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Historiadora aponta robôs e inteligência artificial entre divindades gregas

Kaluan Bernardo

Do TAB, em São Paulo

12/02/2019 04h00

Seres humanos imaginavam robôs há dois mil anos. Alguns deles eram criados por deuses, enquanto outros eram destruídos por espécies de hackers. O contexto era a Antiguidade Clássica e sua adoração e questionamento aos mitos gregos. O homem já havia sido apresentado à inteligência artificial e lidava com máquinas imortais, isso bem antes de alguém pensar na expressão ficção científica ou de chegarmos a criar, de fato, robôs. Esses sonhos de prototecnologia, claro, já nos alertavam sobre os perigos da ilusão digital.

Todo esse cenário de uma nova narrativa mitológica é apontado por Adrienne Mayor, historiadora da ciência na Universidade de Stanford e autora do livro "Gods and Robots: Myths, Machines and Ancient Dreams of Technology", lançado em 2018 pela Princeton University Press e sem tradução em português. O TAB conversou com ela.

Para Mayor, os deuses não criavam apenas vida humana, mas também artificial. Eles o faziam usando tecnologia, ferramentas e métodos. Gregos antigos, por exemplo, foram pioneiros na ficção científica ao imaginarem Talos, um robô de bronze que defendia a ilha de Creta, e Pandora, uma mulher artificial que trazia em sua caixa o caos e os males do mundo.

Por trás de tudo isso, já havia medo e um alerta sobre o que a tecnologia poderia reservar ao futuro da humanidade. Deveríamos ter cuidado com os ganhos em curto prazo e nos atentar para uma relação benigna e de longo prazo com a tecnologia, diz Mayor. Confira trechos da conversa com a pesquisadora:

TAB: Como você começou sua pesquisa e por quê?

Adrianne Mayor: Sou historiadora de Ciência Antiga no Departamento de História e Filosofia da Ciência em Stanford. Pesquiso realidades históricas e científicas para descobrir insights dentro dos mitos, lendas, literatura antiga e arte. Procuro evidências dos primeiros impulsos científicos na antiguidade e nas culturas pré-modernas.

Desde 2006, vivo e trabalho no Vale do Silício. Estou cercada por inovações avançadas em tecnologia, inteligência artificial e robótica. Estou muito a par dos desejos modernos de criar vida artificial e aumentar os poderes humanos. Como historiadora da ciência, é natural tentar ver quão profundas são essas raízes, quão antigos são esses desejos, por quanto tempo as pessoas estão imaginando isso.

E acontece que as ideias de criar vidas artificiais e robôs são muito antigas, indo até os tempos de Homero (século 8 ou 9 a.C.). Como no Vale do Silício estamos sempre falando do futuro, eu acho que é muito interessante essa conexão entre o passado e o futuro da tecnologia.

Sou uma espécie de viajante do tempo pedindo para meus leitores viajarem comigo por mais de dois milênios para estudar as primeiras ficções científicas da história, criadas por uma sociedade pré-industrial. Mas acredito que esses mitos podem ser vistos como antigos sonhos de tecnologia. Eles são muito sofisticados e relevantes ainda hoje porque nos ajudam a perceber como as conexões entre imaginação e ciência não dependem do tempo.

O que essas experiências podem ensinar aos pesquisadores modernos sobre inteligência artificial? O que tais mitos dizem sobre nossos desejos em nos tornarmos deuses e criarmos vida?

Uma das coisas interessantes que descobri estudando mitos antigos foram figuras como Talos, o grande robô de bronze que protegia a ilha de Creta, como aparece no épico "Jasão e os Argonautas". Também há outras, como Pandora, uma autômata criada pelo deus da inovação e tecnologia, Hefesto.

Inicialmente, esses dispositivos autômatos eram feitos e imaginados por deuses no Monte Olimpo, longe do reino humano. Portanto, eram benignos, charmosos e interessantes - até mesmo divertidos e inofensivos. Acontece que, quando Hefesto e Zeus, o rei dos deuses, começaram a mandar esses robôs para o plano mortal para interagir com os humanos, passamos a ter muito caos e destruição. Talos era um robô assassino e Pandora era uma mulher artificial que trouxe devastação para os seres humanos. Mesmo assim, foram criados no paraíso.

Portanto, me parece que os mitos estão nos dizendo que precisamos pensar muito profundamente sobre os problemas éticos e práticos da inteligência artificial interagindo com humanos no mundo real.

Como esses robôs eram maus, se eram criados por deuses?

Acho que há algo de interessante quando você olha para Talos e Pandora: ambos foram encomendados por um tirano, Zeus. Ele é pintado na mitologia grega como um tirano vingativo e duro. Acho que isso também traz uma mensagem. Afinal, na Grécia antiga eram os tiranos e autocratas que encomendavam máquinas para torturar as pessoas. Acredito que uma boa lição para nós hoje é que a tecnologia pode servir a tiranos e ditadores tanto na mitologia quanto na vida real.

Desde o princípio esses robôs são criados à imagem e semelhança do homem. Há algum paralelo sobre como as pessoas enxergavam as imagens dos robôs antigamente e hoje?

Isso é o que discutimos atualmente dentro do conceito de "vale da estranheza" - o sentimento de mal-estar e apreensão que acontece quando as pessoas encontram réplicas humanas ou autômatos que parecem muito reais. Quanto mais o robô se parece e se comporta como humano, mais as pessoas sentem repulsa.

Esse é um conceito que foi pensado pela primeira vez pelo engenheiro japonês Masahiro Mori, nos anos 1970. Em um primeiro momento, as pessoas gostam dos robôs, mas conforme eles vão se tornando mais reais, chegando a uma linha tênue na qual você já não sabe mais dizer se é um robô ou um humano, os sentimentos positivos se esvaem. Esse é o "vale da estranheza".

O que eu descobri é que esse sentimento de espanto, pavor e medo já era descrito por Homero em "A Ilíada" e em "A Odisseia", além de dramaturgos gregos em Atenas no século 4 a.C., quando pessoas da Antiguidade passaram a ver incríveis réplicas de vida feitas por escultores reais.

Artistas e escultores criaram formas tecnológicas de pintar figuras extremamente reais, que podiam enganar as pessoas. Elas pareciam reais, algumas vezes tinham tamanhos verídicos e outras vezes eram feitas à partir de modelos de pessoas reais. Então também causava pavor. O "vale da estranheza" já existia na Antiguidade.

Como você distinguia o que era apenas obra divina do que era algo tecnológico nos mitos?

O principal é o conceito de que eles foram 'feitos, não nasceram'. Talos, Pandora e outras entidades com vida foram construídos, não nasceram biologicamente. Hefesto, seu criador, era o deus da tecnologia e da inovação. Ele era um ferreiro e os criou com ferramentas, habilidade e método. É algo que chamo de "biotechne" - a vida pelo ofício.

Essas entidades foram construídas, manufaturadas ou fabricadas. Eles não são apenas matéria inerte que ganha vida por um comando divino, como Adão e Eva ou Pigmaleão e sua estátua de marfim (segundo suas respectivas mitologias, esses vieram à vida por mágica ou apenas ordens divinas, mas não foram criados artesanalmente ou com tecnologia, feitos como um produto).

Há um capítulo que você também fala muito sobre a busca pela vida eterna. Quais são os paralelos entre esses desejos de imortalidade por meio da inteligência artificial e os mitos antigos?

O desejo da imortalidade é muito forte e antigo. Nós tivemos muitos mitos sobre pessoas que tentaram ser imortais e descobriram de uma variedade de formas os problemas de não morrer. Um deles é que tiranos poderiam viver para sempre. E o que aconteceria com a memória, o amor e a coragem?

Os deuses são imortais, mas ninguém chama um deus de bravo ou corajoso, já que ele é imortal. Não há riscos. Eles não vivem situações de vida ou morte e, portanto, não agem de forma heroica ou se sacrificando por outros. Eles nunca podem lutar contra a vida e a morte. Por isso, mesmo que os antigos também desejassem a imortalidade, eles percebiam que há um problema moral e prático.

Quais são as preocupações éticas que esses mitos antigos nos trazem na relação entre deuses, humanos e tecnologia?

Acredito que uma das lições mais interessantes vem do mito de Pandora. Como disse, Zeus pediu para que Hefesto criasse uma mulher artificial, como punição aos seres humanos porque eles descobriram a tecnologia do fogo. Zeus ficou com inveja da tecnologia divina do fogo. Ele achava que os humanos não deveriam tê-la.

Quem deu esse presente aos humanos foi Prometeu, que tinha um irmão, Epimeteu. Quando Pandora veio para a Terra, foi oferecida para ser noiva de Epimeteu, que estava encantado por sua beleza. Mesmo sendo uma mulher artificial, ela era mais bela do que qualquer mulher viva. Deslumbrado, Epimeteu se agarrou aos ganhos de curto prazo. Prometeu tentou avisar seu irmão para não aceitar Pandora [o que foi em vão: mais tarde, Pandora abriria uma caixa que traria o caos para a Terra].

Esses nomes, em grego antigo, significam muito. Prometeu significa presságio, previsão, olhar adiante. Epimeteu, seu irmão, significa olhar em retrospecto, incapacidade de olhar adiante, miopia. Então temos Prometeu, que olha para frente e antecipa problemas, avisando para não aceitar algo olhando apenas pelos ganhos de curto prazo apenas porque é atrativo; e Epimeteu, que não consegue olhar adiante para além do ganho rápido e é iludido pela beleza de uma tecnologia. Acredito que há uma lição aí.