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Médico atuava na base do Corinthians enquanto réu por pornografia infantil

O médico do esporte Renato Estrella, 39, réu acusado de armazenar imagens e vídeos de violência sexual contra crianças, trabalhou mais de dois anos na base do Corinthians enquanto era investigado pela Polícia Civil de São Paulo e mais dois quando já era processado criminalmente.

O UOL apurou que desde o início da investigação, em 2018, até a publicação desta reportagem, Estrella continuou trabalhando como médico especializado no atendimento de crianças e adolescentes. Ele virou réu em 2020.

Os investigadores encontraram vídeos e imagens de violência sexual contra crianças em um laptop que, segundo a polícia, era utilizado por Estrella.

O Ministério Público o denunciou em 2020 baseado nessas provas. O processo corre em segredo de Justiça, e Estrella ainda não foi julgado.

A reportagem teve acesso a documentos do inquérito, a súmulas que mostram a participação de Estrella em jogos de categorias de base e a notificações do Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo).

Estrella foi suspenso pelo órgão médico entre setembro e dezembro de 2021 e proibido de atender crianças e adolescentes até setembro de 2022.

Mas, durante o período da punição, ele trabalhou em pelo menos uma partida do sub-15 do Corinthians e duas do sub-17.

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Imagem: Reprodução

O UOL concluiu o processo de apuração desta reportagem no dia 11 de julho e entrou em contato com os advogados de Estrella, que pediram dois dias para a formulação de uma resposta.

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Sem comunicação prévia, a defesa do médico acionou a Justiça e obteve, no dia 12 de julho, uma liminar proibindo o UOL de publicar as informações.

Essa decisão foi cassada no dia 2 dezembro, com publicação no dia 5.

Além do trabalho no Corinthians, Renato Estrella faz parte da equipe do Instituto Joaquim Grava, fundado pelo médico que dá nome ao centro de treinamento do time, na zona norte de São Paulo.

Grava era o chefe do departamento médico corintiano durante a passagem de Estrella.

A reportagem fez na última quinta (5) novo contato com o Instituto Joaquim Grava e confirmou que o médico segue atendendo na clínica e é apresentado como "especialista em crianças".

Até 12 de julho deste ano, data da liminar, Estrella publicava com frequência a rotina de atendimentos com pacientes menores de idade nas redes sociais.

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Atualmente, seu perfil no Instagram está desativado.

Em nota, o Cremesp afirma que "não havia sido notificado oficialmente sobre o fato de que o médico esteve exercendo a medicina mesmo com a interdição cautelar do exercício profissional".

O conselho diz que, após ser notificado pela reportagem, "será feita nova investigação".

A reportagem apurou que o processo administrativo contra Estrella corre sob sigilo, agora no CFM (Conselho Federal de Medicina), instância superior ao Cremesp, após ação proposta pela defesa do médico.

À reportagem, a defesa do médico disse que não poderia discutir detalhes do caso, que corre em segredo de Justiça, mas afirma que ele provará sua inocência.

"A defesa técnica de Renato Ferreira Estrella, em atenção ao contato realizado pelo UOL, informa que o caso corre sob sigilo tanto na esfera judicial quanto disciplinar, e ainda não possui decisão definitiva, o que impede maiores considerações quanto aos fatos. De todo modo, Renato e sua defesa confiam que, ao final, a verdade sobrevirá, com a consequente absolvição", diz o comunicado.

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Já o Corinthians afirmou que não tinha conhecimento das investigações. "O Sport Club Corinthians Paulista não foi comunicado da investigação envolvendo o médico Renato Estrella. O profissional foi desligado das funções em setembro de 2022 a pedido da chefia médica do departamento. O clube reforça que nenhum integrante da gestão atual teve conhecimento dos fatos."

Todas as punições do Cremesp envolvendo Estrella, assim como outras decisões no processo disciplinar, foram publicadas no Diário Oficial da União.

Joaquim Grava disse à reportagem que Estrella foi afastado das funções tanto no clube quanto no instituto durante o período da punição do Cremesp.

Ele disse não ter conhecimento de Estrella ter trabalhado nas partidas do alvinegro durante a suspensão.

A defesa do médico afirmou que a atuação na beira do campo em partidas de futebol não configura exercício da medicina.

Súmula com a participação de Renato Estrella em partidas sub-17
Súmula com a participação de Renato Estrella em partidas sub-17 Imagem: Reprodução
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Operação com software do FBI

O cerco a Estrella começou com o acesso da Polícia Civil a um software internacional chamado Gridcop.

A ferramenta, desenvolvida pela ONG Child Rescue Coalition, em conjunto com o FBI, a polícia federal dos Estados Unidos, marca imagens de violência sexual contra crianças na internet e as identifica quando são baixadas.

Profissionais de segurança pública de 55 países têm acesso ao software. Por meio dele, os agentes podem localizar computadores que fazem download, armazenam e compartilham o material.

No primeiro trimestre de 2018, a Polícia Civil de Taboão da Serra (SP) realizou uma operação de combate à pedofilia e chegou ao endereço no qual Estrella vivia com a mãe, um dos locais apontados pela operação.

No laptop apreendido foram encontrados arquivos datados desde 2004 com fotos e vídeos de adultos praticando violência sexual contra crianças e adolescentes não identificados.

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Segundo o inquérito, as imagens foram armazenadas durante 14 anos. Junto delas, na mesma máquina, havia o currículo de Renato Estrella e alguns arquivos pessoais de sua atuação profissional.

O relatório da polícia ainda aponta que alguns registros teriam sido transferidos de telefone celular ou câmera fotográfica, e não baixados da internet.

'Interdição cautelar'

A Justiça aceitou a denúncia em dezembro de 2020, tornando Renato Estrella réu.

O crime pelo qual ele é processado está no artigo 241-B do Estatuto da Criança e do Adolescente, e engloba adquirir, possuir ou armazenar material pornográfico envolvendo crianças ou adolescentes.

A pena pode chegar a quatro anos de prisão.

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O médico foi suspenso pelo Cremesp em setembro de 2021.

Ele foi autorizado a retomar as atividades em dezembro daquele ano, mas foi proibido de atender crianças e adolescentes.

A restrição durou até setembro de 2022, quando a suspensão expirou e não foi renovada pelos membros do conselho.

A chamada "interdição cautelar" aplicada em Estrella ocorre quando há elementos "que evidenciem a probabilidade da autoria e da materialidade de prática de procedimento danoso pelo médico" e "dano irreparável ou de difícil reparação ao paciente, à população e ao prestígio e bom conceito da profissão", segundo o Código de Ética do CFM (Conselho Federal de Medicina).

Estrella trabalhou diretamente com menores de idade enquanto vigorava a proibição do Cremesp.

Súmula da FPF (Federação Paulista de Futebol) mostra sua participação em ao menos um jogo do sub-15 e dois do sub-17 do Corinthians até o fim de 2021.

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Os jogos ocorreram em novembro e dezembro, durante a vigência da punição. Estrella deixou o clube em setembro de 2022.

Segundo duas juristas penais ouvidas pelo UOL, o Cremesp tem autoridade para afastar o médico e, em caso de descumprimento, informar à Justiça, que pode emitir uma medida cautelar para impedir judicialmente alguém de exercer a profissão.

Em caso de reincidência do descumprimento, a Justiça pode até ordenar uma prisão preventiva —o que não aconteceu.

Em nota, o Cremesp afirma que trabalha em "parceria" com o Ministério Público e que "toda denúncia ou notificação que indique uma possível infração ética é apurada e as medidas cabíveis são tomadas por parte do Conselho, como, por exemplo, a realização de fiscalizações e a abertura de procedimentos investigatórios".

Trabalho no instituto

Nas redes sociais, o médico aparecia em registros de aparente atendimento a crianças e adolescentes no Instituto Joaquim Grava, em São Paulo, inclusive enquanto esteve proibido de atender a crianças e adolescentes.

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Nos dias 1º e 3 de fevereiro de 2021, período no qual estava impedido de trabalhar com crianças e adolescentes, ele aparece em fotos no consultório com dois jovens jogadores.

"Obrigado Dr. Renato Estrella por cuidar da minha saúde", diz um dos posts.

O perfil do Instagram foi desativado em data desconhecida entre julho e dezembro deste ano.

Estrella já trabalhava no Corinthians havia mais de um ano quando as investigações começaram —ele esteve pela primeira vez em uma partida do clube em 2016.

Hoje, o médico é liberado pelo conselho médico para trabalhar. No Instituto Joaquim Grava ele segue com atuação focada em jovens da base.

A reportagem entrou em contato com o instituto e simulou a cotação de uma consulta com Estrella. O preço informado foi de R$ 750.

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O valor é o mesmo cobrado em uma clínica de medicina do esporte onde ele atende adultos e atletas de base em Alphaville, em Barueri (SP).

Sigilo e lentidão no processo

Apesar de a investigação ter virado processo criminal em 2020, o caso ainda não foi julgado em primeira instância.

A defesa do médico entrou com uma série de ações e recursos discutindo a competência territorial para julgamento do caso e questionando pontos técnicos da investigação.

Protegido pela presunção de inocência e pelo sigilo, Estrella pôde trabalhar durante os últimos seis anos.

Mas, segundo a jurista Helena Regina Lobo da Costa, um profissional acusado de crimes sexuais pode ser impedido de trabalhar sem que se fira o segredo de Justiça.

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"Em geral, o juiz o proíbe do atendimento específico, não da medicina em geral. E não sai avisando todo mundo. Quando muito, há uma notificação para o Conselho Regional de Medicina. E, aí, se a pessoa descumprir, ela pode ser presa", afirma.

No caso de Estrella, o Cremesp chegou a suspender o atendimento do médico a menores.

As movimentações do caso foram publicadas pelo Conselho no Diário Oficial, procedimento obrigatório para advertências, suspensão ou cassação dos profissionais que exercem a medicina.

Apesar disso, a Justiça também poderia tê-lo impedido de trabalhar com menores, explica a jurista Jacqueline Valles, que cita os artigos 282 e 319 do Código Penal.

"Quem deve pedir isso é o assistente de acusação ou Ministério Público", explica Valles.

"Se o órgão entender que é necessário o afastamento por ele poder dar continuidade a esse crime, essa medida é bem adequada. Se isso não foi pedido, a situação acabou ficando a favor do investigado."

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Da pornografia infantil à pedofilia

A medida cautelar apontada por Valles pode, além de ajudar a impedir a reincidência, evitar a ocorrência de outros tipos de violência.

Especialistas apontam uma correlação entre o consumo de imagens de violência sexual contra crianças e adolescentes e a probabilidade de que abusos sejam concretizados por quem consome o material.

O Observatório da Internet da Universidade de Stanford (EUA) realizou uma pesquisa voluntária com 1.546 consumidores dessas imagens na "dark web" — a internet inacessível pelos atuais sistemas de busca.

O estudo, publicado em 2022, compreendeu pesquisas realizadas entre o dia 5 de maio e o dia 25 de outubro de 2021.

No estudo, intitulado "Ajude-nos a te ajudar":

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  • 42% dos entrevistados admitiram ter tentado contato online com crianças ou adolescentes para fins sexuais;
  • 23% disseram que tentam contato com uma criança pelo menos uma vez por mês;
  • 58% confessaram ter medo ou receio de que o consumo de material envolvendo crianças os levaria a praticar abuso contra menores.

Mariana Zan, advogada do Instituto Alana, ONG focada na infância e membro, explica haver um equívoco no imaginário da sociedade brasileira sobre o perfil que pode representar risco para crianças.

"É importante tirar esse manto. Em geral, na verdade, [o agressor] é uma pessoa que tem uma vida social normal", explica.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 mostra que, em casos de violência sexual contra crianças de até 13 anos, em 86,1% os agressores são pessoas conhecidas e que já convivem com as vítimas.

Segundo Mariana, o sigilo nos casos que envolvem esse tipo de violência é regra, e existe também para proteger as potenciais vítimas.

"Tem objetivo de proteger a quem figura como vítima, mas também evita o linchamento social, físico, virtual, que às vezes acaba chegando à família do acusado. Por outro lado, existe a importância de tornar públicos alguns casos, de forma cuidadosa, para que eles não caiam no esquecimento."

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Mariana Zan, advogada do Instituto Alana

Para Lucas Lopes, secretário executivo da Coalizão Pelo Fim da Violência Contra Crianças e Adolescentes no Brasil, a prevenção passa também pela criação de uma política pública para os potenciais agressores.

"Esse é um debate interditado em muitos espaços. Já há inteligência para identificar autores e potenciais autores de crimes sexuais na internet. Isso poderia auxiliar na prevenção e no direcionamento para serviços especializados", afirma.

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