A catedral de Cabral
O que eu queria mesmo era escrever um livro da minha vida. Mas desisti, porque quando eu tinha dez anos a carrocinha me levou o Rex. Tadinho. Ele estava na coleira, do meu lado, mansinho, vacinado, tudo nos conformes. E mesmo assim jogaram o laço. Uma maldade muito grande. Eu tinha acabado de perder meu pai, atropelado por um ônibus na Avenida São Miguel, e o Rex foi outro que nuca mais voltou pra casa. Então eu achei que seria muita falta de final feliz prum livro e troquei: agora estou tentando ser youtuber. Criei um canal de orações. Como eu digo lá: para fortalecer a nossa fé e nos dar força para enfrentar os percalços do cotidiano. Comecei faz quatro meses e já tenho 1.140 inscritos. Até que tá bom, né? Não. Católico mesmo. Um católico meio fajuto porque eu não gosto de missa e só entro em igreja vazia. Aqui do Centro, todas: do Carmo, São Gonçalo, Santo Antônio, São Bento, São Francisco, Sé, ih minha nossa senhora, todas. Eu amo uma igreja vazia. Mas acima de todas, Deus que me perdoe, está a minha catedral, que é o Edifício Martinelli.
Eu comecei a trabalhar no Martinelli em 2001, como porteiro. Depois passei a segurança e hoje na carteira meu registro é de relações públicas, por causa do programa de visitas que eu coordenei entre 2008 e 2019 e agora está parado. Ih, menino, o que eu me transformei fazendo esse serviço não está no gibi. Graças ao Martinelli eu tenho meu apartamento quitado, consigo manter um padrão de vida bem diferente do que eu tinha lá na Penha. Tive uma ascensão, não é? Galguei os degraus, que, aliás, do térreo ao vigésimo-oitavo são 582. Antes? Bom, antes eu fui várias coisas: servente de pedreiro, capinei quintal, fiz carreto na feira, ajudante-geral em empresa. Mas, digo com segurança pra você, esse é o melhor emprego da minha vida. E até arrisco: é o melhor emprego da cidade. Sou grato ao Martinelli — Martinelli prédio e Martinelli o homem que sonhou e ergueu isso aqui, o conde Giuseppe. Meu ídolo.
Quando eu entrei não sabia nada de um nem de outro. Mas na portaria ficavam uns folhetos com a história, um dia eu fui ler e me interessei. Depois, Vilminha, minha esposa, comprou pra mim no Sebo do Messias um livro chamado "O Prédio Martinelli — A ascensão do imigrante e a verticalização de São Paulo", de Maria Cecília Naclério Homem. E eu me encantei com as coisas escritas nele e também com as que eu via aqui, no dia a dia. Elas se completavam, sabe? Por exemplo. Eu trabalhei dois anos na sala de monitoramento. Aquela portinha ali. Os monitores das 80 câmeras do prédio ficam atrás daquela portinha. Foi um período rico pra mim, de aprendizado. Ah, porque o ser humano na intimidade, quando acha que ninguém tá vendo, é capaz de coisas maravilhosas.
O cara que abaixava a calça pra botar a camisa dentro da cueca. O que tirava meleca do nariz e passava na parede. O que dava uma coçada aqui, uma coçada ali. O um que agarrava a outra, ou o outro, dava-lhe um beijo de cinema e quando a porta abria os dois saíam como não se conhecessem. Funcionário que tinha levado esporro do chefe, pegava o elevador, apertava o térreo, xingava de tudo quanto é nome, gritava, amaldiçoava, desabafava, eu vou te matar, desgraçado!, aí batia lá embaixo e voltava calminho, calminho. Gente que entrava e cantava. Gente que se olhava no espelho e chorava. Era triste essa parte. Devia ser solidão, né? As pessoas andam muito sozinhas. E aí, quando você se vê dentro de um elevador só você e você, puxa vida, tinha uns que até sentavam no chão pra chorar. Me dava vontade de interfonar: "Oi amigo, oi amiga, tá tudo bem? Fica assim não. Já já a vida vai se abrir pra você". Mas eu não podia fazer isso de jeito nenhum, já pensou? Invadir a privacidade da pessoa. Ficava com tanta dó.
O meu lugar favorito do prédio é o terraço. Quer dar uma subidinha lá? Com esse dia claro, quente, acho que vai estar bem agradável. Prontinho, fica à vontade. Olhaí que bonita a sua cidade. Viu só? E assistir ao pôr-do-sol daqui de cima então? Nessa época de inverno, nossa!, não tem coisa mais rica. É um pecado o terraço estar fechado pra visitas nesse momento, mas com a concessão vai reabrir. Eu acho que todo morador de São Paulo precisava ver o sol se pôr daqui de cima do Martinelli pelo menos uma vez na vida. Mudaria a relação que cada um tem com a cidade. Mas não. O cara nasce aqui, vai ver pôr-do-sol no Caribe, na Disney, Paris, Jericoacoara, Rio de Janeiro, e morre sem ver no Martinelli. Não sabem o que estão perdendo. Tudo bem que é um sol laranjão de poluição mas é nosso, pô! Nos tempos de segurança, nos plantões de fim de semana, eu aproveitava que era mais tranquilo e subia à noite. Liberdade, o sentimento era de liberdade. Aquele frescor, aquela brisa gostosa. Vir aqui à noite é um encontro com a São Paulo da nossa imaginação. Uma cidade gentil, cheia de mistérios, de possibilidades. A cidade dos nossos sonhos.
Você veja lá embaixo. O Centro está triste hoje. Deu uma caída. Quando eu era menino e vinha com a minha irmã, lá embaixo eu sentia esse mesmo encanto de subir no terraço à noite. Tudo parecia mágico. Eu não conhecia prédio, arranha-céu, porque na Penha não tinha. Aí eu descia do ônibus, caminhava pela Rua Direita, pela XV de Novembro, 24 de Maio, olhava pro alto e achava que os edifícios dançavam. Mas eram as nuvens passando, as sombras. E tem outra coisa: o Centro é o único lugar da cidade onde o morador da periferia se sente paulistano. Ele sente que a cidade é dele também. Então eu gosto de ficar com essa imagem de um Centro mágico, porque é possível existir mágica aqui e não só medo e desprezo como agora.
"Ah, mas não dá pra passear no Centro porque tem muita gente morando na rua". Eu ouço um punhado de gente falando isso. Tem mesmo. Mas, como eu sempre digo pra Vilminha, são esses ignorados que acabam salvando a gente. Porque eu já cansei de ver pessoa em situação de rua alertando transeunte de um possível assalto, consolando criança perdida enquanto a mãe não aparece, socorrendo senhor de idade que escorrega e cai, senhora que passa mal, até avisando "moça, moça, caiu um documento da sua bolsa". Então vamos devagar com esse negócio, tá certo? O Centro é lindo, a região mais bonita da cidade.
E aqui de cima a gente está tão perto e tão longe de tudo isso. Mesmo com o terraço fechado eu venho sempre, porque tenho todas as chaves. E agora que fiz 60 anos, tem sido um bom lugar pra refletir. Às vezes eu acho que o conde Martinelli fazia a mesma coisa, sabia? Diz a história que ele construiu a casa dele no terraço pra provar que o prédio era seguro. Eu digo mais. Sujeito mais corajoso não tinha: não só viveu aqui como trouxe a sogra pra morar junto, é mole? Bom, da minha parte, que não sou Pedro Álvares mas sou Cabral, eu subo também para não esquecer do meu maior descobrimento.
O que eu descobri com a ajuda do Martinelli foi uma coisa muito simples: a minha importância. Porque veja bem. Preto, pobre, periférico, numa cidade desse tamanho fica difícil manter uma auto-estima legal. Quando a gente era criança lá na Penha, se tinha um vizinho se desfazendo de coisas velhas, estropiadas, tralhas em geral, "ah, leva lá pra eles". Eles éramos nós, a minha família, oito morando num dois cômodos com banheiro fora. Mas deixa pra lá. Apesar de tudo eu sempre acreditei que ia prosperar. E no Martinelli eu provei.
Ó, esse aqui é o fosso central do prédio. Cento e cinco metros de profundidade, vai até o subsolo. Na década de 60, a era da degradação, quando o Martinelli foi invadido, havia nove andares de lixo, trinta metros de altura, com ossadas humanas, fetos e animais mortos. Saíram centenas de caminhões carregados de material daí. O prédio tinha virado um pardieiro, essa é a verdade. Começou depois que um hotel chamado São Bento e que ocupava onze andares faliu. Aí começaram a vender irregularmente os apartamentos. Imagina 3 mil pessoas morando aqui. Tinha de tudo. Trabalhadores, jogadores, cafetões, traficantes, assassinos de aluguel, contrabandistas, garotas e garotos de programa. E um xerife, o Zé Pernambuco. Um sujeito de um metro e sessenta que andava pra cima e pra baixo com um revólver na cinta e cobrava dos condôminos pelos serviços que ele oferecia. Tipo milícia.
Os serviços eram basicamente dois: o "depósito de lixo", na verdade o fosso central de ventilação, e as "duas piscinas na cobertura": essas duas varandas no terraço que você vê aqui, com ladrilho hidráulico original da construção e tudo. O Zé Pernambuco tapava os ralos, esperava chover e quando enchia de água ele chamava o povo pra desfrutar mediante o pagamento de uma taxa. Ninguém parava ele. Quer ver outra? No térreo, onde hoje funciona o Sindicato dos Bancários, era um bar mesas de bilhar. Uma vez, o Zé Pernambuco perdeu uma partida e não aceitou a derrota. Disse que o oponente tinha trapaceado. Sacou a arma, enfiou na boca do cara, foi girando até quebrar os dentes do pobre coitado e exigiu o dinheiro da aposta de volta. O homem era um endemoniado.
Essas histórias eu não aprendi no livro. Quem me contou foi o Sebastião, da Ravil Canetas. A loja taí ainda. Ele começou como empregado, comprou o estabelecimento, que tem entrada pela São João, ao lado da portaria privativa do conde, e trabalhou nele por 67 anos. O Sebastião sabia de muita coisa e me ajudou a compor esse panorama da invasão. Sempre que me sobrava um tempo eu ia na Ravil pra ouvir as histórias, que passei a contar pros visitantes. Eram muito boas pra deixar de fora, né? Falar só da parte glamurosa, dos fraques e dos visons? Nada disso. O conde morreu mas o prédio continua vivo. Respira. Tá pra fazer 100 anos. Os perrengues também são parte dele e as pessoas merecem saber.
Assombração? Nunca vi. Mas tem. Essa flor, o que você acha? Como ela brotou aí no concreto a essa altura toda do solo? Um passarinho deve ter trazido a semente. Mas pode ter sido o espírito do conde que plantou, não pode? Vai saber. Não tem nem dois meses nós tivemos um probleminha com o pessoal da reciclagem. Um dos rapazes que fazem a coleta estava agachado separando o material perto da lixeira. De repente ele me sai correndo pela Libero Badaró que nem bala do revólver do Zé Pernambuco alcançaria ele. A câmera de segurança gravou tudo. Um bombeiro do prédio correu atrás pra acudir e saber o que tinha acontecido. O rapaz só conseguiu contar depois de tomar uma jarra de água com açúcar. Disse que sentiu uma mão fria e pesada no ombro dele e uma voz perguntando: "O que você está fazendo aqui, meu filho?" Picou a mula imediatamente, coitado. Desde então ele não entra mais no prédio pra separar os recicláveis. Um colega faz o serviço e ele espera do lado de fora.
Outra coisa que tem é a Loira do Martinelli. Sabe a Loira, né? É a mesma dos banheiros das escolas, só que ela mora no Martinelli. E aí tem uns safados que trabalham aqui que são terríveis. Quando entra funcionário novo pra trabalhar de noite, eles atazanam o infeliz com a história da Loira. Uma vez estava começando um rapaz novo na limpeza e os caras: "Aqui é tudo muito sossegado, mas toma cuidado com a Loira. Se ela aparecer, você dá boa noite, Boa noite, dona Loira, e passa reto. Não fica de papo senão vai dar ruim. Bom, primeiro dia de trabalho do cara. Ele tá lá varrendo, de fone no ouvido, todo contente, pá! A Loira sai de trás de um arquivo de aço. Ele não pensou duas vezes. Levantou a vassoura e deu, deu com vontade na Loira. A Loira gritava, pedia pra parar, "Pelo amor de Deus, moço, o que é isso? O que foi que eu fiz?" Resumindo, era uma colega dele na faxina. Você vê um negócio desse?
Mas, ó, com assombração ou sem, desde que Vilminha viesse comigo, eu bem que moraria aqui, viu. Ah, Vilminha é minha alma gêmea. Todos os dias eu saio pro serviço, paro na rua, olho pra nossa janela no quarto andar e mando beijo, até mais tarde, amor, fica com Deus. Ela me diz pra vir com cuidado, que pôs uma blusa na minha mochila, pro caso de esfriar, manda beijo também. A gente tem uma ligação tão forte que você não acredita. Hoje é sexta-feira? Quando foi, então? Na quarta, eu acho. Na quarta eu encerrei o expediente, estava voltando pra casa e me bateu uma vontade tremenda de comer torresmo. Do nada. Mas pensei: não vou parar no botequim não, senão eu atraso e Vilminha fica preocupada, deixa pro fim de semana. Aí, menino, abri a porta de casa e aquele cheiro delicioso. Adivinha o que Vilminha tinha feito pra gente beliscar? Torresmo! Tô te falando. Sem eu dizer nada! A gente junto, pra derrubar, é muito difícil.
Uma vez nós estávamos no Parque da Água Branca, um domingo, tinha um rapaz cantando. E ele perguntava pro povo: "O que vocês querem ouvir? Pode pedir que eu canto." Ah, eu na mesma hora levantei a mão:
-- Eu quero pedir uma música pro meu amor aqui.
-- Pois não, meu amigo. Qual seria?
-- Deixa a Vilma me levar.
-- Mas essa música não existe.
-- Como não?! Se até o Zeca Pagodinho gravou.
-- Mas é Deixa a vida me levar.
-- Então. A Vilma é a minha vida.
Todo mundo aplaudiu, o rapaz cantou, nós dançamos e virou uma festa. Eu e Vilminha somos terríveis. Deixa a Vilma me levar, Vilma leva eu. Sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu. Ô deixa a Vilma me levar!
Sonhar? Ah, eu sonho muito. E volta e meia é com o Martinelli. Ainda há pouco sonhei que as visitas tinham voltado e o terraço estava lotado. A fila de visitantes começava na São Bento, descia pela São João e ia dar do outro lado do Anhangabaú. Senhores de terno e chapéu, senhoras com seus colares de pérolas, pareciam pessoas de antigamente, e também muitos jovens de hoje, de bermuda, piercing e chinelo. Uma mistura maravilhosa. Eu trazia os grupos pra conhecer o terraço e bem aqui nesse cantinho onde está a flor o conde nos recebia com uma taça de champanhe. Era tão mágico, tão real. Que nem o torresmo de Vilminha.
Edison de Souza Cabral, 60 anos
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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é uma trégua, um reencontro.
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