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Menu pós-pandemia: Covid-19 impacta a dieta de todo mundo, no mundo todo

O risco de crise alimentar derivada da pandemia não atingirá apenas um ou outro país, mas a todos - Annie Spratt/ Unsplash
O risco de crise alimentar derivada da pandemia não atingirá apenas um ou outro país, mas a todos Imagem: Annie Spratt/ Unsplash

Juliana Sayuri

Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)

01/05/2020 04h00

Em tempos de lives e videoconferências urgentes, o americano David Beasley foi direto: "Estamos à beira de uma pandemia de fome", advertiu o diretor do Programa Mundial de Alimentos ao Conselho de Segurança das Nações Unidas no dia 21 de abril. Segundo a ONU, a pandemia de Covid-19 pode provocar uma catástrofe de "proporções bíblicas", dobrando o número de famintos para 265 milhões mundo afora.

Pela primeira vez, três titãs (FAO, OMC e OMS) declararam conjuntamente o risco de uma crise alimentar. O informe de 31 de março alerta que as incertezas provocadas pela pandemia podem gerar ondas de restrições à exportação -- o que pode levar à escassez no mercado mundial. Mas o que quer dizer uma "crise alimentar mundial"?

Nu e cru, quer dizer que a pandemia pode afetar a dieta de todo mundo, no mundo todo. "A comida pode não chegar ao prato porque faltou braço para colher, caminhão para entregar, tripulação no navio de carga, armazém para estocar, feira para vender", exemplifica Juliana Tângari, diretora do Instituto Comida do Amanhã. E é grave porque a pandemia atual se justapõe a uma "sindemia" global antiga, que se refere a três crises simultâneas (obesidade, má nutrição e mudanças climáticas).

Efeito dominó

Os ditos "celeiros do mundo", como o Brasil, talvez não enfrentem impactos tão duros agora. Outros exportadores podem literalmente precisar escolher entre nutrir o próprio povo ou vender para fora. Assim, importadores, que dependem de certas commodities agrícolas, ficam desabastecidos. É o que pode acontecer com parte da Ásia e África.

Ao longo de abril, alguns países adotaram políticas restringindo exportações: Cazaquistão proibiu exportações de trigo, que iria para Afeganistão e Uzbequistão; Vietnã suspendeu arroz (é o terceiro maior exportador do mundo); Turquia restringiu limão, que iria para Rússia, Iraque e Arábia Saudita; Ucrânia sinalizou que deve barrar trigo, antes destinado a Ásia e Oriente Médio; Rússia, que produz cereais, aprovou nova lei permitindo barrar exportações agrícolas a qualquer momento.

No Afeganistão, já há longas filas para obter sacos de trigo dados pela ajuda humanitária. Na Síria, a fila é por pedaços de pão. No Zimbábue, por farinha de milho.

"Países que dependem desses produtos, especialmente itens básicos como arroz e trigo, correm o risco de terem dificuldade em conseguir alimentos suficientes ou a preços 'normais'. Lembrando que o arroz é a principal fonte de carboidratos nos países asiáticos", diz Saulo Pio Lemos Nogueira, do Instituto de Relações Governamentais (IRelGov). "A imposição de restrições gera instabilidade no mercado, o que impacta os países mais pobres, como a África subsaariana", define.

Trocando em miúdos, o risco de crise alimentar derivada da pandemia não atingirá apenas um ou outro país, mas a todos. Quer dizer, a cadeia global de alimentos é, afinal, global.

De pães a 'pancs'

Além dos impactos imediatos da pandemia na alimentação (que paralisou ou fez falir restaurantes, arrastou a gastronomia ao delivery, inspirou iniciativas solidárias de chefs, deu gás a tutoriais culinários e dietas para turbinar imunidade, levou ao boom de receitas de pães caseiros, a "pãodemia"), a consequência mais diuturna é a discussão sobre fome de verdade: fome, afinal, não é pular o jantar e ir dormir com o estômago roncando uma noite. É estar cronicamente faminto.

A tendência de restrições no mercado internacional é apenas um dos fatores de risco, destaca Juliana Tângari, do Instituto Comida do Amanhã. Outro é o fluxo no mercado nacional. "Pode não faltar trigo para o pão nosso de cada dia. Mas talvez falte fruta e legume. Enfim, comida de verdade. Este risco, sim, é iminente", diz Tângari, citando recentes comunicados da FAO e observatórios como IFPRI e IPES-Food.

Cerca de 70% dos itens frescos que a gente come no Brasil vêm da agricultura familiar. Se não conseguem levar hortifrútis à cozinha de restaurantes ou feiras livres, agricultores não têm renda -- e talvez não consigam plantar para a próxima safra. "Este é o maior dilema do cenário agrícola pós-Covid. De que nos adiantará ter safras recordes de cana, soja, milho e demais commodities agrícolas e não termos hortifrutícolas economicamente acessíveis à população?"

De acordo com a FAO, 75% da diversidade genética das culturas agrícolas foram perdidas durante o século 20 no mundo todo. Atualmente, arroz, milho e trigo suprem cerca de 60% das calorias da dieta diária, deixando de lado uma série de sementes - entre elas, as "pancs", plantas alimentícias não convencionais, como ora-pro-nóbis, capuchinha e bertalha. "Itens assim eram vistos como comida de pobre, mato da roça. Isso tem mudado recentemente, com a incorporação dos ingredientes à alta gastronomia", diz Mariella Uzêda, da Embrapa Agrobiologia.

Pós-pandemia

O TAB perguntou a quatro especialistas como será a alimentação do amanhã. Eis as apostas:

"A pandemia é uma lente de aumento: não dá mais pra fechar os olhos para a realidade. A lente evidencia fome e pobreza, mas deixa entrever um amanhã diferente. É 'aproveitar' para mudar o que já precisava ser mudado. Até agora, comer é muito pouco 'escolha' e muito mais 'influência': dos hábitos colonizadores de sempre, modismos da estação, marketing sem trégua das indústrias, falta de pontos de venda de comida saudável no trajeto diário casa-trabalho-casa, preços proibitivos etc. Se a comida do amanhã levar a nossos pratos a consciência de toda essa trama de capitais econômicos, sociais e culturais e do poder de nossas escolhas (ou crítica à impossibilidade delas) já teremos avançado bastante. Pode render bons frutos."
Juliana Tângari, Instituto Comida do Amanhã, Rio

"No Brasil, as mudanças devem ser menores, pois a capacidade produtiva da nossa agricultura afasta riscos de falta de alimentos. Mas é evidente que continuará existindo o problema de chegar nas regiões mais afastadas ou pobres no país. O risco de a população mais carente não ter condições de comprar comida já se materializou e precisa ser enfrentado agora"
Saulo Pio Lemos Nogueira, Instituto de Relações Governamentais, Belo Horizonte

"Quero apostar no circuito curto: comprar diretamente do pequeno produtor, do próximo, uma relação rica de interação cultural. Essa mudança vai ser primeiro de pequena escala, aproximando produção e consumo. Isso já está acontecendo em alguns lugares no eixo Rio-São Paulo, por iniciativa da sociedade. Onde o governo não está, a sociedade assume protagonismo e se organiza no campo e na cidade, faz as pontes possíveis. Meu medo é que, pós-pandemia, a gente encontre uma agricultura familiar tão fragilizada que a sociedade civil não encontre nada do outro lado da ponte. O governo precisa agir agora para permitir que esse encontro se consolide e aconteça em escala maior"
Mariella Uzêda, Embrapa Agrobiologia, Rio

"A capacidade humana de se projetar no futuro é força e ilusão. O dramaturgo Nelson Rodrigues já dizia: no Brasil, até o passado é imprevisível. Ninguém deixará de comer. Todos querem comer bem. A renda continuará definindo os padrões de consumo. Renda mais elevada leva a consumo mais elevado. Parte das perdas e dificuldades do período serão compensadas por ganhos de eficiência e competitividade, alcançados no mesmo período. Minha resposta é uma pergunta: o que acontecerá, se nada acontecer?"
Evaristo de Miranda, Embrapa Territorial, Campinas