fizeram de tudo. Botaram mensalidade pras jogadoras pagarem, impuseram que a gente limpasse o ginásio depois dos bailes de formatura pra poder treinar, e treino só por duas horinhas no final do sábado, depois de toooooodas as categorias do masculino. Eu trabalhava de balconista de loja, salva-vidas de piscina, uma porção de coisas, pra me manter, ajudar nas vaquinhas que o Moreno fazia pra gente ter uniforme, lanche, transporte pros jogos, pra pagar taxa de inscrição nos campeonatos, tudo isso.

Depois de uns sete anos como jogadora, o Moreno dobrou a aposta: me colocou de treinadora da escolinha de futebol do clube, que naquela altura era só de meninos. No meu primeiro dia, eu tô entrando na quadra, o pai de um aluno se põe na minha frente: 'Cadê o professor?' Eu toda paciente e educada, como o Moreno disse pra eu ser: Pai, o professor foi desligado, a partir de hoje eu estou assumindo a turma. O homem já estava dentro da quadra pra tirar o menino dele quando falou 'Com mulher meu filho não treina. Uma técnica de futebol. Onde já se viu?' E foi embora. Na hora eu quis desistir, porque me passou um filme na cabeça: bola de meia, a boneca, Gilvanete, Vai, Roberto!, a solidão nas quermesses. Mas o Moreno me convenceu a ficar e a fazer uma faculdade de Educação Física, que concluí com muito sacrifício. Mas, olha, tudo valeu a pena, sabia? Se tivesse a chance de renascer e escolher que rumo tomar na vida, eu tomaria esse mesmo. Faria tudo de novo. Eu e a bola, como Maradona.

E vou te dizer por quê. Semana passada, estamos eu e minha bicicletinha paradas na calçada, esperando o farol abrir. Pelo canto do olho vejo um vulto no meio dos carros. Me viro, um rapaz vem correndo em minha direção. Todo sujo, as roupas puídas, sem higiene, um jeito meio de nóia. Pronto, vai levar a minha bicicletinha, pensei. Mas ainda lá do meio dos carros ele grita meu nome. 'Ita, Ita, professora Ita.' Ô, rapaz, quem é você? A senhora não lembra de mim? Eu sou o fulano, fui seu aluno, joguei futebol com a senhora. Eu realmente não me lembrava do menino. Ele continuou: 'Ah, eu era tão feliz quando jogava futebol. Hoje as coisas estão meio difíceis pra mim, mas é sempre bom lembrar daquele tempo. Posso dar um abraço na senhora?' Eu só não chorei porque não sou de chorar. Mas fiquei com esse puta nó dentro do peito. Futebol é isso aí, cara, cê tá entendendo? E isso aí. Chega de papo, vai. Já falamos demais, tá louco. Acho que nunca falei tanto na vida. Vai lá no gol, que eu vou bater um pênalti. Te digo em que canto eu vou chutar e se você defender eu pago um suco. Tá pronto?

Edinei dos Reis Gericó ("mas meu nome de jogadora é Ita Maia Reis, botei o Maia de minha mãe"), a Ita, 53 anos

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é uma trégua, um reencontro.