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Ricardo Abramovay

Covid-19 pode abrir caminho para o fim do radicalismo e da polarização

Enfermeiros enfrentam protesto contra medidas de isolamento social em Denver - Reprodução/Twitter Alyson McClaran
Enfermeiros enfrentam protesto contra medidas de isolamento social em Denver Imagem: Reprodução/Twitter Alyson McClaran

Colunista do UOL

22/04/2020 13h13

Os protestos contra o isolamento social em várias cidades brasileiras mimetizam com notável fidelidade o que vem ocorrendo nos Estados Unidos. É verdade que ocorreram manifestações igualmente na Austrália, na Polônia e na Hungria. Mas chamam a atenção cinco características que aproximam Brasil e Estados Unidos, nos pedidos de volta imediata ao trabalho.

A primeira é que nos dois casos, o foco têm sido os estados. Uma das mais chocantes fotos sobre o tema é a que mostra, na frente da sede do governo do estado norte-americano de Michigan, dois homens com armas automáticas, um deles encapuzado e tendo no braço direito um distintivo onde figura a caveira de um crânio e as palavras "death victory" (vitória da morte). Logo atrás, uma mulher segura um cartaz que acusa a governadora do estado de "nazista", e ao lado dela outro cartaz "abra Michigan" e "parem com a tirania".

A violência verbal é muito semelhante à do homem que não se intimidava na Avenida Paulista, em 12 de abril, ao fazer em altos brados a ameaça de invadir a casa do governador João Dória. É especialmente repulsiva a ostentação irônica da suástica como forma de criticar o suposto autoritarismo de quem quer impedir a livre circulação dos cidadãos em época de pandemia. Nos dois casos, muitas das manifestações são carreatas. E o bloqueio de ambulâncias não ocorreu apenas na avenida Paulista, em São Paulo, mas também em Michigan.

A segunda semelhança é que em ambos os casos, os protestos não são explosões espontâneas, mas têm todos os traços de movimentos organizados. As informações no Brasil ainda são precárias, mas as semelhanças entre os dizeres e os próprios estilos das faixas e a forte presença de caminhões nos protestos em centros metropolitanos sugerem uma articulação voluntária, mesmo que ainda não estejam claros seus protagonistas. Nos Estados Unidos, entre os principais organizadores estão, como mostra o jornal Washington Post, três expoentes da extrema-direita que atuam especialmente em Wisconsin, Ohio, Pensilvânia e Nova York. É um grupo pró-armamentista, com duzentos mil seguidores no Facebook. O discurso de um homem na avenida Paulista sustentando que não existe coronavírus, que isso é uma invenção, tem sua perfeita réplica no Reopen NC, da Carolina do Norte, cujo fundador sustentava que "viver é correr riscos e eu não ligo para este vírus mais do que ligo para um resfriado".

A terceira semelhança é que esses grupos conseguem, tanto nas mídias convencionais, como sobretudo nos círculos sob sua influência nas redes sociais, multiplicar o impacto de suas ações. Os protestos contam com não mais que algumas centenas de participantes em cada local onde ocorrem, mas acabam por obter imensa repercussão, tanto pelo espaço que carros e caminhões ocupam nas ruas, como por sua repercussão na mídia e nas redes sociais.

O milagre da multiplicação das vozes é favorecido por uma quarta característica comum aos protestos norte-americanos e brasileiros, que é o apoio explícito que recebem dos presidentes dos dois países. Donald Trump tuitou: "liberem Michigan, liberem Minnesota, liberem a Virgínia e vocês salvarão a Segunda Emenda, que está sob ameaça". A segunda emenda é a que garante o direito dos cidadãos a portar armas. Aqui, Jair Bolsonaro foi às ruas apoiar explicitamente os protestos e não hesitou em afirmar, endossando os pedidos de AI-5, intervenção militar, fechamento do Congresso e do STF: "estou aqui porque acredito em vocês".

Mas há um intrigante paradoxo nessa convergência, cujas consequências políticas despertam alguma esperança. Nos dois países é nítido o contraste entre o que dizem os manifestantes (endossados pelos respectivos presidentes) e o que mostram as pesquisas de opinião. No Brasil, é ampla a maioria a favor do isolamento social, como mostra o Datafolha. Nos Estados Unidos, pesquisa da Universidade de Yale revela que 84% dos entrevistados acreditam que é mais importante interromper a propagação do vírus que retomar a vida econômica. Mesmo entre os que perderam seus empregos, entre os Republicanos e entre os que votaram em Donald Trump a maioria opta por dar prioridade ao combate à pandemia. Apenas 8% dos entrevistados consideram que o Congresso, o presidente Trump, os governadores e as autoridades de saúde deveriam fazer menos do que estão fazendo para enfrentar a Covid-19.

O contraste entre o barulho produzido pelas manifestações e o estado da opinião pública torna-se ainda mais flagrante quando se sabe que, pela pesquisa de Yale, os norte-americanos confiam menos nas informações sobre o novo coronavírus transmitidas por Trump do que naquelas que vêm de seu adversário na corrida presidencial em 2020, o democrata Joe Biden.

É verdade que a popularidade de Trump aumentou nas últimas semanas em torno de 3% relativamente ao período anterior à pandemia. Mas é um aumento muito menor do que o obtido por outros presidentes americanos em momentos de grave crise e, agora, por outras lideranças. Angela Merkel, por exemplo, saltou de 11% para 79% de aprovação. Macron foi de 36% a 51%. O governador de Nova York saltou de 44% para 71%.

A explicação desse contraste, segundo a jornalista do Washington Post que divulgou as informações, dá lugar a alguma esperança no cenário atual: diante de algo tão grave como a pandemia, os dirigentes que consolidaram sua trajetória política apostando na força da polarização, no culto ao ódio, ao grotesco, ao irracional e no permanente incêndio de suas bolhas digitais de repetição e redundância, talvez estejam perdendo a força que os conduziu ao poder. Se essa hipótese se confirmar, o tão propalado pós-Covid-19 poderá ser marcado, na política, pela ampla contestação aos métodos que ampliaram de maneira tão forte, ao redor do mundo, o poder da extrema-direita. Se assim for, para alguma coisa, essa pandemia terá servido.