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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Coach do Campari replica 'vitimismo' que só enxerga nas 'inimigas'

Sucesso com "Manual Red Pill", Thiago Schutz já participou de reality da Netflix e virou meme após podcast viralizar nas redes - Reprodução/Youtube
Sucesso com "Manual Red Pill", Thiago Schutz já participou de reality da Netflix e virou meme após podcast viralizar nas redes Imagem: Reprodução/Youtube

Colunista do UOL

28/02/2023 11h56

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Posso estar enganado, mas tenho a impressão de que não teve tese, estudo, pesquisa ou reportagem de fôlego que destrinchou melhor a estratégia de grupos extremistas para chamar atenção nas redes sociais do que um já antigo esquete do coletivo Porta dos Fundos.

O esquete era simples: um presidente com dificuldade de dicção tenta gravar um pronunciamento à nação e é interrompido o tempo todo por um diretor insatisfeito interpretado por Gregório Duvivier.

"Precisamos dar uma escrotada neste cenário", pede o personagem, até conseguir o que buscava.

O presidente, então, resume o seu pronunciamento a uma idiotice qualquer, típica de quinta série, mas os idiotas mesmo se revelam na cena seguinte, quando dois espectadores fisgados gastam seu tempo e inteligência analisando a estética da tosqueira na TV.

Essa estética funcionou — e continua funcionando.

No dia em que dois antigos adversários políticos apareceram diante das câmeras para um gesto simbólico de importância rara em uma campanha da vacina bivalente no país, só se falava de outra coisa nas redes. Talvez tenha faltado um Zé Gotinha armado no cenário.

O fato é que, após anos de discurso antivacina adotado por canais oficiais da Presidência, a imunização do presidente Lula (PT), aplicada pelo médico Geraldo Alckmin (PSB), seu vice, não teve a mesma repercussão, ao menos na minha bolha, do que um calendário tosco lançado agora pela família Bolsonaro, a única empresa do mundo capaz de lançar um calendário de 12 meses no fim de fevereiro.

Dá para ser mais pangaré? Pois foi o que meio mundo se perguntou, fazendo propaganda gratuita para a loja do clã.

O próprio deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho 03 do ex-presidente, veio a público agradecer a preferência. Bingo.

Em casa, livros e revistas antigas se acumulam. Adio há uma semana o início da leitura de "O Idiota", que comprei recentemente em uma promoção. Idiota por idiota, era melhor ter ficado com o de Fiódor Dostoiévski.

A desculpa é que me falta tempo e só por isso estacionei na quinta página.

No mesmo período, não sei dizer quantas vezes assisti ao corte de uma entrevista de podcast em que um certo coach de relacionamento tentava me ensinar a fugir dos domínios de uma medusa em forma de mulher.

Bastava entender que, quando uma mina me oferece uma cerveja, ela não está sendo gentil, e sim testando a elasticidade das minhas posições. Quem deixa de beber o seu Campari em troca de qualquer cerveja está condenado a viver sob a égide do matriarcado.

Em um dos países que mais mata e maltrata mulheres por questões de gênero, a fala não era a única tosquice da cena.

O emissor da mensagem era a tosquice em pessoa. Bonito ele não era. Inteligente, idem. O figurino parecia uma versão para podcast do Augustinho Carrara com sotaque do menino Boça, o ícone do paulistano mais cretino do grupo Hermes & Renato.

Ninguém olharia para aquele cara e imaginaria que estava lá um modelo a ser seguido.

Era óbvio que a fala coalhada de desprezo a figuras femininas era resultado de uma vida toda de rejeição, ressentimento e insegurança.

Ainda assim o vídeo apareceu uma, duas, trocentas vezes na timeline. Aparecia toda vez que alguém comentava o quanto aquilo era tosco.

O próprio influencer, que ganhou o apelido carinhoso de "Coach do Campari", se gabou em outra fala: se alguém assiste aos seus vídeos e cursos para falar mal do seu cabelo e da forma que ele fala, ele já havia obtido o que queria. "O cara já é meu fã", decretou.

Pouca gente tinha ouvido falar do movimento do qual ele faz parte até o vídeo viralizar (não vamos dar nomes aqui).

O movimento, ao que tudo indica, se resume a replicar o que gente como ele sempre acusa os movimentos sociais e grupos minoritários com demandas históricas legítimas de fazer: vitimismo.

A receita é ensinar que o fracasso de meninões frustrados como ele é, na verdade, sintoma de um projeto de poder que quer transformar os marmanjos de podcast em sujeitos subalternos. A reação a isso poderia se resumir ao slogan "Meu Campari, Minhas Regras".

Não podia ser mais tosco. E, no entanto, ele estava prestes a conseguir o que queria no universo da economia de atenção. Virou assunto.

Só não virou (ainda) colunista de rádios extremistas ou candidato a prefeito porque, no meio do caminho, decidiu espernear diante de uma das muitas paródias inspiradas nele.

A reação escancarou o óbvio: no fundo, o menino rejeitado é também um homem violento. Foi o que ele fez ao assediar uma comediante e mandá-la retirar a sátira por bem ou por mal. Na bala, no caso.

Tantos anos de curso em nada serviram diante da exposição e uma invertida, com base jurídica, daquelas.

O episódio mostra que não existe saída fácil entre ignorar ou dar palanque a pascácios que começam falando barbaridades em programas de auditório e, quando vemos, estão vestindo a faixa de presidente.

Com ou sem a visibilidade que teve, influencers do tipo já ganhavam corações e mentes em fóruns onde discursos de ódio e misoginia brotam aos montes sob as camadas da deepweb. Como bem lembrou a jornalista Marie Declercq, o Coach do Campari é só a ponta do iceberg.

Gente assim orienta e referenda uma série de violências em um país que transformou o ressentimento em pólvora e as armas em máquinas de guerra.

Seria ótimo que, em vez de engajamento, despertassem a atenção apenas das autoridades com a missão de acompanhar e desmantelar a engrenagem de fóruns extremistas, uns mais disfarçados do que outros, que se retroalimentam nos escombros até virarem ameaças reais.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL