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Da favela à Flórida: a história da Lagoinha, a igreja pop do clã Valadão

Juliana Sayuri e Leandro Aguiar

Do TAB, em Orlando (EUA), São Paulo e Belo Horizonte

23/03/2023 04h01

Na manhã de 7 de agosto, Michelle Bolsonaro tomou a palavra no culto dominical da Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte. Deu passos confiantes à frente do palco e, sob aplausos dos fiéis, disse que o Planalto era "consagrado a demônios" antes da chegada de seu marido. "[Mas] o avivamento do Senhor irá se cumprir no nosso Brasil", declarou a então primeira-dama, referindo-se à campanha pela reeleição de Jair Bolsonaro (PL), derrotado na disputa presidencial de 2022.

Não era um culto qualquer. Era, na verdade, a celebração dos 50 anos de ministério de Márcio Valadão, que desde 1972 liderava a igreja. Nem todo mundo gostou da presença do então presidente e da primeira-dama: nos bastidores, dizia-se que os convidados "eclipsaram" o jubileu do pastor — que, quatro meses depois, anunciou repentinamente que se afastaria da liderança da Lagoinha.

A matriz mineira quem assumiu foi Flaviano Marques, considerado seu braço-direito em Belo Horizonte; já a presidência da Lagoinha Global (a convenção que reúne as cerca de 700 Lagoinhas espalhadas pelo mundo) ficou a cargo de seu filho André Valadão, 44, que mora em Orlando, na Flórida (EUA). Segundo interlocutores ouvidos pelo TAB, a transição pode abalar a igreja fundada no bairro belo-horizontino da Lagoinha, em 1957: teme-se perder a tradição batista antiga e mergulhar de vez na agenda ultraconservadora do bolsonarismo.

Entre as décadas de 1940 e 1960, o Brasil viveu um boom de igrejas evangélicas, entre elas as batistas. Foi um "avivamento" (despertar atribuído ao Espírito Santo), com influência da "renovação" proposta por missionários norte-americanos, como Rosalee Mills Appleby (1895-1991) que, instalada em Belo Horizonte, dialogava com o pastor José Rego do Nascimento, fundador da Lagoinha. Era uma igreja pequena num bairro periférico, de imigrantes e operários, voltada para os mais necessitados na favela dos arredores.

Entretanto, desde o início a igreja tinha uma dinâmica própria: tinha tradição batista e, ao mesmo tempo, incorporava pontos pentecostais, como a crença em dons e experiências espirituais — isso levou a um cisma nos anos 60, e a Lagoinha foi excluída do rol de igrejas das convenções batistas de Minas e do Brasil. Nascimento se afastou por motivos de saúde em 1969. Dois outros pastores passaram pela igreja, que estava sem liderança definida, até a chegada de Valadão, em 1972.

Tendências

Na época, alastrou-se uma história, até hoje lembrada nos fóruns evangélicos na internet: dizia-se que uma pessoa em situação de rua sentiu a boca sangrar, pois seus dentes "viraram ouro" na igreja que, dia após dia, passou a atrair mais fiéis. Na década de 1990, eram 6.000.

A Lagoinha conquistou atenções ao incorporar "tendências" doutrinárias, como a "unção de Toronto" (em que fiéis ficam rindo descontroladamente durante orações), mas o principal chamariz foi o sucesso da banda gospel Diante do Trono, liderada pela filha de Márcio, Ana Paula Valadão, 46, a partir do fim dos anos 90. Os cultos se tornaram shows, modelo replicado inclusive nas unidades abertas no exterior — a mais importante delas é a de Orlando. Também se nota o tom pop nos cultos especiais voltados para adolescentes (batizado de "Rocket") e jovens ("Legacy").

A estratégia foi bem-sucedida. Nos cultos de sábado à noite em BH, há jovens aos montes: moças de dreads e black power, skatistas, punks e casais de namorados conversam animados à entrada do "Tabernáculo", como é conhecido o salão principal da Lagoinha, num clima que lembra fila de balada.

A Lagoinha de BH também tem há oito anos o Movimento Cores, grupo que diz querer "levar Jesus aos LGBTQIA+". "Infelizmente, a igreja nem sempre é o lugar mais seguro para a saúde mental da gente. Mas deveria ser, e para todos: brancos, negros, LGBTs, héteros", declarou Priscila Coelho, que coordena o Cores, num encontro em outubro de 2022.

Procurada pelo TAB, Priscila preferiu não se manifestar sobre discursos homofóbicos de pastores da Lagoinha. Na livraria da matriz, as principais prateleiras são ocupadas por autores como Joseph Nicolosi, um dos principais defensores da "cura gay" nos EUA, Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, e Nikolas Ferreira (PL). Mizael Silva, citado como "psicólogo cristão", já se referiu à homossexualidade como resultado de "transtorno hormonal" ou abusos na infância (não há respaldo científico nisso) na Super, a TV da Lagoinha, lançada em julho de 2000, no boom da igreja.

Cada vez maior, a Lagoinha passou a realizar também convenções com convidados especiais — entre eles, personalidades da direita cristã. Foi num congresso internacional na Lagoinha de Belo Horizonte, em 2011, que Marcelo Crivella (PRB à época), bispo da Universal e sobrinho de Edir Macedo, afirmou: "Os evangélicos ainda vão eleger um presidente da República, que vai trabalhar por nós e por nossas igrejas, e nós vamos cumprir a missão que há 2.000 anos é o maior desafio da igreja, que é levar o Evangelho a todas as nações da Terra".

O pastor André Valadão e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), em Orlando (EUA) - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
O pastor André Valadão e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), em Orlando (EUA)
Imagem: Reprodução/Facebook

Bolsonaro foi eleito, em 2018, galgando endosso evangélico, entre outros segmentos. O bolsonarismo soube se misturar a certo imaginário cristão de que o mundo está dominado por forças malignas, avalia o estudioso evangélico Rodolfo Souza, 45. "Muitos grupos religiosos sempre tiveram tendência a se perceber como minoria perseguida. Bolsonaro já era desejado por essas lideranças."

Outros autores consideram a "guinada bolsonarista" um movimento equivocado na Lagoinha, igreja que, ao longo do tempo, aderiu a práticas pentecostais (entre elas, o "avivamento" provocado pelo transe e o "dom" de falar línguas estranhas, comum nas Assembleias de Deus) e neopentecostais (como pregações na linha da teologia da prosperidade, como acontece na Igreja Universal do Reino de Deus) — e hoje está sendo assimilada como uma construção tipicamente brasileira "bolsocristã".

Ato em Brasília com André e Márcio Valadão, às vésperas do segundo turno das eleições de 2022 - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Ato em Brasília com André Valadão e Márcio Valadão, às vésperas do 2º turno de 2022
Imagem: Reprodução/Instagram

No Brasil há igrejas evangélicas muito diferentes, embora estejam sob o "guarda-chuva" do pentecostalismo, diz o cientista político Vinicius do Valle, 34, diretor do Observatório Evangélico. Segundo os "tipos ideais" utilizados pelo acadêmico, a Assembleia de Deus é um exemplo de pentecostal clássico, voltado para a salvação das almas, com discurso mais sisudo — só no fim do século 20 a igreja flexibilizou antigos costumes rígidos (talvez o mais emblemático seja a restrição de cortar o cabelo).

Quadrangular e Deus é Amor seriam da segunda onda do pentecostalismo, marcada pela influência norte-americana, com maior presença na mídia (antigamente, o rádio) e foco nos dons de cura. Já a Universal simboliza o neopentecostalismo, com ênfase na busca de prosperidade e um discurso forte de "guerra santa". "É explícito e radical: o pastor diz que a sua grama tem de ser mais verde que a do vizinho e, se você não está conseguindo, é porque possui demônios à sua volta."

Na Lagoinha, tudo isso é mais sutil, talvez também pela diferença de público-alvo. Na Flórida, por exemplo, André às vezes fala línguas estranhas no louvor, e faz um discurso de prosperidade associado às benesses de viver "na América". "A Lagoinha faz culto espetáculo, descolado, de olho na juventude e num perfil mais classe média", diz Valle. "Já a Assembleia de Deus está presente no interior do interior, na periferia da periferia: não é 'templo-shopping', é 'templo-casa' para as classes mais baixas. A Universal já é 'pronto-socorro da fé', diz que vai expulsar demônios, e tenta se aproximar da classe média."

Apesar das diferenças, muitas dessas igrejas estão enfrentando um dilema comum: com a vitória de Lula (PT), indaga Valle, será que vão voltar atrás na sua "conversão" ao bolsonarismo? "Muitos pastores profetizaram a vitória de Bolsonaro. Isso tem causado constrangimento, inclusive por pressões de fiéis: 'Ué, pastor, você não disse que era uma guerra do bem contra o mal, que o PT era o demônio? Como fica agora?'"

*Procurados pelo TAB, André, Ana Paula e Márcio Valadão não retornaram os pedidos de entrevista.