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Trombadas

A borboletinha de Pascoal

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

10/08/2023 04h01

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Cê me da uma licença de sentir saudade hoje? Não leva a mal não. Nesse agosto agora faz quatro anos que a minha menina partiu desse mundo. A saudade é muita. Noite passada sonhei com ela. Um lugar de morro, com flor, passarinho, muito claro de sol e a minha menina correndo sem ficar cansada, sem sentir dor. Ela tava feliz, dava pra ver. Eu mais minha mulher abraçado no fundo, só olhando e sentindo feliz junto. E de fato ela corria, corria, corria sem parar, se divertindo com as outras crianças, coisa que ela não podia fazer aqui por causa do problema no coração que ela tinha. Saudade das grande. Essa menina era a minha paixão, um presente que chegou pra mim. Os outro diz que criança com Síndrome de Down é especial, só que muitos fala isso da boca pra fora, sem saber. A minha menina era especial mesmo. As coisa nela envolvia tanta alegria, tanta coisa boa, e até umas coisa mágica, de fé, que eu conto e ninguém acredita.

Por exemplo. Quando tinha uma semana que ela faleceu, depois da missa de sétimo dia, eu mais minha mulher nós dois na pracinha perto de casa, sentado, veio uma borboletinha e sentou nos meus pé. Sentou e ficou acho uns quinze, vinte minuto pra mais. Amarelinha. Depois pegou voo e foi embora. Aquilo ali, eu senti que era a minha menina que tava ali, porque ela gostava de fazer isso: sentava nos meus pé e ficava. Então bem provável que sim. Ela trazendo uma mensagem de alegria pra nós naquele dia. Dizendo que ela tava bem, que era pra gente não ficar triste não. Mas como é que não chora numa hora dessa?

Quer ouvir outra? A minha menina levou seis ano pra andar. Até os seis ano de idade ela só engatinhava. Nessa época eu trabalhava no Bom Retiro e morava aqui na comunidade no Jardim Boa Vista. Um fim de tarde eu chego do serviço e ela tava sentadinha na porta de casa. Os outro menino e as outra menina tudo brincando de correr, de bola, de bicicleta. E ela só assistindo, porque não andava. Me cortou o coração. As lágrima em mim descia. Naquele dia eu ajoelhei e pedi a Nossa Senhora que se ela andasse era de eu ir na Aparecida do Norte e ficar dentro da igreja mais minha menina um dia inteiro até a hora de vir embora. Sem sair, levantar só pra ir no banheiro. Dito. Com uma semana ela levantou e saiu andando. Eu falo pra você: acontece umas coisa e as pessoa não acredita.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Tem mais também. Quando a minha menina tava com nove ano ela operou o coração. Ficou 46 dia internada no Hospital São Paulo. Minha mulher ficava na semana e eu ia na sexta até o domingo de noitinha. Teve um domingo que eu bati de volta em casa, pra dormir um pouquinho pra ir pro serviço na segunda-feira de manhã, eu entro e duas irmã minha lá. Tão fazendo o que aqui?! Na mesma hora eu pensei na minha menina. Elas falaram que era pra eu ser forte. Que ela tinha piorado, o médico desenganou e não sobrava nem mais uma hora de vida.

Baixei de novo pro hospital. O peito amarrado que só e um bolo de choro na garganta. Quando entrei e vi a minha menina ligada naqueles aparelho eu de repente comecei dar risada. Do nada. Uma coisa de fora, não sei explicar. Minha mulher estriou comigo: Tá rindo de quê, homi?! O que deu em você?! Não sei o que me deu. Só que eu tinha uma certeza que não era a hora da minha menina ainda. Eu senti um sentimento forte, tão forte dentro, alguma coisa me dizendo que não era daquela vez. Deu três dia ela já tinha arrancado os aparelho e tava pronta pra ir pra casa. Ficou até os 28 ano com a gente, dando alegria pr'esse mundo.

Aí depois desse dia no hospital eu fui falar com uma tia minha, muito devota ela. Bem que eu desconfiava: Tia, a senhora fez alguma coisa? Claro, ela tinha feito promessa. Se a minha menina escapasse ela ia acender uma vela do tamanho dela na Aparecida. Então tocamo todo mundo lá. Antes, paremo no Carrefour e minha mulher comprou um filme de 36 pose, que naquele tempo batia fotografia com máquina. Na Aparecida a mulher tirou o filme todinho e não é mentira: só saiu uma fotografia, eu tenho ela até hoje em casa, era justo aquela que minha menina tá mais minha tia e a vela. O resto queimou, uma por uma.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Então tem dessas coisa inexplicável. Ninguém precisa acreditar, ninguém precisa achar que uma religião é melhor que a outra, ninguém precisa caçoar, pôr de lado, nenhuma coisa nem outra. Só precisa respeitar e ter fé, porque eu penso desse modo: se você pedir com fé você é atendido. No meu caso eu acho que vem da família mesmo. Nós foi criado assim lá na Bahia. Meu pai é homem de muita fé. Tá com 86 ano e todo dia sai pra carpir, cuidar das criação, a casa dele na roça da nossa cidadinha de Lagoa Real tá sempre aberta e cheia de gente. Mas inclusive meu pai teve os dia ruim. Sendo forte e tendo fé, mesmo assim. Não sabemo. Deu dele ficar triste pelos canto, mudo, só abrir a boca pra mandar os outro sair de perto. Nem parecia a mesma pessoa de antes. Ficou uns seis ano desse jeito.

Aí outra vez que fui na Aparecida, e quando eu chego lá falo logo: Vocês têm que passar na frente da santa, senão não adianta ter vindo, nesse dia eu parei na frente da santa pra pedir uma bênção a meu pai, comecei a arrepiar e caí no chão. Foi um tombo só. A fé de tão pesada me derrubou. Deu três dias depois liguei pra minha mãe pra saber como é que tava o pai. "Meu filho, não sei o que aconteceu, pois hoje teu pai desenvergou: tá reto, falando, contando causo e já saiu pra cidade." Cê tá vendo essas coisa?

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Então quando deu o fim do ano e eu fui daqui pra lá, peguei mais ele e fomo os dois no Bom Jesus da Lapa agradecer. Conhece Bom Jesus da Lapa? Fica 200 quilômetro de Lagoa Real subindo, já na beirada do Rio São Francisco. Se puxar no YouTube você vê. Uma força da natureza de lugar tão bonito. Vai romeiro do Brasil todinho. Uma igreja de pedra muito antiga achada pelos vaqueiro e um cruzeiro no alto do morro donde a gente sobe e avista como daqui até Pinheiros de vista livre. Põe bonito nisso.

Minha mãe, não. Minha mãe é falecida. Já tava doente, um dia voltou do hospital e falou assim: Hoje vai acontecer uma surpresa. Vai ser muito boa pra mim, mas pra vocês vai ser ruim. Aí ela tomou banho, comeu bolacha, um café com leite e perguntou a meu pai: Que horas que é? Ele respondeu: É dez pras nove. Pois tá na hora. Foi se deitar na cama e nunca mais levantou. Em Lagoa Real tem muito dessas coisa.

Eu vim embora pra São Paulo com 21 anos. Já era casado e minha mulher tava esperando a nossa menina. Mas nós nunca que imaginou sair de lá. Era a nossa vidinha de plantar, colher, cuidar dos bezerro, agarrar no gol no futebolzinho quando dava, essa vida assim. Eu e meus irmão homi mais o pai trabalhamo muito em carvoaria também. Se tirar chapa nós deve ter carvão nos pulmão até hoje. E todo sábado tocava eu mais minha mãe e a mulher ir na cidadinha fazer compra. Nove quilômetro de a pé embaixo do sol. E justo nesse sábado pela primeira vez um besouro mangangá veio rodear nós o caminho inteiro. Tem muito esse besouro na Bahia. Preto, grande. Eu abanava ele pra longe, mas o danado voltava. Não queria ir embora. Até que minha mãe falou: "Vocês dois vão fazer uma viagem distante e importante. Quando o mangangá rodeia é sinal de viagem". E não foi? Voltemo pra casa e tava lá de visita um cunhado que já morava em São Paulo. "Vocês não querem ir pra São Paulo comigo? Tem mais oportunidade lá. Eu dou abrigo até vocês se arrumarem." Aí nós viemo.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Diz que homem não chora, mas o que eu chorei de saudade e com vontade de voltar pra Bahia não tá escrito em livro nem documento nenhum. Aqui era muito diferente de lá, tudo. Trabalhei na metalúrgica que fazia peça pros fogão Dako, depois na firma de terraplanagem. Conhece a Avenida Faria Lima? Virei várias madrugada ali tirando terra e enchendo caminhão pra abrir ela, a Avenida Faria Lima. Hoje ela tá lá, todo mundo passa por cima sem saber quem fez. Eu sei. Aí arrumei serviço de faxineiro numa escola no Butantã e depois nessa outra escola que tô até hoje, faz 23 ano. Passado uns tempo na casa do cunhado, nós pensamo de comprar um barraco. Eu só virava na hora extra, não tinha tempo e pedi pra mulher procurar. Ela achou um que custava dois mil cruzeiro. Nós tinha juntado três mil, ela fechou negócio. Mas no dia do domingo que eu folguei no serviço e fui olhar, ôxe, foi só tristeza. Lama. Tudo era lama. Muita lama. A comunidade não era como é hoje, com as rua asfaltadinha e as viela feita. Era como dava. O nosso barraco era de madeira, dois cômodo e passava o esgoto por debaixo. O que eu senti foi desespero. Mas o negócio tava fechado, não tinha como desfazer. Além disso nós tinha a precisão de sair do favor na casa do cunhado e fazer a nossa vida.

Agora eu paro diante da nossa casa de hoje, que eu subi, passo um tempo admirando e pergunto pra mulher: Minha Nossa Senhora, como foi que nós conseguiu isso tudo? Vou falar pra você: tem garagem, sala, cozinha, três quarto, dois banheiro e mais dois cômodo com outro banheiro donde a mulher faz as costura dela. A nossa vida evoluiu. Agora todo ano eu volto pra Bahia, vou no meu carrinho e posso até pernoitar em Minas, num hotelzinho. Me sinto realizado. Acho que é um mistura dessas três coisa: trabalho, fé e sorte de encontrar pessoa boa.

O melhor encontro? O melhor foi com a minha menina, que alegrou a nossa vida, mas teve mais muitos outros bom. Pessoa que te ensina as coisa, te ajuda, te reconhece valor, mesmo que não seja um valor muito alto, mas é valor também. Qualquer um tem valor. Aqui na escola donde que eu trabalho é assim. As criança tudo gosta de mim. E criança é verdadeira, não sabe fingir sentimento. Elas gosta quando eu conto que meu nome é Pascoal porque eu nasci no domingo de Páscoa. Quando eu paro os carro na rua pra elas atravessar. Gosta quando eu carrego o mastro de São João na nossa festa junina. Até eu gosto. Antes eu tinha vergonha, era muita gente vendo, mas hoje é uma alegria. Acostumei. Vai dando um mês antes eu já vou ver como tá a minha camisa branca, se tá certinha, se precisa lavar, se precisa quarar, porque é uma data muito importante e eu gosto de ficar alinhado. Sou feliz nesse serviço. E isso é sorte. Já pensou trabalhar 23 anos donde você não é feliz?

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

E acontece de monte. Por exemplo, outro dia eu peguei o ônibus daqui pra lá e na hora de passar na roleta dei conta que o cartão tava sem crédito. A cobradora virou pro motorista e falou pra todos passageiro ouvir: Pode abrir a porta que rapaz vai descer, hoje ele tá sem dinheiro pra voltar pra casa. Só pode ser infeliz no trabalho dela uma pessoa dessa. Eu senti a pele da cara queimar de vergonha. Mas o motorista do mesmo jeito que tava só olhou pra cobradora pelo espelho e respondeu: Esse moço toma ônibus comigo aqui faz anos e eu nunca que vou largar ele no meio do caminho. Ele vai seguir viagem por minha conta. Eu falo pra você que tem pessoa boa. Tá cheio.

Outra vez, logo que eu cheguei em São Paulo, fui na loja Buri comprar um gravadorzinho com dois alto-falante. Naquele época precisava mostrar a carteira profissional pra abrir crediário. E fazia um mês só que eu tava fichado na metalúrgica do Bom Retiro. Aí a menina vira pra mim e "Como é que pode a pessoa ter um mês de carteira e querer fazer prestação?" Isso me jogou no chão. Eu nem sabia o que falar. Já tava esticando a mão pra pegar a profissional de volta, mas veio o gerente da loja e falou por mim: Escuta, moça, não tá vendo que é trabalhador não? Tem cara de vagabundo por acaso? Você abra o carnê dele, que se ele não pagar pago eu. Uma coisa que a gente não esquece. Prova de que existe pessoa boa por aí. E a gente precisa ser bom pros outros. Precisa ser bom. Precisa respeitar, confiar. Porque no fim das conta você tem que ter quem pegue nas alça do seu caixão. Se for ruim pros outro, mau, quem vai querer?

Eu sempre procurei ser bom. Acho que foi por isso que ganhei a minha menina de presente. Que Deus me deixou ser pai dela. Foi presente. Nunca reclamemo, nunca perguntemo por quê. Ela foi a maior alegria da minha vida. Quando ela nasceu a minha mãe até falou: "Essa menina não podia ter escolhido um pai e uma mãe melhor, veio pras pessoa certa". Nós amou muito ela. Mas as vezes parece que eu falhei em alguma coisa, que eu devia ter feito mais. Falei desse sentimento pro médico dela, um japonês, e ele disse que eu parasse de pensar besteira, que nós cuidemo muito bem dela. Eu acho que é saudade que me deixa assim, porque, se eu te falar, eu sinto muita falta mesmo, nem adianta. Tem dia que eu tô andando na rua e sem querer estico o braço pra pegar na mão dela, que ela gostava de ir comigo segurando a minha mão. Cê vê?

Também faz falta ouvir ela me chamar de Tiziu. Em São Paulo ninguém sabe desse meu apelido que me deram quando eu era menino. Mas na Bahia ela ouviu meu pessoal me chamar de Tiziu e ficou. "Tiziu, vamo brincar. Tiziu, vamo embora? Tô cansada. Tiziu, vamo passear de carro. Tiziu, hoje eu vou esperar você chegar do trabalho." Agora ninguém não me chama mais de Tiziu. E até naquele sonho que eu tava contando pra você mais cedo teve isso de diferente. A minha menina me chamou de pai. "Pai, vem correr comigo. Vem, pai."

José Pascoal Gomes Dourado, 57 anos

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é uma trégua, um reencontro.