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Ricardo Abramovay

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Um 'bolo de noiva' para celebrar a Semana do Meio Ambiente

  - Getty Images
Imagem: Getty Images

Colunista do TAB

04/06/2021 04h01

Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável sintetizam as mais importantes ambições das sociedades humanas para esta década. Aprovados pelo conjunto dos países que formam as Nações Unidas, eles estabelecem dezessete metas a serem atingidas até 2030.

Na maioria das vezes, os ODS são apresentados sob a forma de dezessete figuras, uma ao lado da outra. Em torno de cada uma destas figuras, a ONU constituiu alvos específicos (169, no total) e um sistema global e anual de avaliação (com 229 indicadores).

Esquema de objetivos do desenvolvimento sustentável - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Mas a melhor representação gráfica dos ODS e que melhor capta seu alcance foi exposta num trabalho do prestigioso Stockolm Resilience Center, elaborado por Johan Rockström e Pavan Sukhdev. Ela é conhecida como o "bolo de noiva", formado por três camadas superpostas. A vantagem desta forma de ver os ODS é que ela deixa clara a integração orgânica, a coerência interna dos 17 ODS, o que é mais difícil perceber pela exposição das figuras uma ao lado da outra.

Mesmo que se leve em conta que os ODS foram aprovados em 2015 e que, de lá para cá, o mundo mudou muito (basta pensar nos impactos da pandemia), os ODS são ainda uma orientação estratégica decisiva para governos, empresas, organizações da sociedade civil e cidadãos. Não se trata aqui de explicar cada um desses dezessete objetivos, mas de ressaltar sua lógica interna.

Diagrama do 'bolo de noiva' do desenvolvimento sustentável - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

O bolo de noiva é formado por três camadas. A maior é a biosfera, ou seja, o conjunto dos ecossistemas terrestres de sustentação da vida no planeta. Os ODS definem objetivos para preservar e regenerar a vida nos solos por meio do ODS 15, que inclui as florestas, mas também se refere à maneira como se produzem alimentos, fibras e energia e como se mantém ou se destrói a biodiversidade terrestre. O ODS 14 refere-se à vida subaquática, ou seja, os corais, as espécies de peixes e mamíferos aquáticos e a própria poluição dos oceanos e dos rios. A disponibilidade de água limpa é abordada no ODS 6 e ela exige o estudo do ciclo da água em seus diferentes usos, do consumo humano ao industrial e agrícola e também para o saneamento básico. O sistema climático está no ODS 13, que foi fortalecido pela decisão de vários países de reduzir pela metade as emissões de gases de efeito estufa até 2030 e neutralizá-las até 2050.

Esta primeira camada do bolo de noiva não pode ser tratada como um conjunto de recursos aos quais a humanidade recorre infinitamente para satisfazer seus desejos e suas necessidades. Essa visão do mundo natural predominou até cinquenta anos atrás. Hoje, ela entrou em colapso, em função do avanço da erosão da biodiversidade e dos eventos climáticos extremos.

Colocar a natureza como a base de sustentação da vida social e econômica não tem nada de trivial. A cultura predominante nas escolas e universidades é que a dominação humana sobre a natureza, nossa capacidade de adaptá-la a nossos projetos, é o fundamento de nossa capacidade de criar riqueza. Os ODS são um convite a romper com este ponto de vista.

A segunda camada do bolo de noiva é a sociedade. Aqui fica nítida a inspiração dos ODS no pensamento do filósofo e economista indiano Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia de 2008. Desenvolvimento, para Sen, é ampliar as liberdades substantivas dos seres humanos, é poder dispor das bases para que os potenciais das pessoas floresçam. Desenvolvimento se refere menos a coisas e à obtenção de coisas e muito mais àquilo que as sociedades fazem com a riqueza que criam. A riqueza é um meio, um instrumento. Ela não pode ser finalidade: a finalidade (de natureza necessariamente ética) é e tem que ser melhorar a vida social e a relação entre sociedade e natureza, como bem mostra o recém-lançado livro do economista Flávio Comin sobre Amartya Sen.

É o que explica os oito componentes da camada do bolo referente à sociedade: a erradicação da pobreza (ODS 1), a fome zero (ODS 2), a boa saúde (ODS 3) e a educação de qualidade (ODS 4) são premissas básicas da dignidade humana. Mas, para que a vida social se aproxime do valor representado pelo desenvolvimento sustentável, são necessárias outras quatro condições. A primeira refere-se a cidades e comunidades sustentáveis (ODS 11). Isso supõe que se suprima o apartheid territorial que joga muitas vezes a maioria da população em regiões periféricas e desprovidas de serviços e trabalhos de qualidade. A disponibilidade de energia limpa (ODS 7) é fundamental e aqui é importante lembrar que parte importante da espécie humana ainda depende do carvão e do esterco como base para a cozinha e para o aquecimento. Mas, além disso, o desenvolvimento supõe paz, justiça e instituições fortes (ODS 16) e igualdade de gênero (ODS 5).

Os oito objetivos da camada do bolo referente à sociedade mostram que o desenvolvimento sustentável almeja objetivos políticos, culturais e institucionais: uma sociedade cujas cidades têm energia limpa e cujas empresas reduzem suas emissões, mas onde a representação política das mulheres é baixa está se distanciando do desenvolvimento sustentável.

A terceira camada do bolo refere-se à economia. A mensagem do Stockolm Resilience Center é clara: a economia não é uma esfera autônoma da vida social. Ao contrário, ela está incrustada na política, na cultura, nos hábitos e na maneira como nos relacionamos uns com os outros. Uma sociedade sem paz, justiça e instituições fortes não será economicamente forte. Mais do que isso: se é verdade que o ODS 8 preconiza crescimento econômico, essa meta está ligada ao que a OIT (Organização Internacional do Trabalho) define como trabalho decente. Três outros objetivos compõem a vertente econômica dos ODS. A indústria, a inovação e a infraestrutura (ODS9), a redução das desigualdades (ODS10), o consumo e a produção responsáveis (ODS12).

Os ODS tornam-se ainda mais importantes diante do empenho, vindo tanto dos Estados Unidos como da União Europeia, de colocar as mudanças climáticas e a luta contra as desigualdades no centro de suas políticas econômicas. O mundo está sepultando a ideia que dominou o pensamento econômico das últimas décadas, de que se os mercados funcionarem bem, a vida social melhora.

Os ODS fazem dos cuidados com a vida e com a sociedade o fundamento da atividade econômico. E com isso rompem com o ridículo dos que enchem a boca para dizer que, quarenta anos atrás, estudaram economia na Universidade de Chicago.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL