Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
'Gato de Botas 2' é filme para homem de meia-idade que não quer crescer

Atenção amigos que viraram pais recentemente e estão em crise porque não conseguem mais ler livro ou reencontrar a própria essência: venho do futuro pra contar que todos já passamos por isso um dia e que tudo vai piorar bastante até começar a melhorar. Mas um dia melhora — apesar das férias escolares.
Sem escola desde dezembro, nossa rotina em casa é basicamente trabalhar e procurar uma forma de entreter uma criança de nove anos com mais energia represada do que uma turbina de Itaipu.
É gritaria e confusão (quase) o tempo todo. Mas há momentos de armistício que, olhando bem, se parecem com o que os especialistas costumam chamar de instantes de alegria. Sim, eles existem.
Na quarta-feira (25), por exemplo, meu filho, com quem já passamos (a mãe e eu) os perrengues mais tenebrosos, inclusive nos dias após o parto, se tornou a melhor companhia para um programão ao fim do expediente. Com ele assistimos (e comemoramos) à final da Copinha e depois fomos ao cinema.
Na maratona para conferir os indicados ao Oscar, parecia (e era) uma boa ideia levar o filho para assistir "O Gato de Botas 2: o último pedido", que concorre à estatueta de melhor animação.
Tinha acabado de ver "Aftersun", o aclamado filme de Charlotte Wells sobre o (spoiler) último encontro de uma criança com o pai imaturo, deprimido e disposto a botar tudo a perder ao fim de uma viagem em que tudo deveria ser inesquecível por outras razões.
Dava para escrever algumas linhas sobre o longa.
Mas nada que se compare à animação da Dreamworks.
No filme, o nosso herói acaba de sofrer um acidente, após uma dura e gloriosa batalha contra um gigante, e descobre que queimou a penúltima de suas nove vidas.
Restou uma e, por recomendação médica, precisa cuidar bem dela — o que exige maneirar nos hábitos, na bebida, largar a vida noturna, andar em boa companhia e correr menos riscos desnecessários. Sossegar o facho, enfim — sem trocadilho com quem largou o bingo da igreja pra virar revolucionário depois de velho.
O gato se rebela contra o diagnóstico porque se recusa a envelhecer.
É naquele momento que os adultos da sala (de cinema, no caso) olham para a tela e passam o recibo: ok, entendemos.
Por uma dessas ironias da vida, a perspectiva da morte, ali anunciada como fábula, ativa dispositivos psíquicos que levam os representantes masculinos da espécie a acelerar a exposição ao perigo.
É porque talvez, e só talvez, não seja a morte em si que nós, homens que já atravessamos os 40, tememos, mas a certeza de que entre o princípio da velhice e o fim da vida não aconteça muita coisa digna de nota.
É aí que mora o perigo — e isso possivelmente explica a quantidade de tios da Sukita que se juntam no fim de semana para manjar a roda de suas motos possantes e seus carros conversíveis.
Não era outra coisa que queria o gato envelhecido e entediado ao enfrentar tudo e todos para chegar ao centro de uma estrela e fazer um pedido óbvio: recuperar as oito vidas perdidas. Leia-se: a juventude eterna.
Essa mesma busca levou o protagonista a fugir, como gato de água quente, de assumir compromissos com uma gata parceira de aventuras em algum momento de suas vidas anteriores. Ele não deu valor, não se dedicou e como vacilou.
O felino era apaixonado demais por si mesmo para deixar de viver grandes coisas por alguém.
A gata sabia que não poderia competir com o amor que o bichano era capaz de nutrir apenas por ele próprio. Ele preferia brincar com fogo, encarar gigantes, beber até morrer e engasgar com a barra de ferro da academia a aceitar uma vida frugal ao lado da gatinha e do filhote no cinema numa quarta-feira à noite.
Ao menos não esperou a gata entrar no puerpério para avisar.
Lá pelas tantas, o gato vai se dando conta de que, quanto mais luta para adiar um fim inevitável, menos aprecia as pequenas alegrias da vida adulta, ensinadas por um cão vira-lata capaz de transformar um pedaço de meia em um universo sensorial em expansão.
Tem tanta camada de mensagens ali que valeria uma outra crônica.
Até março há uma maratona de filmes do Oscar para conferir. Nem todos — ainda — com classificação indicativa para levar em companhia os filhos pequenos. Mas, com uma pequena rede de apoio aqui e ali, é possível ver filme para adultos em tela grande e, quem sabe, ler algumas páginas de livro antes de voltar pra casa sem culpar ninguém pela vida comedida, com alguma adrenalina mas não tantos riscos, que a maturidade exige.
Não há garantia de troféu, mas um dia com cinema e comemoração de título com uma criança de quem somos agora responsáveis por expandir o universo pode ser melhor do que qualquer batalha. Eu recomendo.
Recomendo também o filme para todo mundo que está em crise por (não) segurar a barra que é gostar e respeitar as fragilidades de qualquer pessoa que não seja a gente mesmo.
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