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Trombadas

O bel canto de Didi

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do UOL

18/05/2023 04h01

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Eu já tinha sido aplaudido em outras ocasiões. Pouquinho. É que uma ovação daquela, com gritos e tudo mais, uma mulher até pediu bis, imagina você, desse jeito, olha, desse jeito foi a primeira vez. Fiquei bobo de ver. Sábado passado na Casa das Rosas. Todo mês eles fazem um sarau. A gente chega, se inscreve e pronto. Não, sem acompanhamento, sozinho. Eu sou sozinho, estou sempre sozinho. Então a senhora poetisa que era antes de mim se apresentou, foi rapidinho, e logo em seguida me chamaram. Fui lá na frente e cumprimentei o público: Vocês conhecem o Moacyr Franco? Todos responderam que sim. Pois então. O Moacyr Franco, na oportunidade que trouxeram a "Turandot" de Puccini no Municipal, ele foi assistir. Aí pegou a melodia da ária do terceiro ato, o "Nessun Dorma", e escreveu uma canção pra mulher dele que estava acamada no hospital. Ele chamou de "Eu nunca mais vou te esquecer". Depois o Altemar Dutra gravou também, ficou muito popular. No sábado lá na Casa das Rosas eu cantarolei pra plateia, La ra la ra la ra la ra. Pronto, todo mundo lembrou.

O canto de Didi - Christian Carvalho Cruz/UOL - Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Na partitura original diz que quem faz essa parte é o coro, o coro todinho, todos eles, uma maravilha. Mas antes de chegar aí vem o tenor e:

Ma il mio mistero é chiuso in me
Il nome mio nessun saprá!
No, no, sulla tua bocca lo diró
Quando la luce splenderá!
Ed il mio bacio sciogliera il silenzo
Che ti fa mia!

É quando o príncipe Calaf pede que a princesa Turandot descubra o nome dele. Ela ordena que ninguém durma naquela noite em Pequim, nessun dorma, até saberem quem é o príncipe desconhecido que tinha decifrado os três enigmas dela. Estou resumindo pra você entender mais ou menos como é que é. Quem gostava de cantar essa ária era o Pavarotti. A apresentação dele na Copa do Mundo na Itália foi uma beleza. O Andrea Bocelli canta bem também. Muito bem. É difícil a gente ouvir e não sentir nada. Pode ouvir um milhão de vezes e vai gostar cada vez mais. O Nessun Dorma, ó, vou te falar, isso aí é uma daquelas coisas inexplicáveis: como é que a mente humana foi capaz de criar um troço desses?! Lindo mesmo. Bom, aí vem o intervalo que te falei e coro faz:

Il nome suo nessun sapra!
E noi devrem, ahimè, morir, morir!

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

O Moacry Franco, que é um cara esperto e carismático, transformou esse trechinho em La ra la ra la ra la ra. Mais uma vez, alongando agora: La ra la ra la ra la ra la la. Com todas as vozes fica bonito pra caramba. Mas eu sozinho, já viu. Então tive a ideia de lembrar do Moacyr Franco, que todo mundo conhece. Fiz a primeira parte solo e quando chegou na pausa eu só dei o sinal pras pessoas que estavam ali e elas entraram com o La ra la ra la ra la ra corretamente! Ficou perfeitinho! La ra la ra la ra la ra la la. Vozes masculinas e femininas, um espetáculo. Aí eu retomei a minha parte e segui firme até o encerramento, que é em si natural:

Dilegua, o notte!
Tramontate, stelle!
Tramontate, stelle!
All'alba vincerò!
Vincerò
Vin-ceeeeeeee-roooooooooooò!

Pra mim foi uma coisa espetacular, me senti no Scala de Milão, aonde nunca fui. Aplaudiram em pé por mais de um minuto. Rapaz, você tinha que ver. Uma lá, mais empolgada, gritava "mais um, mais um, mais um". Mas eu estou começando na Casa das Rosas e não quis abusar. Mês que vem eu vou de novo. Então só me curvei, estendi os braços pra frente assim como quem diz "É pra vocês, por vocês, tudo pra vocês, obrigado, muito obrigado". Depois tomei o metrô e voltei pra minha casa.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

É, eu moro aqui. Em cima é a minha casa, um irmão meu mora comigo, e embaixo eu tenho a oficina. Você não repara, faz tempo que não faço uma arrumação, então tá desse jeito aí que você tá vendo, um pouco atulhado. Mas eu sei onde fica cada coisa e quando preciso eu acho. Trabalho mais com restauração de móveis, objetos, peças sentimentais que as pessoas têm na família há muito, muito tempo, e umas tranqueiras também. Pouca gente sabe que eu canto. Tem uma sobrinha minha que sabe. Ela é fonoaudióloga e pra ela eu fiquei mais à vontade de contar, conversar a respeito. O padre sabe também, porque de vez em quando eu canto na igreja Nossa Senhora dos Pobres, na Vital Brasil. Ele é novo na paróquia, mas já sabe, alguém deve ter avisado. Ele passa aqui na frente de manhã e me fala: Grande Didi. Eu só respondo: Grande Seu Padre. Mas o meu irmão, que tem o jeito dele, né?, quando a gente discute, bobagem, coisa de irmão, quando quer me ofender ele diz: Vai cantar suas Ave Maria, vai! Mas ele não entende, coitado. Não estudou.

Veja só. A minha entrada no bel canto daria uma ópera. Tinha uma irmã minha que trabalhava de enfermeira na USP. Ela ficou respeitada aí dentro e quando a situação apertou pra nós em Taubaté, que a família é de Taubaté, ela começou a arranjar serviço pra todo mundo. Data eu não sei. Esse negócio de tempo, de quando, idade, de passado eu não são sou muito ligado nisso aí e prefiro não falar. Mas acho que foi naquela época que as faculdades vieram da Três Rios pra cá. A formação da Cidade Universitária, a bem dizer. Tinha bastante trabalho. Até meu pai veio. E pra você ver como é importante ter apoio nessa vida, que sozinho fica difícil: meu pai, um carroceiro, ele tinha uma carroça e um burro em Taubaté, veio ser jardineiro na USP e terminou a vida falando nome de plantas, flores e árvores em latim. Se recusava em dar os nomes em português. Só usava o latim. No meu caso, eu tinha frequentado o Senai no interior, vim trabalhar na carpintaria. Instalava batente de porta, esquadria de janela, mais essa parte, e dava acabamento em verniz também, de onde que fui adquirindo as técnicas do restauro que aplico hoje.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Mas aí saí da USP e fui trabalhar numa empresa de obras e construções. Eles construíam mansões no Alto de Pinheiros. Eu entrava na fundação e só saía depois de dar verniz nos armários todinhos. A parte de madeira era comigo, de cabo a rabo. Aí começa a minha ópera. Um dos clientes dessa empresa era um engenheiro de nome doutor Silvio. Doutor Silvio era casado com dona Lucila. Dona Lucila era irmã do doutro Fausto. Doutor Fausto era irmão do doutor Fernando, que já era conhecido da doutora Mercedes. E a doutora Mercedes era a esposa do doutor Orlando Ludovici, professor doutor, baita sujeito, um dos pioneiros da cirurgia plástica.

Um dia, por meio dessas conexões, eu fui chamado pra reformar um bar que o doutor Orlando tinha na casa dele. Ele gostou do meu serviço e me passou mais trabalhos. Até que comprou duas casas no Guarujá. Eram duas residências e ele estava quebrando parede pra emendar e fazer uma só. Numa ocasião, no meio da semana, ele me falou: Ô Zé — porque ele não me chamava de Didi, era um homem imponente, sofisticado, a família de Lucca, na Toscana, um homem impecável — Ô Zé, vamos comigo dar uma olhada na obra lá na praia? Vamos, ué. Na descida da Serra eu cantarolei, sabe quando você cantarola só uma coisinha à toa, eu cantarolei um pedaço da Ave Maria de Gounod. Praticamente só a melodia, porque, naquela altura, da letra eu só sabia duas palavras: ave e maria. Aí eu comecei a ir sempre com ele pro Guarujá. Umas vezes pra trabalhar, outras pra passear. Zé, tamos descendo, vamos? Eu ia. A doutora Mercedes gostava que eu cantasse "Fascinação", da Elis Regina. Tudo isso dentro do automóvel, descendo a Anchieta.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Quando a casa ficou pronta, o doutor Orlando deu um churrasco enorme lá pros médicos amigos dele. Tanto de carne como de peixe. Sei que veio de Maceió um dos peixes que assaram aquele dia. Assim eu fiquei frequentando esse meio. Médicos, advogados, engenheiros e arquitetos. Jornalista não tinha não. O pessoal até confundia e achava que eu era restaurador de obra de arte. Não, imagina, imagina, que é isso, eu dizia, é muita responsabilidade. Eu até pinto uma coisinha ou outra, esses quadros aí são meus, mas restaurar eu só restauro cadeira velha, cama, guarda-roupa. Nessa época o doutor Orlando me arrumou um nome artístico. Ele pegou o José Maria dos Santos e transformou em Giuseppe Maria Di Santi. Mas achou que ficou longo e deixou só Di Santi.

Bom, assim foi. Uns tempos depois o doutor Orlando vira pra mim: Zé, você gostaria de estudar canto? Posso te conseguir um professor e te ajudo a pagar. Pô, rapaz, o que eu tinha a perder? Ah, eu quero sim, doutor. Tá bom. Na quinta-feira fomos ao Municipal. Ele me apresentou um amigo dele que tocava na Orquestra Sinfônica e esse amigo chegou falando: Orlando, já tenho um professor pro teu amigo. E me deu um papelzinho com um endereço no Brooklin. Segunda-feira, oito da manhã eu estava lá. Cheguei diante da casa e um homem alto, comprido, estava parado na porta: O senhor está atrasado. Foi a primeira pessoa que me chamou de senhor na vida, e eu nem tinha cabelo branco ainda.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

O homem me mostrou as instalações, disse que seria meu professor, falou que tinha muita consideração pelo doutor Orlando e ordenou: Na próxima aula o senhor me traga uma obra, pois quero avaliar o seu material. Eu fiquei perdido. Obra?! Mas que obra?! Eu vim aqui pra aprender a cantar e ele quer ver como eu instalo uma porta, será que é isso? Mas não perguntei nada. Voltei de ônibus só pensando nisso: obra, obra, obra. Bom, obra deve ser uma partitura, né? Eu tinha a partitura da Ave Maria, que eu nem sabia ler, mas tinha. Foi essa mesma que eu levei.

Eu ia pra aula duas vezes por semana, segundas e quintas. Voltava direto pras construções das mansões em Pinheiros. Nos finais de semana, quando tinha apresentação, o professor me levava pra assistir óperas e corais. Nos intervalos, no saguão, a gente discutia a respeito. O que o está achando, senhor José?, ele me perguntava. Bom, professor, me parece que o tenor está com certa dificuldade. Era "La donna è mobile", do Rigoletto de Verdi. E o tenor em questão era o Benito Maresca, veja a minha ousadia. Mas era. Eu cantava com facilidade "La donna è mobile", a mulher é volúvel, e ele fazia um baita esforço. A ignorância me ajudava, né? Eu dizia o que pensava, porque não conhecia ninguém. O próprio professor eu demorei a descobrir que era. A gente batia esses papos no intervalo dos espetáculos e eu estranhava que as pessoas desviavam de nós, ninguém chegava perto, pra não incomodar, sabe? Aí eu vim a saber: o homem era uma sumidade, meu deus. Marcello Mechetti, diretor e regente do Coro Lírico Municipal. Olha só onde eu fui cair. Eu estudava no lugar por onde vários monstros sagrados já tinham passado. O Isaac, o Belardi, o Mignoni, o Eleazar.

Transformou a minha vida, né? Não no sentido de dinheiro, que eu nunca quis ganhar a vida com isso. Sempre tive medo de estragar o prazer que eu sinto. O Mozart, por exemplo, era músico desde criança. Bach também. Mas será que era o que eles queriam fazer da vida? Tinham prazer ou era só obrigação? Pra mim a coisa toda tá em outro campo, no campo do espírito, não da matéria, entende? Eu sei que quando eu canto eu estou no coração das pessoas. É mais isso que me interessa. E olha aí, falando no diabo apareceu o rabo. "Jesus alegria dos homens", de Bach. Ah, o ponteiro do meu rádio nem desgruda mais da Cultura FM. Eu só ouço isso o dia inteiro enquanto estou trabalhando.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Então. Com "Jesus alegria dos homens" você consegue entender. Música envolve tanta coisa melhor que dinheiro. Música é o contrário de solidão, por exemplo. Música preenche os nossos espaços vazios. Espaços que, se a gente não prestar atenção, acaba ocupando com tristeza, angústia, desilusão, só coisa ruim. Ontem mesmo eu estava meio assim, pensativo, digamos, e aí cantei um trechinho de "Una furtiva lagrima", do "Elisir d'amore", do Gaetano Donizetti. O doutor Orlando Ludovici gostava muito dessa ária, me ajudou a traduzir e tudo, quando eu estudava com o Mechetti. Eu cantei ela e fiquei feliz, pronto. Por isso que eu digo: música erudita devia ser ensinada do jardim de infância até o último ano de faculdade. Não pros estudantes aprenderem a cantar ou a tocar, não precisa. É mais porque música clássica abre a cabeça pra outros conhecimentos e outros sentimentos. Só faz bem, não estraga ninguém.

Às vezes eu canto em casamentos e ganho um dinheirinho, sim. Mas prefiro cantar de graça. Dias atrás veio uma senhora muito distinta aqui, achei que fosse perguntar de um móvel, qualquer coisa assim. Mas não. Ela falou: O senhor cantou no meu casamento, lembra? Agora eu vou casar de novo e gostaria que o senhor cantasse outra vez. Eu não lembrava, mas respondi: Eu, canto, claro, deixa comigo. E quanto o senhor cobra? Ah, a senhora me pague o mesmo da outra vez. Mas já faz mais de vinte anos! Então a senhora me pague o quanto achar bom. Não, não. Eu vou sozinho, sem acompanhamento, porque hoje em dia a coisa mais difícil que tem é encontrar músico profissional que aceite seguir a partitura. Normalmente, como está ganhando, ele quer mostrar serviço e faz de tudo pra aparecer mais que o solista. Aí não dá. Porque está tudo escritinho na partitura, é só ler. Quando o solista canta, o acompanhamento vem por baixo. É por baixo. Então, se é pro cara me atrapalhar, eu prefiro fazer à capela. Estou ensaiando a mesma música do primeiro casamento, que senhora pediu. "Amor ti vieta", da "Fedora" do Umberto Giordano. É romântica, mas ao mesmo tempo dramática, não sei se vai bem em casamento. Mas vamos lá.

Amor ti vieta di non amar -- O amor te impede de não amar
La man tua lieve che mi respinge -- Sua leve mão que me afasta
Cerca la stretta della mia ma -- Busca o firme aperto da minha mão
La tua pupilla esprime: I amo --- Sua pupila expressa: te amo
Se il labbro dice: non t'amerò -- Se o lábio diz: não te amarei

É isso aí. Agora, se você me dá licença, não leva a mal, deixa eu voltar pro serviço, que tem uma porção de coisa pra lixar e envernizar hoje ainda.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

José Maria dos Santos, o Didi

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Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e escuto. Depois conto. No fim, é uma trégua, um reencontro.