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Ricardo Abramovay

As dificuldades de Joe Biden para cumprir seus compromissos climáticos

Posto de extração de gás de xisto na Califórnia - David Mcnew/AFP
Posto de extração de gás de xisto na Califórnia Imagem: David Mcnew/AFP

Colunista do UOL

09/11/2020 09h30

Joe Biden adotou a proposta, nascida na ala esquerda do Partido Democrata, de neutralizar as emissões de carbono até 2050. A União Europeia já está engajada neste compromisso, da mesma forma que o Japão. Na China, a meta ficou para 2060.

Quando se juntam a essas promessas a pressão social contra as mudanças climáticas, os anúncios feitos por grandes fundos de investimento e grupos empresariais globais e as conquistas tecnológicas no sistema de transporte e na matriz energética, a conclusão é que o mundo se encontra no bom caminho para lutar contra as mudanças climáticas.

Em entrevista recente a Daniela Chiaretti, Johan Rockstrom (o climatologista que coordenou o trabalho apontando que a humanidade já ultrapassou três das nove fronteiras ecossistêmicas cuja destruição ameaça a própria vida na Terra) sugere que a vitória de Joe Biden poderia dar lugar a um "G3 climático", unindo os esforços da China, da União Europeia e dos EUA para acelerar a descarbonização da economia global.

A conclusão, entretanto, precisa ser examinada à luz daquilo que Daniel Yergin chama de "O Novo Mapa", título de seu livro mais recente. Yergin, ganhador do prêmio Pulitzer, é um dos mais respeitados conhecedores das relações entre energia, geopolítica e mudanças climáticas.

Yergin não contesta a urgência de que se neutralizem as emissões de gases de efeito estufa, responsáveis pelas ameaças que pesam sobre o mais importante bem comum da espécie humana e condição do próprio desenvolvimento da vida social como a conhecemos: o sistema climático. Toda a questão é saber como e, sobretudo, quando a descarbonização vai ocorrer. Para isso, alguns fatores objetivos têm que ser levados em conta.

O primeiro deles é o fato de os Estados Unidos terem conquistado, no século 21, um dos mais importantes objetivos estratégicos dos últimos cinquenta anos: sua independência energética. Contar com petróleo importado — o que motivou, por exemplo, a invasão do Iraque —, pertence a uma outra era.

Hoje, os Estados Unidos converteram-se nos maiores exportadores de combustíveis fósseis do planeta, ao lado da Arábia Saudita e da Rússia. Essa conquista foi obtida graças ao que Yergin considera a mais relevante inovação tecnológica do século 21: o gás de xisto (shale gas).

É uma tecnologia que nasce da iniciativa de um empreendedor (George Mitchell) que contradiz toda a sabedoria consolidada nas grandes empresas, na própria academia e se generaliza, de forma descentralizada, para o conjunto do território norte-americano. Estas formas não convencionais de exploração também resultam na extração de petróleo, em tal quantidade que modifica radicalmente o equilíbrio energético e, por aí, a geopolítica do mundo.

A tese de que no século 21 haveria um "pico do petróleo", que elevaria os preços do combustível às alturas e estimularia alternativas, foi francamente contestada pelas novas técnicas de extração de petróleo e gás. Hoje a grande questão global está em saber quando o mundo vai atingir o pico não da oferta e sim da demanda de petróleo. E é aí que as coisas se complicam para o horizonte de descarbonização da economia global.

A partir de 2016, por exemplo, os Estados Unidos passaram a exportar gás liquefeito para a China. Donald Trump tornou-se, como mostra Yergin, um vendedor direto de gás norte-americano em suas atividades diplomáticas.

É basicamente do gás que dependeu a redução das emissões norte-americanas de carbono. Em 2007, o carvão respondia por metade da geração norte-americana de eletricidade. Em 2019, essa proporção cai para 24%, graças ao gás, muito menos emissor que o carvão.

Os efeitos multiplicadores desta nova fonte de combustíveis fósseis sobre os empregos e a geração de riqueza foram espetaculares. A energia local e barata determinou até um movimento de "renascimento manufatureiro" da economia norte-americana, que passou a atrair empresas europeias, japonesas e até chinesas.

Entre 2009 e 2019, petróleo e gás representaram mais de dois terços dos investimentos industriais norte-americanos e nada menos que 40% do crescimento industrial do país. Cerca de 2,8 milhões de empregos estavam ligados, em 2019, à extração não convencional de fósseis.

A proposta democrata de banir a exploração de petróleo e gás de xisto é positiva como contribuição para descarbonizar a economia global, mas encontra resistências imensas, tendo em vista a contribuição destas técnicas para a economia, os empregos e a independência energética. Por mais que avance a frota de veículos elétricos (prevista para chegar à metade das novas vendas de automóveis em 2050, nos EUA), a duração média de um carro, no país, é de quase doze anos. Portanto, a dependência com relação à gasolina continuará por um bom tempo e gasolina barata é um trunfo eleitoral decisivo.

Não há dúvida de que as energias renováveis modernas avançaram muito nos EUA, com seus preços batendo de longe os do carvão. Mas, como mostra Yergin, a China é a grande vitoriosa global em matéria de energias renováveis modernas. 70% dos painéis solares instalados no mundo são chineses. Se a este total for adicionada a atividade de empresas chinesas mundo afora, o resultado é o domínio chinês sobre 80% do mercado de painéis solares. A China também fabrica 95% dos "wafers" dos quais dependem as células dos painéis solares e são as inovações trazidas pela indústria chinesa que determinaram a queda em 85% nos preços dos painéis entre 2010 e 2019.

O otimismo que estas informações trazem, com relação à descarbonização da economia global, não pode escamotear o fato de a China ainda abrir, nos dias de hoje, três modernas usinas elétricas a carvão por mês, e que a Índia, onde o avanço das renováveis modernas é igualmente notável, tem 75% de sua geração de energia elétrica dependente do carvão.

Uma das maiores dificuldades para enfrentar o desafio de um mundo ainda altamente dependente de fósseis (que globalmente correspondem a 80% da energia da qual depende a humanidade) é que a cooperação global que se esperava da entrada da China na Organização Mundial do Comércio em 2001 já é coisa do passado. O consenso da liberalização comercial foi substituído por rivalidade estratégica que chega à corrida em torno da liderança global da revolução digital. As cadeias de valor, até aqui globalizadas, que operavam sob o pressuposto de fronteiras comerciais cada vez mais abertas, encontram-se agora sob franca contestação, agravada pela Covid-19.

Este preocupante contexto não significa o abandono da transição energética. Mas é ilusório o horizonte de que o caminho já está traçado, e que basta a vitória democrata para que China e Estados Unidos caminhem na mesma direção. E, pior ainda, com um Senado Republicano em que os interesses fósseis têm imensa força.