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Trombadas

As 'besquisas' de Mohamad

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

08/06/2023 04h01

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Eu brecisa estudar mais. Estuda bastante, mas brecisa mais. Estuda bra acertar no Mega-Sena, bra arranjar segunda esbosa e bra ver se fica em Brasil ou muda bra outro baís. Os outros dois coisas difícil, ganhar no Mega mais fácil. Em doze anos em Brasil eu acertei dez vezes no quadra, quase um vez bor ano. Oitocentos, mil, mil e quinhentos. Brêmio maior acho que dois mil. Mas besquisa muito. Não dá certo jogar qualquer número. Tem número forte e número fraco. Eu besquisa, não joga de olho fechado. Mas não vai ensinar, senão você ganha e eu não ganha.

Meu cidade chama Kabelias. Fica em vale do Becaa. É leste do Líbano. Não tá em Street View. Se você tenta ver os ruas, não dá certo, não tem. Só indo lá. Sim, saudade. Mais saudade de tempo de menino. O família toda no chácara do avô bra fazer colheita de nozes em mês nove e mês dez, antes de frio. Quando tem sonho com Líbano é isso: a colheita das nozes com família toda junto. Outro dia sonho foi que colhia nozes aqui em Arouche. Eu e meus brimos. Não entendeu nada. Mas é bem bonita meu cidade. Tem maior feira de verdura do região. Tem tudo. Açougue, escola, farmácia, loja. Só não tem trabalho, borque Líbano tá falido. Aí hoje meu cidade não tem nada bra gostar lá, só família. No meu cabeça, Kabelias ficou sendo lugar de sem esberança, entende? Bor isso saiu bra Brasil.

Aqui eu trabalha e ajuda família. Manda 400 dólares todo mês. Bai é badeiro mas não acha trabalho. Mãe cuida do casa e de irmão doente. Eu vim sozinho. Brimeiro trabalha com tio, em restaurante em Avenida Rio Branco. Hoje restaurante meu no Arouche. Não sabia cozinhar antes. Mas besquisa. Brocura em YouTube, faz, dá certo, faz, dá errado, aí manda mensagem bra mãe e ela ensina. Melhor cozinheira do mundo. Meu esfiha hoje é igual o dela. Mas shawarma brecisa melhorar. Freguês gosta, diz: "Oh, gostoso!".

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Eu faz evento também, cozinha no casa das bessoas, e elas gostam do meu shawarma. Até cachorro gosta. Um dia, num evento, um cachorro grande olha direto pra mim. Bravo. Eu trata ele bem. Dar esfiha, dar quibe, mas ele olha bravo, bra atacar. Aí deu shawarma e ele ficou bonzinho. Quer dizer que meu shawarma faz sucesso, graças a deus. Mas eu sei ainda não é igual do minha mãe, falta alguma coisa. Até o fim do ano vai ficar perfeito. Eu estuda e besquisa bra isso também.

O melhor coisa que aconteceu no vida? Ah, fácil: virar brasileiro. Fiquei muito feliz. Nunca foi tão feliz. Ser brasileiro imbortante bra futuro melhor. Bra ficar em Brasil tranquilo, com documentos. E pra ir bra outro lugar se brecisar. Não quer sair, eu ama Brasil, tem orgulho de ser brasileiro agora. Mas está difícil centro de São Paulo. Bior. Muito assalto, muito violência, roubo. Olha meu celular. Sempre amarrado no calça. Se não amarra no calça você berde um celular bor dia pra ladrão. Bor enquanto restaurante vai bem. Movimento menor, mas bom. Mas se fica bior e freguês vai embora, como vai fazer? Brecisa brocurar outro lugar, borque família depende de mim. Eu besquisa Suécia, barece bom. E com bassaporte brasileiro entra. Bassaporte de Líbano fraco, infelizmente. Brecisa de visto pra todo lugar e não deixam entrar. Só borque é árabe, ah, abonta dedo: homem-bomba. Foi Estados Unidos que inventou isso. Tudo blano deles. Mas se todo árabe é homem-bomba, bor que Estados Unidos são amigos do Arábia Saudita? Mas Deus vai ajudar e não vai brecisar ir embora. Eu quer morrer em Brasil. Quer investir em Brasil.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Quando viaja de carro bra Monte Verde, Cambos de Jordão, Foz de Iguaçu, viu que tem muita terra vazia berto de rodovias. Então eu besquisa pra abrir restaurante nesse terra vazia. Restaurante bra ônibus barar e carro também. Uma vez foi em Rancho de Bamonha. Muito bom. Gostou. Mas já tem muito Rancho de Bamonha e não tem restaurante de esfiha, mezze, shawarma. Eu quer fazer restaurante de comida árabe de verdade em estrada quando acertar as seis números do Mega.

Tem certeza que vai acertar. Só não chegou hora certa ainda. Eu vai ganhar borque tem esbírito bom. Não é berfeito, mas não quer maldade das outros. Quer só trabalhar, viver bom, ajudar família em Líbano, sem desresbeitar outras bessoas. Isso é ter esbírito bom, entende? Bra ganhar em loteria é o coisa imbortante. Bor isso meu família sempre ganha. Bouco dinheiro, mas ganha. Uma vez o bai teve sonho com número e bediu bra mãe ir jogar. Ela saiu, mas voltou no metade de caminho borque dia muito frio, muita neve. Não combrou o bilhete de loteria. De noite no televisão saiu o resultado e bai achou que tava rico. Era brêmio de cem mil dólares. Brigou com minha mãe. Mas não era hora certa ainda. Se ele acerta e fica rico, eu ficar lá dirigindo Mercedes. Não brecisa vem bra Brasil, não vira brasileiro, não conhece Aliah. Então acabou certo. Melhor.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Aliah é meu ebosa. Ela também nasceu em Líbano, mas chegou criança em Brasil. Fala bortuguês sem sotaque. Conheceu em restaurante de tio.

— Esse tio dele dizia que eu não ia mais me casar porque eu estava velha. Mal sabia ele que o Hamud vivia no meu pé: "Eu ama, Aliah. Quer casar com Aliah". Então nos casamos faz doze anos. Foi um pouco depois que ele chegou. Eu chamo de Hamud, que é um apelido pra Mohamad. Todo Mohamad é Hamud. Tipo Roberto é Beto, sabe? Igual. Eu digo que o Hamud é um jovem velho. Muito responsável, determinado, batalhador. Inteligente que só vendo. Fala árabe, português, inglês, francês e hebraico.

Hebraico só bra brincar com amigos judeus.

— O Hamud não tem a maldade do mundo. Um coração puro, ingênuo quase. Ele acorda todos os dias às 5 pra primeira oração e depois vai no Mercadão fazer as compras pro restaurante. Aqui ele prepara tudo. Cada tempero, cada massa, tudo. Não deixa ninguém pôr a mão. Faz os pratos no almoço, depois vai pra casa dar uma descansadinha e volta pro jantar. Estamos abertos de domingo a domingo, o dia todo. Precisa ser assim, senão as contas não fecham. E o Hamud só tem paz quando consegue pagar os boletos antes do vencimento. Nunca vi coisa igual. Além de tudo, um muçulmano exemplar. Nós dois. Fazemos nossas cinco orações, jejuamos no Ramadã, vamos à mesquita. Seguimos as palavras do profeta direitinho. Agora, esse negócio dele de querer uma segunda esposa abriu uma crise. No começo eu achei um absurdo. Mas é permitido na nossa religião. O homem pode ter até quatro esposas, desde que divida tudo igualmente entre elas.

O que dá bra um, brecisa dar bra outro. Sempre igual.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

— Ele tem esse sonho, porque quer ser pai e comigo não vai ser mais possível. Então nós combinamos: tá bom, Hamud, se você quer outra esposa, se teu coração pede isso, eu aceito. Mas vai ter que ser no Líbano. Aqui em São Paulo não. Você vai lá e arranja um moça honesta e batalhadora como você, pra somar na sua vida, alguém que te mereça e te ajude a andar pra frente. Mas longe daqui. Porque eu não vou permitir que alguém de fora caia de paraquedas na nossa vida e usufrua do pouco que nós dois construímos juntos. O nosso é nosso. O de vocês vai ser de vocês. Eu falo isso e as pessoas me chamam de egoísta, materialista. Eu tô é me amando em primeiro lugar, tá bom, habib? Essa é a minha condição. E o Hamud sabe que eu sou brava. Ele não vai vacilar comigo.

Eu ama Aliah. Sempre vai amar. Boa combanheira. Se arranjar outra esbosa vai ser do jeito que ela quer. Mais difícil, bor que como vai deixar esbosa em Líbano e morar em Brasil? Eu já tem casa bronta lá. Eu era bedreiro antes de vir bra Brasil. Fez casa, comprou sofá, cama, microondas, tudo com dinheiro de Brasil. Tá bronta, só falta noiva. Mas complicado. Profeta diz que não bode passar mais de três meses longe de esbosa. Nem homem nem mulher pode trair. Mas os dois têm sangue, muito tempo longe não dá certo. Bessoas em Brasil não gosta, acha ruim. Mas muitos homens aqui têm dois, três esbosas escondido um de outra. Filhos não conhecem irmãos, não crescem juntos, fica separado. Não é bom assim. Melhor tudo claro, tudo combinado. Aqui vai breso, no Líbano pode. Mas difícil, brecisa de muito dinheiro.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Enquanto isso eu faz besquisa e trabalha. Cansa ficar barado. Em Líbano não tem trabalho e bessoas ficam cansadas. Quando volto em Líbano, cinco, seis dias e no dia sete estou cansado. Sou estrangeiro lá. Fico em casa escutando funk bra lembrar de Brasil. Gosto dos batidas, pá, tum, kutchá! pá, tum, kutchá! Anitta! Muita energia. Mas muito balavrão também. Então quando estou em Líbano eu quer voltar logo bra brasil bra trabalhar. Aqui eu escuta sempre bessoas falar "um dia, quando melhorar" e fica esberando melhorar. Mas já é bom, elas não entendem. Você tem olho, tem berna e tem braço. Bode ver, bode andar e bode trabalhar. Então já é bom. Brecisa ser feliz com isso. Melhorar só melhora quando morre.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Individual, sim. Cada um bode ser bessoa melhor bra outros. Eu brecisa melhorar volume do voz. Fala muito alto. Acham que é briga, que não resbeita. Não é. É voz muito alto só. Às vezes fica bravo. Bor exemplo. Eu gosta de comer hambúrguer. Um dia bedi hambúrger pra entregar no meu casa e falei três vezes pro menina: sem bacon bor favor, você não coloca bacon bor favor, não esquece, eu não quer bacon bor favor. Borque eu segue meu religião e não bode comer borco. Duas horas bra chegar hambúrger no Freguesia do Ó. Beguei bacote e sem abrir senti cheiro de bacon. Ligou lá. Eu não bedi hambúrger sem bacon? "Mas é que atrasou muito o seu pedido e eu mandei bacon de brinde bra senhor". E menina cabrichou no bacon. O que bodia fazer? Bati no borta do vizinho: Toma, hambúrger de bresente bra você. E fui comer esfiha de novo, butaquebariu!

Mohamad Merhi, 36 anos

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é uma trégua, um reencontro.