O ESTADO E A PANDEMIA

As medidas de contenção à Covid-19 balançaram a economia mundial. Como os governos vão atravessar essa crise?

É praticamente consenso que a crise causada pela pandemia de Covid-19 deve significar mais Estado na vida das pessoas. E não só na economia: governos já estão controlando nossos passos, monitorando o celular de quarentenados e punindo infratores — a prisão e a multa para quem desrespeita as regras são polêmicas em várias democracias ocidentais.

Em março, a revista britânica The Economist já alertava para a maior expansão do poder de governos desde a 2ª Guerra Mundial — e também justificava: "não é por acaso que o Estado cresce durante crises. (...) Somente governos podem coagir e mobilizar vastos recursos rapidamente. (...) Só eles podem ajudar a compensar o colapso econômico resultante". No artigo, a revista também defende que, passada a crise, o Estado deve novamente submergir.

O argumento de que liberais só se lembram do Estado em momentos de dificuldade foi ironizado, por exemplo, pelo ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica. "Agora que a batata está assando, todos se lembram do Estado. 'O Estado tem que tomar medidas'. Mas, quando têm que ganhar dinheiro, 'que o Estado não se meta'."

O fato é que, desde que ficou claro o tamanho do problema, os governos se meteram. Medidas para evitar demissões foram implantadas em diversos países, em pacotes econômicos que vão custar trilhões de dólares — Dinamarca e Polônia já avisaram, contudo, que a ajuda não vai alcançar empresas que se mudaram para paraísos fiscais, fugindo dos tributos.

Em conversa com TAB, o economista James K. Galbraith, professor da Universidade do Texas (EUA), dividiu o papel dos governos nessa pandemia em três etapas. A primeira é o enfrentamento direto da doença; a segunda é dar garantias para que as pessoas possam ficar em casa em segurança financeira e alimentar; e o terceiro estágio é a reorganização da economia. São a segunda e terceira etapas que TAB vai discutir.

Assim como no combate à própria pandemia, as discussões econômicas são baseadas em experiências bem-sucedidas, mas também na incerteza que o novo traz. Para enfrentar a Covid-19, a ciência usa o que aprendeu com pandemias passadas para lidar com o desafio desconhecido. Economistas tentam fazer o mesmo.

Ainda que não tenhamos dados definitivos, é seguro dizer que a economia mundial está em uma profunda recessão. É a partir dessa premissa que Martin Wolf, comentarista chefe de economia do jornal britânico Financial Times, faz seu diagnóstico sobre quais devem ser os próximos passos. "A questão mais importante é saber quanto de nossa economia será destruída no processo de conter a doença. E quão facilmente nós conseguiremos voltar ao normal", escreveu o colunista.

A projeção do FMI (Fundo Monetário Internacional), feita em março, previu uma queda de 3% do PIB global para 2020, seguida por uma recuperação em 2021 — crescimento sobre uma base excepcionalmente fraca. O quadro pode piorar se o confinamento durar mais ou se for necessário voltar a ele ano que vem. O cenário é radicalmente diferente do traçado pelo mesmo FMI em janeiro de 2020, antes de a Covid-19 ser percebida como um risco (veja gráficos abaixo). No caso do Brasil, a nova recessão chega ao país antes que a economia se recupere plenamente da crise anterior.

E as projeções do FMI não são as mais pessimistas. O governo do Reino Unido, por exemplo, trabalha com a possibilidade de uma queda de 12,8% para 2020 — quase o dobro dos 6,5% projetados pelo Fundo Monetário Internacional.

A ONU (Organização das Nações Unidas) calcula que a pandemia pode fazer dobrar o número de pessoas com fome no mundo. Eram 130 milhões de pessoas em situação severa de fome em 2019; podem ser 265 milhões em 2020. A maneira como as projeções de crescimento têm caído rapidamente não dá qualquer segurança de que estamos perto do número final.

Ainda sem saber a magnitude da recessão que já começou, duas experiências têm servido de parâmetro: a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, e a crise financeira global de 2008. As duas tiveram origem no sistema financeiro norte-americano e abalaram a economia mundial. A primeira desempregou um terço da população nos EUA e só começou a ser superada com um programa estatal de estímulo, conhecido como New Deal. Já em 2008, depois da falência de bancos, o governo injetou trilhões de dólares na economia, tentando estimular o mercado e salvar empresas.

O economista Gabriel Mathy, professor de macroeconomia e história econômica na Universidade Americana, em Washington, é um estudioso de recessões. Questionado pelo TAB sobre as lições que 1929 e 2008 deixaram, ele aponta a necessidade de uma "resposta forte" dos governos. Em 1929, Mathy avalia, a resposta demorou — e isso teria sido a grande causa da depressão nos anos seguintes à quebra da Bolsa. "Os governos estaduais e municipais ficaram responsáveis inicialmente por fornecer alívio, mas eles rapidamente ficaram sem dinheiro. O socorro federal só aconteceu com o New Deal [iniciado em 1933], que ofereceu ajuda em troca de trabalho em obras públicas."

Em 2008, Mathy acha que a resposta foi melhor, apesar de também insuficiente. Ele cita o programa de "recuperação e reinvestimento" aprovado pelo Congresso norte-americano em 2009 que, entre outras coisas, repassou dinheiro a estados e municípios — responsáveis por vários dos programas de proteção social no país. "Demorou até 1942 para a recuperação ser completa, e uma década depois de 2009 para chegarmos ao pleno emprego. Sem uma resposta fiscal importante, a recuperação tende a ser lenta. Especialmente se a doença não for erradicada logo e a demanda permanecer deprimida", explica Mathy.

De todo modo, as crises anteriores surgiram dentro do próprio sistema econômico e financeiro, não de uma pandemia. O mais próximo que temos do quadro atual é gripe espanhola, no final dos anos 1910. Comparações exatas são dificultadas pela falta de dados precisos, mas historiadores econômicos conseguiram remontar o cenário em partes do mundo. Nos EUA, pesquisadores do MIT concluíram que cidades que se fecharam mais e melhor tiveram menos mortes e retomaram a economia mais rapidamente. Outro caso ilustrativo é o da Suécia, país que ficou neutro na Primeira Guerra (1914-1918). Pesquisadores daquele país perceberam que alguns efeitos negativos da gripe espanhola na economia se tornaram permanentes, principalmente entre os mais pobres, que não se recuperaram. O mais amplo estudo sobre os impactos econômicos da gripe espanhola, contudo, foi lançado em abril por pesquisadores da Universidade de Harvard. Comparando variações no PIB de 42 países, eles descobriram que a queda da economia global somente por causa da pandemia ficou em torno de 6%.

Apesar de verem exemplos que podem nortear as ações para 2020, Mathy, Galbraith e outros economistas têm dito que essa crise tem aspectos diferentes de tudo que a economia capitalista já viveu.

Na esteira de 2008, os professores da Universidade de Harvard Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff analisaram crises financeiras passadas e encontraram um padrão no mundo todo. Crises se repetem, mas só de tempos em tempos. E o espaçamento entre elas criava em economistas e formuladores de políticas uma noção equivocada, que acabou virando nome do livro: "Desta vez é diferente". Mas se as crises eram parecidas, a do novo coronavírus é surpreendente.

Logo nos primeiros dias de quarentena, Reinhart escreveu um artigo publicado no site Project Syndicate chamado "Desta vez é realmente diferente". "Não conheço um episódio histórico que possa fornecer qualquer insight sobre as consequências da atual crise do novo coronavírus", escreveu a economista, que analisou e documentou oito séculos de crises financeiras. Por isso, ela recomenda medidas políticas monetária e fiscal "fora da caixa" e "em larga escala".

"Se não controlarmos o vírus, nada mais vai importar", disse Galbraith ao TAB. Em artigo publicado pelo jornal britânico The Guardian, ele argumenta que números não são o mais importante neste momento. O recorde de pedidos de seguro desemprego nos Estados Unidos é visto como um sinal de que a rede de proteção está operando.

Crises normalmente têm efeito dominó. Quando a bolsa de Nova York quebrou, em 1929, os investidores perderam patrimônio, deixaram de honrar dívidas com bancos, que cancelaram compras de agricultores etc (não necessariamente nessa ordem). Foi assim que, no Brasil, muitos cafeicultores faliram, e que indústrias fecharam na Alemanha, levando à miséria e à inflação — palco perfeito, inclusive, para a ascensão do antes quase irrelevante Partido Nazista.

A crise atual é diferente: todo o mundo parou ao mesmo tempo, em um movimento que vem sendo chamado "o grande desligamento". Para Galbraith, não estamos em "uma recessão ordinária, em que simplesmente se injeta renda na economia". Ele reclama do uso equivocado do termo "estímulos". "Não se podem usar estímulos quando não há nada para comprar." Mathy afirma que é preciso assegurar que as famílias continuem a ter renda para pagar contas básicas como "aluguel e hipotecas", e que as empresas possam seguir pagando funcionários de licença. "Se o gasto de alguém cai, isso reduz a renda de outra pessoa, e a economia desacelera."

A primeira medida para frear o impacto da crise, repetindo 2008, foi a injeção de liquidez. Isso significa colocar mais dinheiro em circulação, com uma série de instrumentos. No Brasil, o Banco Central comprou títulos de dívida (ele fica com o papel e o direito a receber e, em troca, dá dinheiro ao antigo dono) e reduziu o montante que os bancos comerciais são obrigados a deixar parados. Mas não há garantias de que isso chegará ao consumidor final.

Economistas temem o chamado "empoçamento", quando o banco prefere guardar o recurso a emprestá-lo. Esse é um dos fatores que alimenta a ideia de "dinheiro de helicóptero". Vista como utópica num passado recente, a ideia de simplesmente distribuir dinheiro à população sem qualquer contrapartida já vem sendo adotada em países como Cingapura e Hong Kong. No Brasil, o auxílio emergencial é dado apenas aos trabalhadores informais, desempregados e microempreendedores individuais.

Entre o dinheiro de helicóptero e o auxílio emergencial está a ideia da renda mínima. Como o próprio nome diz, ela garantiria um mínimo a quem não chega ao patamar estabelecido. O país, que há anos enfrenta problemas fiscais e chegou à pandemia no meio de um ajuste das contas públicas, provavelmente terá menos espaço para adotar medidas. A PEC do orçamento de guerra cria algo só para gastos emergenciais. Mas isso não é desculpa para não tentar frear os danos da crise. "Qualquer país capaz de fazer controle de capitais e das contas externas pode encontrar espaço para lidar com isso. E eles terão de fazer. A outra alternativa é ter um monte de gente morta."

Em abril, em entrevista ao programa "Roda Viva", da TV Cultura, a economista Monica De Bolle argumentou que a relação dívida/PIB vai crescer de qualquer maneira: ou os governos gastam para aumentar a dívida e tentar manter o PIB, ou deixam de gastar, mantêm a dívida, mas veem o rombo aumentar por causa do PIB em queda. "O Brasil é um país emergente e mais vulnerável que outros, verdade. Mas temos vantagens, como não ter dívida externa, o que evita problemas com balanço de pagamentos. E a nossa dívida pública é na nossa moeda."

Uma vez controlada a doença, começa a fase da reorganização da economia. Ou a organização de uma nova economia. Mesmo depois que governos decidirem que é seguro voltar às ruas, as pessoas se sentirão tão seguras quanto antes? Irão a teatros, cinemas, restaurantes? Como estarão as finanças após o confinamento? Terão dinheiro para um novo celular? Trocarão de carro ou vão preferir manter o dinheiro guardado por mais um tempo? Por isso, reorganizar a economia real não significa organizá-la da mesma maneira como era em janeiro de 2020.

Além da economia real, do consumo e do emprego, o professor Galbraith lembra que será necessária uma reorganização financeira. "O aluguel ainda vai estar lá, os financiamentos estudantis também, o cartão de crédito vai crescer. O cenário ideal vai ser todo mundo voltar para a renda de antes, deixando para trás uma pilha de dívidas adquiridas que não podem ser pagas. Mas, para a maioria, a renda não vai voltar ao que era."

Galbraith acha que essa conta precisa, de alguma maneira, ser regulada. "A sociedade não vai tolerar a liquidação de seus bens se as pessoas não são culpadas de maneira alguma pelo que aconteceu", completa. Seria possível passar uma borracha na herança maldita deixada pela Covid-19?

A professora Carmen Reinhart, que em março sugeriu que o mundo precisava de ideias fora da caixa, escreveu em abril que credores precisam pensar sobre a suspensão de pagamento de dívidas de países emergentes. A "moratória temporária" valeria durante a pandemia, tanto para governos quanto para empresas, e seria seguida pela reestruturação das dívidas. "É míope credores esperarem o pagamento de dívidas, privadas e governamentais, de países que deveriam estar usando esses recursos para combater o vírus."

Martin Wolf avalia que em algum momento, após o confinamento, vai ser necessário aumentar impostos para pagar os gastos com o sistema de saúde e de proteção social. "Vamos ter que pensar se podemos continuar com trabalhos precários, e em como relacionamos vencedores e perdedores no nosso sistema econômico. Caso contrário, não acredito que nosso sistema democrático sobreviverá", disse, em vídeo publicado pelo Financial Times.

Questionado por TAB sobre quem deve pagar a conta, o professor Galbraith disse que essa escolha definirá que tipo de sociedade teremos depois da Covid-19. "Queremos uma sociedade em que um número pequeno de pessoas tenha ainda mais controle sobre bens, com exércitos de sem-teto famintos? Sem capacidade de manter a ordem social, os serviços públicos? Ou uma sociedade razoavelmente coerente e organizada? Se queremos a segunda opção, com saúde e emprego, então é preciso redefinir tanto o mercado financeiro quanto a economia real."

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