VERGONHA EUROPEIA

Como é ser criança e viver no maior campo de refugiados do Velho Continente

André Naddeo Colaboração para o TAB, de Atenas

Moria caiu.

Era noite alta quando um incêndio tomou conta dos barracos, construídos em um território isolado da ilha de Lesbos. Um grupo de refugiados discutia as medidas restritivas implementadas após o primeiro caso de Covid-19 ter sido confirmado no campo. A discussão virou briga, e a briga virou incêndio. Seis afegãos estão em prisão preventiva.

Quase 13 mil pessoas tiveram de correr do fogo para se proteger, no meio da madrugada. Incêndios eram comuns no campo, dada a aglomeração. Em março, uma garota afegã de sete anos perdeu a vida: morreu carbonizada em um contêiner.

Fugindo às pressas, deixaram para trás suas parcas provisões e passaram a vagar no asfalto, sem rumo. A polícia foi chamada para impedir que pegassem a estrada rumo a Mitilene, a capital de Lesbos.

O governo grego, sob pressão da União Europeia e dos moradores da ilha, cada vez mais revoltados com a presença dos refugiados, levou quase um mês para resolver a questão — leia-se, construir um novo campo, plantado próximo ao mar, a seis quilômetros do original. A vista da "Moria 2.0" é linda, mas as condições são as piores possíveis. A água encanada é escassa. Parte dos moradores terá água salgada sob os pés, na maré cheia. O vento que sopra do mar é inclemente.

As famílias desalojadas estão presas num limbo diplomático e humanitário. Ao contrário do resto do território grego, os refugiados de Lesbos vivem em quarentena forçada desde março por causa da pandemia. Sair do campo é terminantemente proibido. As crianças sofrem muito: apenas 9% iam à escola, antes do incêndio. Depois de um tempo, algumas crianças acabam desenvolvendo Síndrome de Resignação: a tensão e a ansiedade são tamanhas que elas entram em estado de dormência. Mal se alimentam. Só querem dormir.

Era essa a promessa de prosperidade do acolhimento europeu?

REJEIÇÃO À GREGA

A deriva dos barcos de plástico no Mediterrâneo foi ostensivamente televisionada. Botes e embarcações improvisadas batiam nas ilhas gregas e italianas com centenas, milhares de pessoas em busca de uma nova vida. A fuga em massa de africanos e asiáticos ganhou o noticiário. O mundo chorou com a imagem do menino sírio imóvel, na praia de Bodrum, na Turquia.

Embora já não conte com o mesmo espaço midiático, a crise dos refugiados está pior que em 2015.

Os moradores do continente que concentra algumas das nações mais ricas do planeta observam crianças sendo criadas em meio ao lixo, junto do esgoto a céu aberto, alimentadas depois de permanecerem horas na fila, em um ambiente onde estupros, incêndios e esfaqueamentos fazem parte da rotina.

Quando o campo de Moria pegou fogo, o pesadelo ganhou contornos ainda mais dramáticos, com parte da população da ilha rejeitando e ameaçando com violência os refugiados, que enquanto não eram abrigados no novo campo passaram a morar no meio-fio das calçadas e em estacionamentos de supermercado.

Azzis, um dos meninos afegãos entrevistados por TAB, contou sua história desde que ele e seus pais saíram de Cabul, no Afeganistão. Leia aqui.

CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE

O trato aos refugiados em Lesbos virou padrão nas ilhas de Samos, Leros, Chios e Kos, as grandes portas de entrada, via Turquia, para o Velho Continente.

Projetado para receber 2.750 pessoas, o campo de Moria chegou a reunir 20 mil solicitantes de asilo. A grande maioria vivia na chamada "jungle" ("floresta"), fora das instalações oficiais. Tanto em um quanto no outro, água corrente e eletricidade eram artigos de luxo. Esse ambiente hostil foi lar de milhares de pequenos sonhadores: estima-se que 37% dos habitantes do maior campo de refugiados da Europa sejam crianças.

"O negacionismo é a chave para entender as decisões das autoridades até agora", afirma George Nikolaidis, psiquiatra e diretor do departamento de saúde mental do Instituto de Saúde Infantil em Atenas. "Eles acreditam, ou ao menos agem como se assim pensassem, que esse é um problema temporário, que nós vamos livrar disso. A maiorias das famílias já não têm mais recursos para prover qualquer tipo de formação aos jovens. Isso tem um forte impacto psicológico. É praticamente impossível para uma criança refugiada ou imigrante ver alguma perspectiva de futuro."

É difícil ter dados exatos, seja pelas constantes chegadas e partidas (muitas vezes ilegais), como também pela má vontade das autoridades. No entanto, a estimativa de organizações e voluntários era que 75% dos refugiados de Moria sejam provenientes do Afeganistão, país que vive em guerra permanente, agravada pós-11 de Setembro.

Panaiotis Kosmopoulos é psicólogo pediátrico do Médicos Sem Fronteiras e atuava em Moria. As crianças que atende, segundo ele, têm problemas para dormir, pesadelos, molham a cama à noite e têm sintomas de ansiedade, ataques de pânico e depressão. Há casos de automutilação e tendências suicidas, e uma longa lista de espera, no aguardo por consultas. "Nunca vi tamanho sofrimento. Algumas crianças não comem e não falam mais. Penso num paciente meu que reclama das brigas dentro do campo. Ele esconde a cabeça debaixo do travesseiro, esperando os barulhos terminarem."

REFÚGIO OU ESCUDO?

De acordo com o último relatório disponível da Comissão Europeia para Migrações, de fevereiro de 2019, a Grécia, em franca crise financeira, recebeu da União Europeia 816 milhões de euros (R$ 5,27 bilhões), desde 2015, para lidar com a crise dos refugiados. Outros 613 milhões de euros (R$ 3,96 bilhões) já haviam chegado no pacote de ajuda financeira para os anos de 2014-2020.

Dinheiro não parecia ser o problema imediato. Mas onde foram parar esses euros? No fim de 2018, Andreas Iliopoulos, chefe do sistema de acolhimento de refugiados e imigrantes do então governo de Alexís Tsípras, reconheceu que não havia controle sobre os recursos e admitiu que o sistema era fraudulento. Nada aconteceu depois da denúncia.

Há um ano, o partido de centro-direita Nova Democracia, do primeiro-ministro eleito Kyriakos Mtsotakis, endureceu a política migratória na Grécia: em março de 2020, chegou a suspender os pedidos de asilo em solo grego pelo período de um mês, após a Turquia abrir compulsoriamente suas fronteiras ao norte diante de um impasse financeiro com a UE.

No mesmo mês, a chefe da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, visitou a zona do rio Evros, ao lado de Mtsotakis, na fronteira terrestre com os turcos. Ela elogiou a política grega de militarização, que chamou de "escudo da Europa", e prometeu outros 700 milhões de euros (R$ 4,5 bilhões) em ajuda adicional à crise.

À DERIVA

Desde então, já num cenário pandêmico, crescem os relatos de devoluções ilegais no mar Egeu. Guardas costeiros detêm os botes infláveis a tiros, retiram o motor e, com uma corda, os levam de volta às águas turcas. Muitas embarcações ficam à deriva.

Em entrevista à CNN, o primeiro-ministro negou veementemente os chamados "push backs". Só que uma nova lei de imigração, em vigor desde janeiro, impede agora os solicitantes de asilo de obterem trabalho legal pelo período mínimo de seis meses. O sistema diz abraçar o refugiado, mas suas engrenagens sabotam o discurso.

Um novo plano de realocação de menores vivendo nas ilhas gregas entrou em vigor, com a meta inicial de transladar 2 mil pessoas para a Europa continental. Finlândia, Luxemburgo, Alemanha e Portugal receberam, até o momento, cerca de 300 pessoas, de acordo com dados da própria UE.

Cinco meses após a reportagem de TAB presenciar in loco a miséria e falência de Moria, cerca de 5.000 solicitantes de asilo foram autorizados a viajar para dentro da Grécia. A questão é: para onde vão essas 5 mil pessoas, se os campos continentais seguem superlotados?

Em junho, uma decisão do Ministério da Imigração, após conceder proteção humanitária em massa, despejou nas ruas nada menos do que 11 mil pessoas. Eram refugiados reconhecidos que tiveram suspensos os 90 euros mensais de ajuda, e sequer tinham direito a uma barraca de camping e uma marmita de macarrão. As ruas de Atenas seguem lotadas de "refugiados moradores de rua". Adultos e crianças.

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