"A partir de hoje, não serei mais o pastor aqui", disse Márcio Valadão, 75, entre luzes coloridas e fumaça de gelo seco, na Igreja Batista da Lagoinha de Belo Horizonte.

Aquele domingo, 11 de dezembro, marcou o início de um novo e surpreendente capítulo para a igreja pop do clã Valadão. Na sucessão saiu o pai, entrou o filho — uma passagem de cajado vista com temor nos bastidores.

Quem vai cuidar do rebanho agora é André Valadão, 44, único filho varão do pastor que viralizou e virou meme ano passado ao anunciar, com seu famoso sorriso incontido, a morte de Guilherme de Pádua em uma live: "Morreu agora, agorinha...".

Tido como um "playboy" intempestivo e bolsonarista, o novo líder da igreja vive em Orlando (EUA), de onde agora comanda a expansão da Lagoinha, que hoje reúne mais de 700 unidades espalhadas entre o Brasil e outros 13 países.

"Já vamos chegar chutando a porta, pá, faca na caveira, aleluia!", declarou André, em um culto no fim de fevereiro, ao anunciar a abertura de novos templos nos EUA.

Se o pai era mais discreto no trato — especialmente quando o assunto era política —, o herdeiro e as irmãs, Ana Paula e Mariana, abraçaram a agenda ultraconservadora com discursos contra direitos LGBTQIA+, a dita "ideologia de gênero" e a legalização do aborto. Para eles, essa é a guerra do trono de Deus.

Não é só no púlpito que André mobiliza fiéis. No Instagram, o pastor-influencer interage frequentemente com seus mais de 5 milhões de seguidores — séquito maior que os de Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, e de Edir Macedo, da Universal.

"Cê não é crente, não", responde "Dedé", como é chamado por amigos, diante de perguntas mundanas como "pastor, é pecado ver filme pornô?", "é pecado ouvir Iron Maiden?" e "crente casado pode ir no motel?".

Até para os padrões não ortodoxos da Lagoinha — uma igreja de tradição batista, frequentada por muitos jovens e que recentemente inaugurou até unidade no metaverso —, o estilo surpreende.

"Nós moramos na melhor cidade do mundo", disse André, no momento de louvor de um culto em Orlando, no qual TAB esteve presente. "Quero ir pra praia — 45 minutos daqui, você tá na praia. Quero ir à Disney — você pega e vai. Quero ir num outlet — na Ross, US$ 15 uma camiseta da Ralph Lauren. É uma bênção."

Às vésperas do tradicional feriado americano de Dia de Ação de Graças, André agradeceu pelas conquistas da Lagoinha de Orlando e citou a construção de um campo de futebol na frente da filial floridense, onde há um "welcome center", livraria e café. "[Para] quem é mineiro, café e pão de queijo não dá pra viver sem", disse ele, como quem faz merchandising.

Cerca de um mês depois, André estaria ajoelhado aos pés do pai no Brasil, tomando posse como presidente da Lagoinha Global, que reúne todas as unidades da igreja fundada na capital mineira em 1957.

Foi Márcio quem pavimentou o boom da Lagoinha, que não é gigantesca, mas sintetiza o que tem acontecido com o movimento evangélico no Brasil.

No comando da igreja desde 1972, o filho de sapateiro que até então pregava "vestido de hippie" em favelas de BH fez o número de fiéis saltar de 300 para 6.000 logo nos primeiros anos.

Sempre quis ser, assim, diferente... No sentido de status, de bens. Eu queria ser rico, a verdade é essa. Pastor Márcio Valadão, em depoimento no documentário "Márcio: é como termina que se conta", lançado pela Lagoinha Global no YouTube

O sucesso da primogênita Ana Paula Valadão com a banda Diante do Trono é considerado um dos maiores "avivamentos" da Lagoinha, que passou a se apresentar em horário nobre na TV Globo e recebeu indicação ao Grammy Latino em 2012.

Ao embarcar no universo musical gospel, a Lagoinha transformou seus cultos em shows e workshops de autoajuda, e viu suas lideranças virarem influenciadores digitais.

A partir daí, a igreja passou a atrair visitantes aos milhares — entre eles, a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) e famosos como o ex-jogador Kaká, o cantor Latino e o casal Silvio Santos e Íris Abravanel.

Os convidados mais ilustres, porém, foram Jair e Michelle Bolsonaro.

A aproximação aconteceu ainda em 2018, intermediada pelo senador Magno Malta (PL) e a então assessora Damares Alves.

De lá para cá, o ex-presidente e sua mulher foram vistos algumas vezes nos palcos das Lagoinhas, tanto em Orlando quanto em BH.

Foi num desses encontros, em um culto dominical da igreja matriz, que Michelle Bolsonaro disse que o Planalto era "consagrado a demônios" antes da chegada de seu marido.

O regimento interno da igreja diz que pastores não podem pedir voto nem no púlpito nem na internet, mas o filho varão do pastor Valadão nunca deu muita bola para isso.

"Não consigo ver um Brasil com amizades socialistas comunistas da América Latina", escreveu na legenda de uma foto de 10 de outubro, junto a Bolsonaro.

Nove dias depois, André gravou um vídeo para seus seguidores dizendo que tinha sido "intimado" por Alexandre de Moraes, então presidente do TSE, a se retratar de afirmações falsas feitas contra o então candidato Lula. O vídeo viralizou, mas a premissa não era verdade: o tribunal não havia mandado nenhuma intimação.

O Instagram chegou a suspender o perfil de André, que só voltou a funcionar em 27 de dezembro.

Em fevereiro, ele voltou a provocar o desafeto político: perguntado se batizaria o presidente Lula, o pastor-influencer disse que sim — desde que pudesse deixá-lo embaixo d'água por 30 segundos para "limpar com força".

A radicalização da Lagoinha sob o comando de André é uma tendência possível, avalia o pastor progressista José Barbosa Jr., mas o líder não está sozinho quando se comporta de maneira menos diplomática que o patriarca.

Ana Paula já deu declarações homofóbicas ("Tá aí a Aids para mostrar que a união sexual entre dois homens causa uma enfermidade que leva à morte [...]. Não é o ideal de Deus") que lhe valeram uma ação ajuizada pelo Ministério Público.

Marido de Mariana, Felippe Valadão, 42, foi denunciado pelo Ministério Público, em 2022, por intolerância contra religiões de matriz africana. Ele lidera a Lagoinha de Niterói (RJ), que fica num terreno gigante no Piratininga, onde os cultos têm cheiro de pipoca — vendida dentro da igreja.

Na livraria da matriz, em Belo Horizonte, as principais prateleiras são ocupadas por autores como Joseph Nicolosi, um dos principais defensores da "cura gay" nos EUA.

Na Super, a TV da Lagoinha, o autointitulado psicólogo cristão Mizael Silva já se referiu à homossexualidade como resultado de "transtorno hormonal" ou abusos na infância (não há respaldo científico nisso).

"A igreja tem que se posicionar, sim", disse André Valadão em um reels do Instagram, citando "guerra ideológica" travada contra "filosofias mundanas".

Às vésperas do primeiro turno da eleição presidencial de 2022, o pastor abriu uma bandeira do Brasil em seu palco-púlpito em Orlando e orou para que o país ficasse livre das "ideologias do inferno".

Instalada em um terreno de R$ 600 mil por mês de aluguel, em Barueri (SP), está a Lagoinha Alpha. A unidade possui o "maior lago artificial de batismos do mundo", construído em um período de dez dias durante o Genesis Experience 3. Para ter acesso ao evento e a 100% da "experiência espetacular de participar da construção", o fiel paulista da Lagoinha precisava desembolsar R$ 20,3 mil.

A Alpha é comandada por André Fernandes, 35, um dos nomes do futuro da Lagoinha e discípulo de André Valadão, com quem passou um ano na Flórida.

No melhor estilo do novo líder, Fernandes comemorou seu aniversário diante de 4.000 fiéis, com direito a fogos de artifício e cheiro de pipoca no ar. Tamanha é a "vibe" de show dos cultos de Fernandes que, muitas vezes, o pastor faz "stage diving", jogando-se do palco para ser segurado pelo público.

A ascensão de André Valadão à proa da Lagoinha foi "saudável", avalia Fernandes. O pai teria tido um "sonho profético" de que era a hora de se afastar, e o filho teria uma "visão" para os novos tempos, citando o livro de Joel 2:28: "Os vossos velhos terão sonhos, os vossos jovens terão visões".

Nos bastidores, contudo, não falta quem discorde dessa visão. Entre os interlocutores ouvidos pelo TAB, há quem profetize o início do fim da Lagoinha com o afastamento de Márcio — antes, o patriarca amenizaria disputas internas.

"A Lagoinha não se resume a André, Ana Paula e Felippe. Não é dinastia", pondera um interlocutor. "Ainda há pastores dedicados a trabalho social e distribuir cesta básica", acrescentou outro.

Com a saída de cena dos Bolsonaro — que não põem os pés na Lagoinha pelo menos desde a derrota nas eleições —, igrejas como a dos Valadão enfrentam outro dilema comum, como aponta o cientista político Vinicius do Valle, 34, diretor do Observatório Evangélico.

"Muitos pastores profetizaram a vitória de Bolsonaro. Isso tem causado constrangimento, inclusive por pressões de fiéis: 'Ué, pastor, você não disse que era uma guerra do bem contra o mal, que o PT era o demônio? Como fica agora?'"

Procurados pelo TAB, André, Ana Paula, Felippe, Mariana e Márcio Valadão não retornaram os pedidos de entrevista.

Topo