Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Em declínio e substituído por um jovem, CR7 descobre o que é ser um de nós
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O atleta é um fingidor.
Finge tão completamente que chega a fingir que não é dor, a dor que deveras sente ao ver, do banco de reservas, sua equipe enfiar uma goleada contra a Suíça em plena oitava de final de uma Copa do Mundo.
Não tem entidade divina ligada ao futebol que desça à Terra e me convença de que Cristiano Ronaldo, sacado da equipe titular de Portugal aos 37 anos, estava de fato feliz por saber que seus substitutos passam bem, obrigado, sem ele. Mais fácil imaginar que ele chegou ao seu quarto de hotel e destruiu uma parede com sete murros — os seis que ele testemunhou de longe e outro que tiraram dele, por impedimento. Se bobear deve ter sobrado um murro extra pela falta, cobrada por ele, que passou longe do gol.
Sorrindo por fora e certamente dilacerado por dentro, CR7 experimentou o gosto do descarte toda vez que o goleiro rival foi buscar a bola no fundo das redes. Não foi uma, repito. Foram seis. Três vezes por obra de seu substituto direto, Gonçalo Ramos.
Ronaldo não dirá isso, mas tenho certeza de que ele trocava a goleada por uma desclassificação. Qualquer um trocaria, por mais que negue.
Não tem título como coadjuvante no currículo que pague a satisfação de poder dizer: "tá vendo, se eu estivesse em campo desde o começo a tragédia não teria acontecido".
É que, na escada das dores, a decadência está um degrau acima da derrota; na das glórias, a certeza da razão vale mais do que três pontos ou a classificação.
Com mais de 800 gols na carreira, cinco títulos na Liga dos Campeões, quatro Mundiais de Clubes e uma Eurocopa no currículo, CR7 não sabe ou só finge saber como lidar com o fim inevitável.
Era evitável até pouco tempo, como mostrou Pelé, que trocou alguns anos na ativa pela eternidade. O Rei do Futebol parou no auge e não deu a "hater" algum o gosto de o ver chutando bola para o mato numa peleja de meio de rodada entre Guarani e Inter de Limeira disputada num Brinco de Ouro da Princesa às moscas.
Um famoso ex-jogador de vôlei conta em suas palestras que decidiu encerrar a carreira quando notou um auê dos fãs ao vê-lo chegar no ginásio; ao se aproximar, descobriu que os torcedores queriam um autógrafo não dele, mas do Giba, o astro da vez. Teria como trazê-lo até eles?
Há meios e meios de perceber o começo do fim. Geralmente ele vem pelo olhar do outro.
Como tudo na vida, não adianta fazer bico, emburrar, bater o pé, xingar o técnico, queimar o clube que (ainda) paga nosso salário em entrevista bombástica: é preciso entender quando o Olimpo expulsa seus deuses do paraíso. E CR7 está com os dois pés fora: parece ter entendido isso só agora, quando todo o mundo o assiste.
Esse é o momento em que os mais miseráveis dos torcedores olham para sua lenda e dizem: eu te entendo.
A rebeldia tem seu charme, positivada como "personalidade forte", quando a gente tem mais gols que jogos na carreira. Quando a conta se inverte, ela não é sequer tolerada.
Teve um dia, e não faz muito tempo, uns demônios habitantes do canto superior direito das minhas orelhas me atiçaram para me inscrever num campeonato de futebol de salão.
Estava perto de completar 40 anos e não sabia ainda que entrava numa área de turbulência existencial. Nessa fase há os que se frustram por não terem muitos feitos a contar e os que se frustram porque os feitos já não são feitos, mas uma rotina ordinária que não produz uma mísera borboleta no estômago.
Quem pensa que a juventude é a fase em que concentramos todas as pilhas para correr demais os riscos dessa highway não sabe o que é ter um quarentão cheio de ideias de jerico em casa.
É nessa fase da vida, num canto entre o sofá e o controle remoto, que mora o perigo: alguns se levantam para beber água e dormem com a porta da geladeira aberta; outros não voltam: no meio do caminho, são açoitados por más ideias e decidem correr maratona em ambientes inóspitos, escalar o Monte Everest, atravessar a América Latina a duas rodas, largar a firma para vender miçanga na praia ou comprar o Twitter num dia de tédio. Há também os que aderem a seitas e começam a andar em más companhias, dessas que agora se aglomeram em frente a quartéis, só para mostrar que os adolescentes que foram um dia ainda vivem.
Dedicar minhas noites de sexta-feira para disputar um campeonato depois de uma década redonda de puro sedentarismo estava de bom tamanho. Foi ali que cometi um erro. Uma série deles.
O primeiro engano foi não ter observado com atenção as letras minúsculas da inscrição onde estava definido que os atletas do torneio deveriam ter nascido entre 1981 e 2016. Com estes não me preocupava, já que depois das 19h (e os jogos começavam às 20h) eles já estariam na cama preparada pelos pais tomando seu achocolatado e assistindo Mundo Bita para pegar no sono.
Eis, então, o meu segundo erro. Perto dos 40, um ano a mais ou a menos faz muita diferença em matéria de pernas, vigor, resiliência, explosão — tudo de que precisamos num jogo de futebol.
De modo que disputar o mesmo espaço e a mesma bola com adultos de 30 anos é botar para moer o que cultivamos em autoestima durante quatro décadas. Era ali que morava o perigo, mas isso eu só fui descobrir quando cometi o terceiro e derradeiro erro fatal: achar que poderia fazer com 40 o que estava habituado a fazer nos dias de apogeu da elasticidade.
Foi numa dessas roladinhas para trás, muito comuns numa Copa definida por milímetros, que minha alma adolescente saiu de mim e chegou um segundo à frente do meu corpo, preso no taco de assoalho, para bater na orelha da bola, afundar o goleiro e correr para a glória; tudo isso enquanto minha perna de apoio ficava para trás e a outra chutava o vento.
A bola passou no diapasão entre meu corpo e meu espírito. No contra-ataque, os rivais fizeram o primeiro gol.
Entre o Matheus de 30 anos e o de 40 só sobrava o tênis, já esgarçado, que eu me negava a trocar por um da moda. Pois ele me abandonou, ao escorregar, quando mais um precisava do outro.
Um menino com espinhas no rosto veio em minha direção com o dedo em riste. Nunca fui tão xingado na vida e, numa prova de que na vida pouco aprendemos com a História, joguei meu colete no chão e vesti a casaca de Jânio Quadros: deixei a quadra imaginando que os demais companheiros de equipe, a arquibancada e toda a crônica esportiva da cidade, em comoção, pediriam em coro para que eu voltasse ao jogo. Nada aconteceu.
"Quero ver como eles vão se virar sem mim", pensei, já a caminho da saída.
De soslaio vi o gol de empate da minha (naquele momento ex) equipe. E outro. E outro.
Sabe aquele pesadelo em que vislumbramos o dia seguinte do nosso enterro e, de algum lugar do além, descobrimos numa espiadela que as pessoas que amamos passam bem, obrigado, e felizes com (ou justamente por causa da) nossa ausência? Foi mais ou menos isso o que aconteceu.
Deve ser essa a sensação que o Cristiano Ronaldo teve de administrar ao ver sua seleção decolar sem ele. Deve existir quem soube envelhecer e ser substituído e levou tudo na boa porque, afinal, com a idade ganhamos muita sabedoria e maturidade e blablablá. Deve ter. Eu só não conheço.
"Poxa, mas você acha mesmo que entende o que um craque daquele quilate sente só porque saiu desmoralizado de quadra uma vez?"
Amigos, não somos nós, que não chegamos nem perto da glória, que entendemos o que o CR7 está passando. É ele que finalmente entende como é ser um de nós. Com (bastante) mais dinheiro, é verdade, mas entende.
O ocaso é o único momento que aproxima um gênio dos mortais.
Não há consolo nenhum em saber disso. Os que veem na dor vista (e disfarçada) não sentem bem. Nunca é fácil ver um ídolo que acostumamos às glórias sair de cena aos poucos — e aos trancos.
A não ser Gonçalo Ramos, que com o cetro em mãos terá todo o tempo do mundo para brilhar e se divertir — até que esse mundo também desapareça mais dia, menos dia, com o aviso prévio de uma perna travada no chão.
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