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Da doença rara à cannabis medicinal: 'Não queria plantar, só queria viver'

O ex-gerente de TI e projetos Augusto Saraiva, que planta maconha em sua casa para uso medicinal - Tiago Coelho/UOL
O ex-gerente de TI e projetos Augusto Saraiva, que planta maconha em sua casa para uso medicinal
Imagem: Tiago Coelho/UOL

Hygino Vasconcellos

Colaboração para o TAB, de Porto Alegre

08/06/2021 04h01Atualizada em 08/06/2021 16h09

A porta do apartamento no segundo andar se abre e a lufada de ar carrega um cheiro incomum. Basta caminhar alguns passos para dar de cara com três pés de maconha crescendo em vasos sob lâmpadas de LED — uma quarta muda está em processo de secagem.

A estufa ocupa o que antes era a sala de estar do ex-gerente de TI e projetos Augusto Saraiva, 43, na região central de Porto Alegre. Em novembro de 2020, ele obteve autorização judicial para plantar maconha em casa — virada mais recente e extraordinária na vida de um homem que, no meio da adolescência, descobriu-se com uma doença incurável.

A estufa separa duas áreas: na parte mais estreita é onde acontece a secagem. A mais ampla é usada para o cultivo; ali, as plantas crescem sob quatro placas de LED. As paredes e uma divisória são feitas de madeira revestida com uma película de poliéster, o que permite o isolamento térmico. O controle da temperatura é necessário para o desenvolvimento da planta, que para de se desenvolver aos 20ºC, explica Saraiva.

A construção da estufa custou R$ 22 mil, investimento alto para um homem de renda limitada. O mais angustiante para Saraiva é que, passados oito meses desde a decisão judicial, a lavoura ainda não dá conta do recado. Das 12 sementes adquiridas, só quatro vingaram. Além disso, o tempo da planta é longo: depois de germinar, cada muda leva seis meses para crescer.

A decisão judicial autoriza o cultivo de 20 pés de maconha durante um período de um ano; depois desse tempo, é preciso pedir nova autorização. Saraiva já está reunindo toda a documentação para pedir renovação do direito, num compasso cada vez mais apertado, lutando contra as dores e a perda de movimentos. "Eu não queria plantar maconha, queria viver", afirma.

Pomada e fumo

Com a cannabis plantada, Saraiva fabrica uma pomada de tom verde-vivo, que esfrega nos dedos das mãos, nas pernas e nas costas. E fuma a maconha por meio de um vaporizador, pois não gosta da versão em cigarro. As duas formas, segundo ele, auxiliam no alívio das dores provocadas pela doença genética que carrega.

A ideia principal, contudo, era usar as folhas para a extração do óleo medicinal, mas como poucas plantas germinaram, não dá para produzir em quantidade suficiente.

Saraiva acaba tendo de comprar óleo de cannabis, e aí começa o malabarismo financeiro para seguir com o tratamento completo, que custa R$ 7 mil por mês. "Estou gastando o dobro do que eu ganho por mês, o que é insustentável. Infelizmente o que vai me matar não é a doença, mas a falta de recursos para resistir a ela", conta Saraiva, que também recebe doações do óleo da ONG Sou Cannabis, a qual é associado.

Ele andou fracionando o extrato que comprou para "prolongar" o tratamento, usando quantidade inferior à recomendada para o alívio dos sintomas. "Suporto muitos dos sintomas porque não tenho recursos financeiros para pagar o tratamento completo. Por isso que fui atrás da justiça, para conseguir o direito de plantar e extrair e tentar chegar numa equação que me permitisse financeiramente equilibrar o jogo, porque estou vivendo além das minhas posses, há mais de um ano."

Saraiva poderia ter pedido acesso ao óleo da planta em vez de solicitar autorização para o plantio de cannabis, mas havia o risco de não receber o produto pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Hoje aposentado, ele utiliza um combinado de dois compostos da cannabis (THC e CBD) de 18% — a concentração ideal levou nove meses para ser desenvolvida, após inúmeros testes. Nas farmácias, o mais comum é de 2%, sendo possível encontrar de até 6%.

A estufa improvisada na casa de Augusto Saraiva, em Porto Alegre - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
A estufa improvisada na casa de Augusto Saraiva
Imagem: Tiago Coelho/UOL

Ampulheta de vida

Saraiva era um adolescente de 1,73 metro de altura e pinta de atleta. Em 1991, aos 13 anos, frequentava o clube Sogipa, na capital gaúcha, quando sentiu uma fisgada dolorosa na panturrilha enquanto nadava. A dor era incompatível com o exercício que fazia.

Dores agudas são comuns, coisa de quem estava crescendo e esticando, disse a médica pediatra que o atendia à época.

Mas o episódio na piscina não foi o sinal solitário da doença. Antes disso, numa noite, Saraiva acordou de madrugada com o corpo completamente paralisado de dor. "A primeira coisa que faz é chamar a mãe, né? No momento em que eu gritei 'mãe', os músculos da mandíbula também travaram. Eu só conseguia mexer os olhos, não conseguia nem falar. Esse foi o primeiro episódio que mostrou que algo estava errado."

As preocupações da família aumentaram quando o ligamento da panturrilha dolorida se rompeu, durante um treino de velocidade na piscina do clube, ainda em 1991. O menino, que passou a reclamar constantemente de fadiga e cansaço, foi levado às pressas para um hospital de Porto Alegre. Saiu de lá três meses depois com uma "hipótese de diagnóstico" para outra doença, também degenerativa, com expectativa de 12 meses de vida.

A família acabou indo parar no Hospital de Clínicas de Curitiba, no Paraná, após descobrirem que a unidade era a única na época a fazer biópsia muscular, o que ajudaria a obter um diagnóstico mais preciso. Também foram atraídos pela fama do médico Lineu Werneck, especialista em doenças neuromusculares.

O procedimento indicou a deficiência da enzima carnitina-palmitoil transferase do tipo II. Sua carência provoca distúrbios de oxidação e pode levar a necroses, problemas hepáticos e falência de órgãos. Ainda hoje, pouco mais de 300 casos foram documentados no mundo.

A confirmação do diagnóstico só veio depois que uma amostra de sangue fora encaminhada para a Holanda, onde foi feito o sequenciamento genético.

Alguns davam a ele uma perspectiva otimista de mais de dez anos de vida; outros estimavam a sobrevida em cinco anos. Não havia remédio para a doença. Saraiva se sentia abandonado pela medicina, por ouvir que nada poderia ser feito.

O ex-gerente de TI e projetos Augusto Saraiva e seu cão - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
Imagem: Tiago Coelho/UOL

Próximos passos, quase parando

Depois do diagnóstico, Augusto Saraiva esperava lidar com a doença como alguém que reclama de dor de cabeça e toma uma aspirina para melhorar, mas não havia um caminho fácil, nem cura, nem tratamento. Inconformado, aprendeu inglês para escrever cartas a pesquisadores da área e estudar a doença por conta própria. Alguns o respondiam, mandavam artigos científicos e, aos poucos, ele passou a entender contra quem estava lutando.

A doença virou uma companheira indesejável ao longo da juventude. Já adulto, Saraiva trabalhava de dia e estudava administração com foco em tecnologia da informação à noite quando morou em São Paulo, entre 2007 a 2011. Na época, a enfermidade era escondida de outras pessoas — um dos motivos era o risco de não conseguir emprego. Mas a rotina puxada começou a cobrar um preço, com piora nos sintomas e dor persistente no corpo. Ele decidiu voltar para Porto Alegre em 2011 para ficar próximo da filha, hoje com 15 anos, e levar uma vida mais tranquila. Mas passados três anos no novo emprego, os tremores involuntários não conseguiam mais ser escondidos e foram interpretados na empresa como consequência do consumo de álcool e drogas.

Sem alternativa, decidiu explicar para o chefe que vivia com uma doença rara. Em menos de uma semana, foi demitido. Em vez de seguir na profissão, decidiu trocar de área e realizar o sonho de virar chef de cozinha. "Sabia que meus dias estavam contados."

Mas a nova profissão durou pouco. O sinal para parar veio em 2018. Saraiva estava treinando novos cozinheiros em um restaurante prestes a inaugurar em Camaquã (RS) quando, ensinando uma técnica de corte, não conseguiu segurar a faca. O afastamento durou alguns meses e, em maio de 2019, saiu a decisão da aposentadoria por invalidez definitiva.

O ex-gerente de TI e projetos Augusto Saraiva, que planta maconha em casa para uso medicinal - Tiago Coelho/UOL - Tiago Coelho/UOL
Imagem: Tiago Coelho/UOL

Por que insistir?

Antes de aderir ao tratamento com cannabis, Saraiva precisava tomar 27 remédios e duas ampolas de morfina por dia para aguentar as fortes dores musculares, mas o coquetel parou de fazer efeito em 2018. Na época, já estava em estado semivegetativo e dependia da namorada para o mais simples afazer doméstico. Levantar um garfo era um martírio, porque a doença provoca movimentos involuntários nos membros e a perda da articulação de pinça dos dedos.

Os médicos chegaram a recomendar o coma induzido em uma UTI, devido ao risco de falência dos órgãos. "Não aceitei essa alternativa e busquei a maconha. Já tinha estudado muito sobre ela, e percebido que nenhum preconceito sobrevive ao conhecimento. Meu preconceito foi quebrado muito rapidamente."

Saraiva sabia dos efeitos terapêuticos da maconha desde 2007, quando um dos seus médicos voltou de um congresso na Califórnia (EUA) empolgado com os resultados de experimentos com a cannabis por lá. Mas, à época, o preconceito falou mais alto. "Lembro muito bem da minha resposta: 'olha, doutor, era só o que me faltava, aleijado e maconheiro?' Estava bem revoltado."

Só em 2015 ele resolveu estudar mais a cannabis e, anos depois, dar uma chance a ela. Primeiro, seguiu recomendação médica de fumar "qualquer maconha". Na primeira experiência passou mal. Foi parar no hospital, achando que estava infartando. "Liguei para o médico e ele disse que eu tinha fumado pouco. Fiquei muito desconfiado, mas eu realmente não tinha alternativa", conta Saraiva — àquela altura, ele já não conseguia abrir as mãos.

Passados três dias de uso contínuo da maconha, Saraiva acordou no meio da noite para ir ao banheiro. Foi de bengala e retornou sem ela. Foi aí que notou o ganho. Ato contínuo, procurou o caminho legal para importar o óleo à base de cannabis via Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e chegou a visitar o Uruguai para comprar o produto.

De quebra, teve ganhos na qualidade de vida com o uso do óleo. Hoje, Saraiva anda mais, o movimento de pinça dos dedos foi retomado e a dor pelo corpo diminuiu. Os movimentos involuntários ainda aparecem, mas estão mais controlados.

O problema metabólico o faz ter de calcular muito bem qualquer atividade. Para a primeira entrevista ao TAB, feita por videochamada, Saraiva ficou quatro horas sem se movimentar para poupar energia. A conversa durou mais de uma hora e, nos minutos finais, seu corpo balançava de maneira involuntária, sinal do incômodo muscular por ficar tanto tempo sentado (ele passa quase todo o tempo deitado).

No encontro com a reportagem, sentava-se e depois levantava, mudando de posição e às vezes preferia conversar deitado na cama. Marrom, a cadelinha de estimação, o seguia sempre — um alívio emocional para a dor, agora aplacada, pelo menos em parte, pela erva que tanto evitou.