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Trombadas

A língua do P de Wagnão

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

09/03/2023 04h01

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Wagner. Wagnão. Minha galera me chama de Wagnão. Com dábliu. Mas às vezes eu acho que devia ter um nome com P, tipo o Paulão, ó o Paulão aí. Salve, Paulão, que bom que cê veio. Tem como acender a luz no picadeiro, faz favor? A gente quer fazer uns retratos. Grande, Paulão! Brigado, mano. O Paulão é o cara da iluminação, puta sorte ele ter vindo hoje também. Mas então. A letra P me persegue. Dá pra contar minha vida inteirinha na língua do P, se você quiser. Pelo princípio: preto, pobre, da periferia. Só nasci na Paulista, chique, o hospital ficava lá. Mas a família tá há mais de cem anos em Itaquera, é nóis. Péra. Só um minuto, deixa eu trazer minha mãezinha pra acompanhar nossa palestra. Ela partiu faz pouco tempo e eu preciso da companhia dela ainda. A foto tá meio amassadinha, mas sempre comigo. Ô mãe, ontem eu fiz bolinho de chuva, só que não ficou igual ao seu, depois temos que ver isso aí. Bom, o P, como eu ia te dizendo: eu sou da ZL e desde pequeno, não me pergunte por quê, não sei explicar, meu sonho era ser o quê? Polícia. PM. Não, nada a ver. Meu pai era mecânico da Volks. Morreu atropelado por uma picape, coitado. Pertinho de casa. Chegando do trampo, desceu do busão, veio o maluco, embriagado, pé-de-cana do caramba, e pau! O velho nem era velho: tinha 47 anos.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Foi ele que me impediu de entrar na polícia. Não vai, Wagner. Não vai, é perigoso. Eu já tinha feito prova oral, prova escrita, prova de aptidão física, aprovado em tudo. No dia do último teste, que era dar uma corridinha e fechar, passar a régua, meu pai conseguiu me convencer e eu não fui. Na época tavam matando muito polícia no bairro, pra roubar a arma, e eu via que o velho ficava aflito com a minha escolha. Não vai, Wagner. Não vai. Aí deixei quieto. Fui trampar em malharia, papelaria, feira, office-boy, até que um dia meu primo Wilson advogado me aparece com outro P, pior ainda. Wagner, vai abrir concurso pra trabalhar em presídio, você não quer prestar não? Quero! Meu pai: Mas Wagner! Presídio, meu filho? A gente te educou pra não ter que passar nem na porta de presídio e você tá querendo trabalhar lá dentro? Pois é, pai, o senhor me perdoa, mas esse caminho eu vou pegar. Ele dizia que era difícil ser correto nesse meio, que não permitem. Eu pensava diferente. Que é nessas horas, nesses lugares, que o bom caráter prevalece. Não é bem assim, eu saquei depois, mas fui. Fica tranquilo, pai, o senhor não vai perder o orgulho que sente de mim.

Prestei o concurso e passei. Agente penitenciário. Trabalhei onze anos no Carandiru. Carcereiro, não. Tem diferença. Carcereiro é o cara do distrito, da delegacia. Ele tranca o preso no xadrez e sai fora. Às vezes não se vêem nunca mais, pouquíssimo contato. Não tem como o bandido gravar a cara do funcionário. No presídio é outro esquema. Primeiro que lá dentro quem tá armado são os presos: bicuda, estilete, gilete, tem de tudo. O agente deixa a arma dentro do armário antes de entrar no plantão. Ou seja, a porca torce o rabo mesmo: três mil bandidos pra quinze agentes, molezinha gravar a nossa cara, sacou? Vacilou vira pipoca.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Tem três tipos de agente em presídio. O caxias, que é o cara que bate no preso, pentelha a visita, é o cara que atrasa a vida do preso. Aí tem o corrupto, que é aliado do preso, o cara que avisa o dia e a hora da revista surpresa pro preso poder esconder os bagulhos todos. E tem o funcionário coluna do meio, que cumpre a função somente: não bate, não se alia e deixa o preso repetir a boia se estiver sobrando. Eu era desses. Mas esse pessoal do meio, que andava certo, era mal visto pelos outros dois tipos. Tanto os caxias quanto os corruptos achavam a gente bunda-mole.

A verdade é que não é seguro pra ninguém. Por exemplo. Tem um tipo entre os corruptos que é o papagaio, olha o P aí de novo. O cara que leva carta fechada do preso pra fora, sem passar pela censura. Porque só pode entrar e sair carta aberta, pra poder ser lida. Um dia o papagaio foi levar carta fechada pra mulher de um preso. Chegou na casa, entregou, a mulher leu e falou Passaí amanhã. Ia dar uma coisa pro papagaio levar pro marido. Quando ele voltou mataram ele. Quer dizer: o papagaio foi o portador da carta que tinha a sentença de morte dele próprio. Parece que tava enganando o preso, roubando parte da droga que carregava pra dentro. Aí o preso cansou e abateu o papagaio. Foda, mano, ali é foda.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Logo que eu comecei, no primeiro sol, o sol é quando os presos saem das celas pro pátio, nesse dia eu já filmei a rapaziada que eu conhecia do bairro. Ô Wagnão, você por aqui, chegaí, chegaí. Com toda calma e educação eu esclareci pra eles: Wagnão lá fora. Aqui dentro eu sou o Seu Wagner. Eles riram. Rarara. Tive que dar uma engrossada. Seguinte: vocês tão aqui porque não tem outro jeito. Fizeram merda e não podem sair. Mas não querem estar. Eu tô aqui porque eu quero. Prestei até concurso. Então quem é mais louco? Quem é mais doido? Eu ou vocês? Não venham com gracinha pra cima de mim. Já lancei logo esse papo.

Sabia que você ia perguntar. Sim, eu tava lá no massacre de 1992. Pavoroso. As escavadeiras carregando corpos, pavilhão alagado de sangue, porra, mano, eu queria tanto tirar essas visões da minha mente. Na época eu ainda não era fortalecido na umbanda e, depois do ocorrido, chegava de manhã pra trabalhar, cruzava o portão da Cruzeiro do Sul e sentia aquele peso permanente na alma. Mas eu acho que já estava sem paz bem antes disso, a bem dizer. Porque tinha uma cena que se repetia lá dentro que, porra, vou te falar. Moça nova ia visitar um parente, entrava de cabelo seco e saía de cabelo molhado, chorando. Acontecia o seguinte: digamos que você era preso e tinha uma dívida com o preso dono do pavilhão, o pica-grossa do pedaço. Aí um belo dia ele decidia te cobrar, mas não queria cigarro, que é a moeda corrente do presídio. Ele queria que você pagasse com uma visita íntima da sua irmã. E aí como faz? Se não quisesse morrer você tinha que convencer sua irmã. Dá pra imaginar um negócio desses? Não adiantava contratar uma prostituta e levar pro cara. Não. Ele queria a sua irmã, que ele manjava quando ela ia te visitar. E a gente não podia fazer nada, era acordo entre eles. Pelamordedeus.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Mas chega de falar de presídio, meu. Eu continuei trampando lá, apesar do peso, só que um dia meu irmão que mexe com cenografia me deu o toque: Wagner, tem um bico aí com uns cara de circo, pra ajudar a montar e desmontar arquibancada, bater estaca de lona com marreta de 20 quilos, serviço pesado. Pô, eu quero! Tô até hoje. A minha vida mudou da água pro vinho, milagre de Jesus Cristo mesmo. No começo eu vinha só nas folgas dos plantões. Aí percebi que ficava em paz no circo. O trampo era pesado mas não pesava. Eu falava: Pô, que bico gostoso, leve, mó gente maneira junto, daora isso aqui. Um dia eu fiz a conta do que ia perder se saísse do serviço público e ficasse só no circo. A conta fechou, pulei fora de vez. Paixão fulminante, tá ligado? Antigamente chamavam a minha função de capataz: o cara que cuida de tudo, monta, desmonta, encaixota, enrola cabo, amarra corda, protege as pessoas, ou seja, tinha a parte de segurança que eu curtia também, o cara que dorme no trailer e tudo. Mas hoje é contrarregra. Eu sou contrarregra. E de uns tempos pra cá faço até uma pontinha tocando pandeiro num número. Opa! No picadeiro, claro. Eu entro em cena, não entro mais em cela. Uma letrinha só, puta diferença.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Pô, aí uma pá de P novo começou pingar, né? Por exemplo. Passando o bilheteiro e o pipoqueiro, eu sou o primeiro funcionário que o público vê. Sou o cara que recebe os ingressos na porta da lona. Oooooooi. Como é que vai a senhora? Como é que vai o senhor? Sejam muito bem-vindos. Podem ir pegando lugar que o espetáculo já vai começar. Boa tarde, boa tarde. Sorria, criatura! Você está no circo. Tristeza não, por favor!, o cemitério fica do outro lado da rua. Alegria, meu povo! Eu vou soltando essas frases, fazendo os gestos bem amplos, teatrais, de cabeça erguida como o Domingos Montagner me ensinou. Cê tá ligado: ele era um dos fundadores daqui, o Circo Zanni. Que puta falta faz, viu. Mas ele tá aqui ainda. Eu sinto. Pô, o que falar desse cara? Não existe pessoa perfeita, né? Mas o Domingão beirava. Foi ele que me botou em cena pela primeira vez. No final da apresentação, tocavam Brasileirinho e ele me pediu pra entrar e sambar no picadeiro. Eu, de uma família pé-de-valsa, lá em casa todo mundo samba, todo mundo, pô, eu pirei. Às vezes ele me falava Menos, Negão. Esse gesto passou, exagerou. Faz assim, faz assado que fica melhor. Mas eu passava do ponto por empolgação, coisa que aprendi com o Domingos. Ele era muito empolgado. Já tava na televisão fazendo sucesso e, quando podia, fazia o circo com aquele amor de sempre. E quer saber? Aprendo com ele ainda. Toda vez que eu chego, pode ser em dias que nem tem espetáculo, como hoje, eu boto a chave no portão e eu sinto a presença do cara. Então eu procuro fazer tudo direitinho, porque foi o que ele me ensinou e se eu não fizer ele vai me cobrar: Pô, Negão, faz melhor isso aí. Grande Domingos Montagner. Puta cara.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Quer ver outra coisa boa do circo? Aqui não tem proibição. Tem respeito, responsa, então não precisa de proibição. Uma vez, eu tava namorando e levei a namorada pra ver meu trampo de contrarregragem num espetáculo chamado "História de Pescador". Acontecia dentro de uma piscina, eu ficava dentro d'água empurrando o barquinho e tal. E a galera usava roupa de mergulho, daquelas com zíper nas costas. Lá pelas tantas chamei a namorada pra conhecer o camarim, ver como são os bastidores de um espetáculo. Vixe, pra quê? As galera saía de cena, entrava correndo pra trocar de roupa e precisava abrir o zíper. Quem? O contrarregra, claro. "Vai, Wagão, abre o zíper, abre o zíper!". Todo mundo ia ficando pelado. A namorada abriu um zóio desse tamanho e fechou a cara. Na volta pra casa, não trocou uma palavra comigo. Quando deixei ela na porta de casa, veio: É por isso que você gosta tanto de circo? Pra ver essa pouca-vergonha? Ficar no meio desses pervertidos? Ihhhhh, aí não! Aí você desrespeitou a minha galera. Melhor a gente encerrar por aqui. Um beijo, tchau e bença.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Porra, trabalhei onze anos em presídio e ninguém nunca falou nossa, que puta pouca vergonha esse seu trampo. Aí no circo vêm com esse papinho. Povo doido, sai fora. Eu tinha saído de um lugar que, resumindo, é a falta de liberdade, pra cair em outro que é o oposto, é justamente o lugar da liberdade, da invenção, do sonho, da felicidade. Mas tem gente que não se acostuma, prefere a falta de liberdade. Quéisso, fala sério. Por isso eu amo esse lugar. Tô com 57 anos, daqui a pouco faço 60 e morro de medo da minha galera começar achar que sou idoso e não posso mais pegar no pesado. Mas tô forte ainda. Jogo basquete e tudo. Já me disseram pra virar palhaço quando aposentar. Pô, aí não. O palhaço do Zanni é o Fernando Sampaio, célôco. Não dá pra chegar no nível dele. O cara é gigante. Então, se me deixarem receber o público e tocar meu pandeiro no picadeiro eu tô na paz. Aqui é mó família. Às vezes encerra o espetáculo e a gente se reúne pra tomar uma cerveja, conversar, relaxar. Uma delícia. Só que eu não gosto de cerveja, prefiro uma pinguinha. E eu preparo a minha pinga. Dá um zóio aqui. Nessa garrafinha tem erva-doce, erva-santa, louro, alecrim, isso tudo eu pego no meu quintal em Itaquera, é nóis, aí também ponho pêra, maçã, casca de manga e limão. O certo era ficar curtindo, mas não dá tempo. Quer dar uma bicada? Fica à vontade. Oooooooi.

Wagner Lopes dos Santos, 57 anos, o Wagnão

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é uma trégua, um reencontro.