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Berlusconi fez escola e abriu a trilha para predadores como Trump
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"De Trump eu devo dizer que gosto muito da Melania", disse um já octogenário Silvio Berlusconi, em entrevista a uma TV italiana em 2017.
O ex-premiê italiano, morto nesta segunda-feira (12), aos 86 anos, dizia admirar a beleza, o estilo e o fascínio que identificava na então primeira-dama dos EUA.
Aquela era uma resposta a uma indagação decorrente: seria Donald Trump o "Berlusconi norte-americano", como tantos analistas projetavam antes mesmo de o líder republicano ser levado a sério como candidato?
Na entrevista, Berlusconi demonstrava rejeição com as comparações, mas, inconscientemente ou não, deixava à mostra, como um canino de predador, um aspecto que transformava a cara de um no focinho alaranjado do outro.
Pouco antes da eleição de Trump, o professor de comunicação política italiano Michele Sorice apontava que ambos eram donos de conglomerados imobiliários (e midiáticos, no caso de Berlusconi) e pensavam que poderiam dirigir um país como se fosse uma empresa. A deles, no caso.
Esse nem de longe parecia ser um problema para os figurões outsiders que tomaram o poder em situações semelhantes em momentos e lugares distintos: a insatisfação do eleitor médio com as elites tradicionais — financeiras e políticas, mas também intelectuais, o que inclui a aversão a jornalistas, a não ser os de estimação mantidos em suas folhas de pagamento ou em emissoras amigas.
Eles souberam usar a seu favor uma lenda presente no imaginário do eleitor médio, segundo a qual homens ricos seriam, por natureza, imunes às tentações decorrentes do poder. Afinal, já eram bilionários quando decidiram "servir" à política, e não precisavam se eleger para se realizar financeiramente. Como se a política não pudesse servir à manutenção de interesses e privilégios, numa espécie de atalho para o que historicamente se movimenta lenta e silenciosamente pelos lobbies e corredores do poder.
Tanto um quanto o outro usaram o cargo para promover guerras particulares contra o Judiciário, a mídia, a política, a esquerda e o chamado "politicamente correto". Eles diziam estar ao lado do povo e criaram identificação com eleitores com um estilo boquirroto, interpretado como autêntico e espontâneo em oposição a uma suposta hipocrisia dos ambientes habitados por engravatados de fala ensaiada e gestos artificiais.
Berlusconi fez escola ao mostrar que naquele ambiente já não era preciso ser nem parecer um líder de hábitos monásticos e votos de castidade para exercer o fascínio das massas.
Antes de Trump e seus pastiches, como Jair Bolsonaro, Berlusconi já demonstrava que ninguém precisava vestir pele de cordeiro para conquistar confiança. Poderia, em vez disso, assumir o lado predador e dizer com todas as letras quem queria devorar. Por alguma estrada torta do latim, a pretensa autenticidade virava garantia também de honestidade.
"A Itália parece ser uma espécie de laboratório global para desenvolvimentos políticos estranhos", escreveu, certa vez, o filósofo e analista italiano Francesco Sisci.
Na década de 1920, explica o autor, o país inventou o fascismo, que naquela mesma década seria adotado e aperfeiçoado pela Alemanha. E, nos anos 1990, inventou Berlusconi, "um bilionário que entrou na política para salvar suas ambições". Trinta anos depois, os EUA o replicaram e o "melhoraram" com Trump, segundo Sisci.
Ambos, de acordo com o analista, demonstravam aversão a impostos (em causa própria, diga-se) e à existência de um Estado responsável por minimizar desigualdades através da arrecadação (para bancar, segundo os fãs, vagabundos e perturbados).
Havia, claro, diferenças entre eles. Sisci lembra que Berlusconi ganhou e perdeu as eleições e jamais contestou o resultado das urnas nem endossou ou assistiu a tentativas de golpe como a que aconteceu durante a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2022. E, mal e mal, não demonstrou o mesmo negacionismo do líder republicano no auge da pandemia.
Nada que impedisse seu partido de se associar com os mais bem acabados herdeiros do fascismo italiano, hoje atualizado em discursos anti-imigração e anti-União Europeia, dando apoio ao governo da extremista de Giorgia Meloni, sua ex-ministra da Juventude.
Mas mesmo isso parece um detalhe diante do que de fato conecta os dois líderes populistas de direita e seus pastiches: a fama de predadores sexuais que antes mais catapultou do que prejudicou suas ascensões políticas — em que pesem as encrencas judiciais resultantes do envolvimento em escândalos como as festas com menores de 18 anos promovidas pelo italiano.
"Ele é um homem de bem", disse Trump, em 2015, ao ser perguntado sobre o que pensava de Berlusconi. Justo ele, que anos depois seria acusado de subornar uma atriz pornô, com quem teria se relacionado, em troca de silêncio.
Aqui interessa a preponderância do substantivo masculino sobre a palavra "bem", um derivado interpretado como natural sobre as figuras masculinas (e brancas) de autoridade.
Assim como Berlusconi, Trump conciliou a fama de predador sexual com a pauta ultraconservadora que move seu eleitorado. Elas parecem contraditórias, mas não são.
Historiadores do futuro têm como desafio explicar como esse amálgama mobilizou a identificação de líderes notadamente sexistas com valores tradicionais de gênero, segundo os quais o homem é visto como dominante e superior às mulheres, e a manutenção de hierarquias.
Neste imaginário, Trump e Berlusconi representam a virilidade artificial ostentada mesmo quando a idade avança — a menção a Melania Trump, cujo fascínio não lhe escapou à observação já quase no fim da vida, não era à toa.
Berlusconi estava casado com uma mulher de 33 anos quando morreu aos 86.
Como ilusionista, o ex-premiê pautou o imaginário de eleitores e outras lideranças populistas que até outro dia pediam, ao lado da companheira mais jovem, para as plateias gritarem que eram "imbrocháveis" em público.
Não, Bolsonaro não era magnata, dono de clube de futebol nem tinha a própria emissora de TV — embora fosse tratado como atração de programa de auditório e já vestisse a camisa de todo e qualquer time para angariar simpatia — quando decidiu que era o outsider (risos) certo para resgatar as estruturas morais e avariadas da nação.
Esse resgate passava pela exaltação da figura masculina igualmente avariada, segundo a turma, e uma sintaxe própria, tomada por insinuações sexuais, com referências aos pênis alheios, ataques a mulheres e outras marcas.
Para parte do eleitorado, demonstrar apoio e estar ao lado de líderes assim é ostentar uma espécie de selo de masculinidade diante de um mundo que colocou em xeque exatamente esse modelo de conduta e o nomeou como tóxico. Funcionou para Berlusconi nos anos 1990 e para Trump, nos 2010. Seguirá funcionando?
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