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Lobby ou ética? Como a tecnologia pode ajudar o homem a parar de matar

Jacqueline Lafloufa

Colaboração para o TAB, em Austin (EUA)

10/03/2019 04h00

Será que a tecnologia poderia ajudar a humanidade a parar de matar? O empresário americano Rick Smith afirma que sim. Ele defende que nossa sociedade, esteja ou não o Estado envolvido, ainda só mata e usa armas de fogo, ao menos em larga escala, porque não nos dedicamos a desenvolver armamentos tecnologicamente adequados para neutralizar as ameaças ao bem-estar coletivo.

Smith é fundador e CEO da Axon , empresa criadora do TASER, dispositivo que imobiliza pessoas por meio de choques elétricos. Em maio, será lançado nos Estados Unidos seu livro "The End of Killing: How Our Newest Technologies Can Solve Humanity's Oldest Problem" ("O Fim da Matança: Como Nossas Novas Tecnologias Podem Resolver o Problema Mais Antigo na Humanidade", em tradução livre para o português). Ele falou sobre esse trabalho em palestra na última sexta-feira no South by Southwest, um das principais conferências do mundo sobre inovação e cultura e que ocorre anualmente em Austin (EUA).

O Estado e a força de sua presença através dos tempos servem de pontos de partida para a análise de Smith. Ele diz que a morte como solução de problemas de convivência social é um instrumento comum em sociedades nas quais não havia, ou não há, um Estado constituído - ele cita exemplos nos séculos 19 e 20 tanto nas Américas (comunidades na Califórnia e na Amazônia), Ásia (Filipinas) e Oceania (Austrália e Fiji), entre outros. "A morte, muitas vezes por meio de torturas públicas, fazia parte de um espetáculo", afirma. Ele lembra que alguns desses lugares chegaram a importar criminosos para garantir uma exibição pública, praticamente um show, de uma sentença de morte.

Mas e na maioria as sociedades atuais, nas quais o Estado, em tese, detém o monopólio da segurança, qual seria a explicação para o uso de força letal contra o que se convencionou chamar de ameaça, seja lá qual for o nível da mesma? "O que se alega é que 'não havia outra escolha' a não ser o uso de armas letais para o controle de uma ameaça", diz Smith.

Claro que Smith, como criador do TASER, tem interesses ao defender o uso de armamento não letal, mas vale o debate sobre as armas de fogo estarem ultrapassadas como recurso para neutralizar ameaças. "Os TASERs foram razoavelmente bem-sucedidos em se apresentarem como uma alternativa não letal de neutralizar um suspeito", defendeu.

Pistola taser - Reprodução - Reprodução
Disparo com a arma não letal Taser
Imagem: Reprodução

Os desafios éticos de não matar

Na palestra, Smith disseca uma curiosa linha do tempo:

- A princípio, os armamentos evoluíram no sentido de aumentar a escala de alcance, com mortalidades exponenciais, representadas pelas bombas de Hiroshima (1945) e Tzar (1961);

- Na sequência, as sociedades buscaram armas que saíssem da letalidade massiva em direção a uma maior precisão, com o uso de mísseis e drones, capazes de reconhecer o alvo e atacá-los com um foco específico;

- A partir de 2019, Smith aposta na tendência do uso de armas de controle de ameaças que sejam "reversíveis", ou seja, que tenham efeitos não definitivos como a morte (!).

Para viabilizar essa visão, ele apresentou alguns exemplos cuja tecnologia já existe, mas também fala de saídas que ainda não passam de ficção:

- Para dispersar multidões, poderiam ser utilizados veículos que direcionam ondas de calor. Plenamente possível, segundo ele;

- Num cenário similar, com o uso de drones de monitoramento, dardos tranquilizantes neutralizariam de forma precisa um indivíduo causador de ameaça, removendo-o da cena. Para Smith, basta querer fazer;

- Em um ambiente de alta tensão, no lugar de robôs agressivos ou até mesmo assassinos, como muitos já retratados na ficção científica, entrariam em cena inteligências artificiais capazes de atuar como mediadores de questões complexas. Essa possibilidade, admite, fica para o futuro.

O discurso de Smith pareceu bastante idealista até mesmo para a audiência em geral progressista do SXSW. Afinal, mesmo que Austin seja um mundo à parte no Texas, o estado recebeu em 2018 o maior encontro anual da NRA (sigla em inglês para Associação Nacional do Rifle), entidade conhecida pelo seu lobby pró-armas nos EUA.

O empreendedor não expôs uma estratégia sobre como enfrentar a resistência da indústria armamentista e nem soube explicar o que fazer com os indivíduos neutralizados - quem queria saber para onde eles seriam levados ficou sem resposta. Também ficou no ar possíveis ameaças à privacidade em um sistema tecnológico alternativo como o proposto por Smith, no qual poderia haver (mais) vigilância onipresente do governo e até mesmo da iniciativa privada, dependendo do modelo a ser adotado. "Temos que pensar com profundidade sobre como os policiais poderiam ter acesso aos dados [de monitoramento] sem que isso causasse um risco ético", respondeu.

O debate esquentou ainda mais quando uma espectadora, que se apresentou como afro-americana, perguntou se a questão real no combate ao excesso de mortes por arma de fogo se devia mesmo à "tecnologia" ultrapassada ou se teria mais a ver com o comportamento dos policiais ao lidar com os suspeitos, principalmente quando eles são negros.

Smith foi pego de surpresa, se enrolou na resposta e tentou sair pela tangente. Ele destacou que há uma discussão muito importante a ser travada sobre a ética de matar e de como evitar que a neutralização de ameaças "sem uso de força letal" resulte em situações como tortura ou maus tratos. "Seria importante que existisse uma fiscalização que pudesse garantir que não haveria mau uso ou abuso de armas não letais", afirmou, pouco antes de providencialmente ser interrompido pela produção ao esgotar seu tempo de palco.