Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
'Tudo em todo lugar...' é o filme mais absurdo - e o que faz mais sentido
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Uns amigos me chamaram para um churrasco, na casa de algum conhecido, logo que acabou o futebol no clube onde passei a infância, em Araraquara (SP). Estávamos a caminho da saída quando encontrei, sentada num dos bancos, uma amiga que não via desde que me mudei para São Paulo. Parei para dar oi e avisei ao pessoal do futebol: vão na frente que logo eu alcanço vocês.
Nunca alcancei.
Sempre me pergunto o que teria acontecido se aquele reencontro, fruto do acaso, se resumisse a um "oi, como vai? Bom te ver, a gente se tromba por aí".
Teria ganhado um churrasco e perdido a melhor história que estava prestes a viver. Uma história que já dura 19 anos.
Fiquei pensando nisso depois de assistir "Tudo em todo lugar ao mesmo tempo", filme dirigido por Daniel Kwan e Daniel Scheinert que deve fazer fazer barba, cabelo e bigode no Oscar de 2023. Foram ao todo 11 indicações, inclusive a de melhor longa.
A trama, à primeira vista, é uma maluquice sem tamanho.
Conta a história de Evelyn, uma imigrante chinesa interpretada por Michelle Yeoh que, cansada e desiludida com a vida, a certa altura recebe a visita de uma versão de seu marido (Ke Huy Quan, o Dado, dos "Goonies") que habita em outra dimensão do universo.
Ele viaja para alertá-la de que aquele seu mundo e tantos outros correm perigo desde que uma jovem descobriu um jeito de se deslocar pelo multiverso e destruí-lo, numa espécie de Big Bang às avessas. O perigo se chama Jobu Tupaki e, por um acaso, é sua filha naquele plano.
Para vencê-la, o viajante a ensina a acionar, por meio de um aplicativo, suas diversas versões nos múltiplos universos possíveis para incorporar algum talento desenvolvido longe daquele corpo.
A transmutação acontece quando os personagens provocam situações inusitadas, numa brincadeira com a probabilidade de um evento acontecer naquela fissura improvável de tempo e espaço. (Tipo cortar os próprios dedos com papel sulfite ou declarar amor a uma auditora linha-dura da Receita).
Num desses universos, Evelyn descobre que se tornou uma famosa cantora, lutadora e atriz quando decidiu ouvir seu pai e não se casar com o pobretão com quem estava fadada a viver uma rotina de perrengues como dona de uma lavanderia nos EUA.
Outras muitas versões se desdobram em cada campo oposto de uma decisão — mais ou menos como se este autor tivesse se transformado num jogador após aquele churrasco que nunca aconteceu e estivesse vivendo uma outra vida, mais vazia provavelmente, em alguma outra dimensão.
O filme poderia se chamar "Tudo o que você podia ser", numa homenagem a Milton Nascimento e o Clube da Esquina.
Esse "tudo", uma reunião infinita de potências não realizadas, é no fundo uma obsessão da microempresária, que, num dia de fúria, conclui que qualquer versão de si seria melhor do que a sua. O auge do desencanto, não por acaso, acontece num prédio da burocracia americana em que papeis contam histórias e um simples biscoito pode mudar os rumos da história.
A vontade era voltar no tempo e alterar cada passo que a levou até ali.
Evelyn despreza seu marido, vive às turras com a filha adolescente, tem medo de envergonhar o pai, que nunca aceitou seu casamento, não ama o trabalho, trata os clientes por apelidos ofensivos e não tem grandes habilidades. Ela está prestes a perder a licença de operação de sua lavanderia, enquadrada em um regime especial de tributação obtido com a declaração de razões sociais fantasiosas. A brincadeira sobre tudo o que é possível ser além do que se vê começa ali.
Mas o que angustia mesmo a protagonista é não saber lidar com a sexualidade da filha, prestes a detonar uma crise de identidade profunda naquela família quando decide apresentar a namorada para o avô.
Fosse um roteiro normal, "Tudo em todo lugar ao mesmo tempo" seria um dos muitos filmes sobre crises familiares provocadas sempre que as paredes frágeis da normatividade são ameaçadas.
A filha, cansada de ser açoitada pelos preconceitos da mãe, aparentemente está prestes a tomar uma decisão drástica. Cortar laços? Sumir? Dar fim à própria vida?
Não se sabe.
O que se sabe é que entre as milhões de possibilidades do universo ela nasceu naquela família, naquele tempo, naquele país, naquelas condições. E sua fuga, fosse qual fosse, representaria de fato a desorganização e o rompimento de tudo o que dá sentido à mãe. O mundo de Evelyn está prestes a virar do avesso e ela luta contra isso.
O que os diretores fazem, no fim das contas, é transformar esse desejo de uma mulher comum e infeliz com as próprias escolhas num registro cinematográfico: por que não colocar em cena todas essas versões não desabrochadas de uma mesma personagem? Não é o que pensamos todos os dias quando tudo está perdido e não queremos ser o que nos tornamos?
Pois então.
Em uma dessas versões possíveis, a atriz famosa se reencontra com o ex-futuro marido e especula: que vida eles teriam se seguissem juntos? Morrer de tédio pagando boletos em uma casa-lavanderia no interior dos EUA?
A resposta do marido abortado chega carregada de melancolia: "Eu teria adorado".
Em sua versão "comum" e aparentemente sem poderes, o personagem de Ke Huy Quan é a prova de que existem muitas formas de lutar — e este é sobretudo um drama familiar transformado em filme de luta. Cada DR de seus integrantes é atravessada por golpes em cenários que misturam Kill Bill, Jackie Chan, Power Rangers e filme noir.
Entre as muitas posições de poder que se desdobram na relação entre os personagens, chama a atenção, em uma das cenas, o momento em que a mãe diz para a filha adolescente que ela está engordando e precisa se alimentar melhor.
A alegoria do grande "dane-se" que a filha, fatigada pela guerra, está prestes a assumir é um buraco negro em formato de rosquinha, o alimento mais calórico que alguém poderia pensar. Não parece um acaso.
O desejo de desaparecer e fazer aquele mundo explodir é uma espécie de enfrentamento a uma repressão que é também alimentar. Uma violência que define, pelo olhar acusatório dos pais, e do mundo daquela porta em diante, qual corpo é aceitável e qual não é.
Para esse mundo mais diverso, mais expansivo e menos amargo se expandir, outro precisa submergir, junto com todas as potências, frustrações e ressentimentos que ele carrega em cada decisão, inclusive as não tomadas.
Vistos em conjunto, com seus absurdos e aleatoriedades, esses pequenos mundos em choque abrigados num universo de potências e possibilidades reduzem seus personagens e conflitos a fuligem no espaço. Eles são apenas uns dentre milhões. O que sobra, nesse campo de vulnerabilidade que surge e desaparece num piscar de olhos, se não deixar as armas de lado e viver com um pouco de generosidade?
É o que pergunta o personagem de Ke Huy quando percebe que está diante da aniquilação. Para ele, dividir um momento de vulnerabilidade com o inimigo não é dar o caminho para a derrota, mas para construir uma trégua a partir da identificação.
Nossos corpos, dizem os personagens ao longo do filme, são resultados da aleatoriedade, de (im)probabilidade estatística e da falta de sentido. Será mesmo?
A pergunta deixa a plateia a um passo de concluir que a vida, em si, é um milagre e qualquer encontro, um acontecimento de proporção universal.
Não deixa de ser piegas. Mas num mundo tão avesso à expansão isso é tudo o que podemos esperar de uma sessão de cinema.
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