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'Ovelhas negras': o amor e companheirismo dos caça-fantasmas brasileiros

Rosa Maria Jaques e João Tocchetto de Oliveira são os caça-fantasmas brasileiros - Ricardo Matsukawa/UOL
Rosa Maria Jaques e João Tocchetto de Oliveira são os caça-fantasmas brasileiros
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Marie Declercq

Do TAB, em Amparo (SP)

15/08/2021 04h00

Na escuridão, os faróis do carro iluminam as curvas da rodovia MG 167. Próxima a uma placa, uma mulher de branco estende o braço e pede carona. Dois jornalistas voltavam de uma pauta quando filmaram a cena. Não é possível enxergar os traços do rosto da mulher. Não muitos dias depois, o encontro sombrio com a caroneira misteriosa virou reportagem no "Balanço Geral" na filial da Record em Minas Gerais. "Mistério na MG 167: Mulher ou Fantasma?", indagou o programa diário.

Depois de analisar as filmagens, o casal formado pela autodenominada vidente telepata Rosa Maria Jaques, 72, e pelo jornalista João Tocchetto de Oliveira, 61, preparou os equipamentos e partiu de carro saindo da cidade de Amparo, no interior de São Paulo, e dirigiu até o trecho na rodovia, entre as cidades de Varginha e Três Corações (MG), para tentar entrar em contato com esse suposto fantasma captado pelos jornalistas mineiros.

Na câmera de visão noturna, vemos Rosa Maria de colete verde-oliva equipado por microfones, aparelhos e um logotipo autoexplicativo de um fantasma abaixo de um símbolo de proibido. Rosa avisa já estar sentido algo de diferente: a temperatura está baixa, os sensores de campos eletromagnéticos apitaram e uma "energia" paira no ar.

O casal passa horas analisando os equipamentos. O espírito entra em contato, segundo a vidente, avisando que estão em perigo. É quase uma conversa unilateral. Às vezes, ansioso, o marido faz perguntas atrás da câmera. A vidente pede calma. "Vamos dar um tempo pra ela", pede, sentindo arrepios.

Em determinado momento, a vidente anuncia que o espírito é de uma mulher que morreu em um acidente de carro e quer alertar o perigo de acidentes. "Não te preocupe, vamos colocar no canal para avisar. Não é um fantasma querendo pegar carona, é um fantasma querendo alertar."

Rosa Maria se despede da mulher caroneira do além. Mais uma missão cumprida para os caça-fantasmas brasileiros. No vídeo, fora a filmagem anterior da "fantasma", nenhum aparição fora do comum deu às caras. O clima soturno ficou por conta da visão noturna, que torna tudo já naturalmente assustador.

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O casal afirma que é a única dupla no país que atua oficialmente como caça-fantasmas
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Fantasmas no Skype

O encontro com o espírito na rodovia MG 167 é só um dentre os milhares de vídeos no canal oficial dos caça-fantasmas no YouTube. Quase todas as investigações do casal são extensamente documentadas, editadas e narradas por João e exibidas para seus mais de 300 mil inscritos.

Os caça-fantasmas enfrentam o sobrenatural há mais de 25 anos no Brasil. Juntos há três décadas desde que se conheceram em Porto Alegre (RS), Rosa Maria e João já se embrenharam em expedições em todo tipo de local minimamente macabro: cemitérios, hospitais, hospícios desativados, prisões, edifícios, casas e até academias mal-assombradas. As aventuras já renderam seis livros sobre o assunto. Mais um está a caminho.

Eles também prestam serviços particulares, no mesmo estilo Hollywood: se alguém entra em contato pedindo ajuda, o casal veste o colete, entra na viatura adesivada com o logotipo temático e correm para investigar que tipo de fenômeno paranormal que está assolando determinada família brasileira.

No entanto, as aventuras estão suspensas. A vidente telepata precisou fazer uma cirurgia às pressas no joelho direito, lesionado no curso de anos enfrentando casos sobrenaturais, e está se recuperando para voltar a atender em campo.

Na sala de casa em um apartamento arejado de frente a uma vista bucólica na cidade de Amparo, a 133 km da capital, não é preciso ser sensitivo como Rosa Maria para perceber que a vidente não aguenta mais ficar parada. Para se locomover, ela depende de um andador, mas avisa diversas vezes que é temporário. "Eu me meto em qualquer lugar", frisa.

Ao lado está João, zelando pela esposa o tempo inteiro. Sempre sorrindo, ele alisa a barba grisalha, mostrando os dedos adornados por anéis de caveira. Depois da recuperação de Rosa Maria, os caça-fantasmas pretendem retornar ao nordeste do Brasil, onde estavam fazendo uma expedição em busca de eventos paranormais. Enquanto resolvem pendências do mundo dos vivos, atendem consultas pelo Skype.

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Todos os vídeos são editados por João no escritório situado dentro do apartamento que dividem na cidade de Amparo (SP)
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

'Pessoas querem respostas'

Todos os dias, João e Rosa Maria recebem e-mails de pessoas em busca de ajuda. A vidente conta que às vezes já sabe que um problema está a caminho antes mesmo que a mensagem apite na caixa de entrada. São quase sempre as mesmas queixas: problemas na vida e situações inexplicáveis em casa, como lâmpadas novas queimadas de repente e coisas se quebrando sozinhas. Na maior parte das vezes, todavia, as contrariedades não têm nada de sobrenaturais.

"Muitas vezes o problema é da personalidade da pessoa, insatisfações, questões familiares", conta Rosa Maria. "Mesmo assim nós orientamos. Seja dizer para a pessoa procurar ajuda médica, um psiquiatra, ou encarar essas questões. Porque agora é tudo espiritual, sabe?"

Em uma das consultas, a vidente relembra de ter lidado com o suposto caso de possessão de um jovem. Ao se aprofundar na história da família, percebeu que não havia demônio algum envolvido, apenas um filho cuja orientação sexual não era aceita pela mãe evangélica. Essas consultas viraram até um quadro no canal, batizado de "Família Pede Ajuda".

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O casal recebeu o TAB no apartamento que vivem em Amparo (SP) há quase dez anos
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Com a pandemia e seu efeito avassalador no país — mais de meio milhão de mortos —, a procura pelos caça-fantasmas aumentou ainda mais. Tanto pela procura de respostas sobre a vida após a morte ou a necessidade de se despedir quanto pela tentativa de contato com quem se foi no hospital, sozinho.

Ainda assim, antes da cirurgia, o casal ainda fazia visitas presenciais nos locais para averiguar a presença de algo inexplicável. Rosa Maria explica não ser nada incomum que, em vez de partir para outro mundo, os mortos fiquem perambulando em torno de um ambiente ou de pessoas que eram próximos. Lidando com assuntos inacabados, digamos assim. "A grande maioria fica", resume.

O loop melancólico

Pensando na mulher fantasma da estrada, pergunto quais são os tipos mais normais de eventos sobrenaturais. A vidente aponta para o marido, que chega com uma parte mais "técnica".

João os resume em duas categorias: os espíritos e os fantasmas comuns. No caso do espírito, há sempre uma tentativa de comunicação, manifestações sobrenaturais no ambiente, indicando uma intenção de transmitir alguma coisa.

Já o fantasma é um espírito que revive em loop um único momento que marcou sua vida, seja feliz, triste ou violento, por toda a eternidade. "Filmamos uma vez o fantasma de um síndico que adorava trabalhar no prédio, saindo de uma parede com roupa e tudo", relembra.

Caso o lugar tenha mesmo um fantasma, este não acaba sendo armazenado em uma caixa especial, como fazem os caça-fantasmas de Hollywood. "Damos um encaminhamento para ele", explica a vidente. Inclusive, o casal é contrário de levar qualquer "lembrança" das expedições para casa.

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Nascidos em Porto Alegre, Rosa Maria e João estão juntos há três décadas
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

João e Maria: o casal 20

Ambos nasceram em Porto Alegre, mas só se cruzaram em 1990, quando Rosa Maria foi chamada para prestar uma consultoria de RH na produtora de João, na época publicitário. "Uma amiga psicóloga nos apresentou. A Rosa era chamada para fazer diagnósticos das empresas", ele relembra. "Parece que foi hoje que a gente se conheceu".

O dom paranormal de Rosa Maria veio cedo, aos 6 anos, quando ela olhou para uma imagem branca e preta de Jesus Cristo. A imagem piscou e sorriu de volta. Foi assim que, desde muito jovem, ela se viu chamada para "resolver" alguns assuntos.

No caso de João, crescer em uma família bastante católica ajudou a desenvolver certas angústias e dúvidas sobre seu chamado nesta vida. Pela religiosidade, em determinado momento ele achou que seria padre. Quando seu destino se cruzou com o da vidente, entendeu enfim o que deveria fazer.

Foi um encontro de forças distintas: ela, paranormal; ele, um especialista em parafernálias tecnológicas. Com ajuda do companheiro, Rosa Maria somou à sua experiência anterior a possibilidade de usar equipamentos importados supostamente capazes de detectar presenças incomuns. A compatibilidade e a cumplicidade entre ambos transbordam durante as horas de conversa.

Quando se conheceram, decidiram abrir mão de grande parte da vida "normal" para mergulharem totalmente na paranormalidade. Não se arrependem. "Um se achou no outro. Se a gente não se encontrasse, seríamos duas ovelhas negras perdidas", diz João.

A alma do negócio

Além da viatura "Dama da Noite 2.0" com o logotipo da empresa, o casal leva consigo quilos de equipamentos. Os mais comuns são aparelhos EMF, para medir campos eletromagnéticos, e microfones potentes para captar áudios emitidos em um raio de 100 metros. João sempre empunha também uma câmera com visão noturna, para captar as imagens. "Fazemos as investigações à noite porque as energias dos vivos costumam baixar", explica Rosa Maria.

"E também porque fica mais fácil pegar uma imagem que de dia passaria batida, além de dar um efeito mais impactante", complementa o marido.

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Os caça-fantasmas rodam o Brasil em busca de eventos paranormais com a viatura "Dama da Noite 2.0"
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Ainda nos primórdios do YouTube, longe do atual império de entretenimento, o casal começou a investir em um canal para publicar vídeos de suas expedições. As consultas com Rosa Maria custam R$ 600. Quando o casal decide gravar um caso, nada é cobrado, exceto os custos relacionados ao deslocamento. "Muitos seguidores nos hospedam", explica.

Fora as consultas particulares, o casal depende de doações dos inscritos para continuarem criando conteúdo. "Você não sabe como é difícil achar patrocínio. As marcas se desanimam, porque envolve morte", lamenta.

Eu quero acreditar

Com tanta disposição para documentar eventos inexplicáveis, os caça-fantasmas dizem já terem presenciado possessões, poltergeists, fantasmas e até manifestações extraterrestres. É preciso ter, no mínimo, cabeça aberta e um leve descompromisso com a verdade e racionalidade antes de mergulhar no ofício do casal.

Para um cético, os caça-fantasmas são apenas performance. Não faltam críticas ao trabalho do casal, sobretudo acusações de charlatanismo. Envolvidos no ofício com uma paixão invejável, não dão a mínima para o universo paralelo dos descrentes.

Fazem inclusive questão de demonstrar sua credibilidade mantendo contato constante com a imprensa. É uma relação que já pode ser considerada quase simbiótica. Nesta altura do campeonato, viraram figurinhas carimbadas de todo tipo de programa: Ratinho, Balanço Geral, Super Pop, Danilo Gentili. De acordo com Rosa Maria, esse contato constante com a mídia faz com que as pessoas confiem em seu trabalho. "É importante porque traz transparência", explica.

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Aparelhos usados pelos caça-fantasmas para medirem campos eletromagnéticos
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL
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Microfones potentes captam possíveis vozes do além nas expedições
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Em um país religioso e cheio de misticismos próprios, não faltaram paranormais pipocando em programas de televisão e, posteriormente, em canais de YouTube, para abordar o inexplicável. A diferença dos caça-fantasmas, argumenta João, é que a atuação deles não está atrelada a nenhum sistema de crença específico. "Minha vidência sempre vai trazer uma informação prática. O que não dá explicação é a religião", sintetiza Rosa Maria.

É por não terem apego a respostas concedidas por doutrinas religiosas, contam, que conseguiram atender tantos casos e conquistar o reconhecimento do universo dos paranormais.

Existem, claro, casos forjados de paranormalidade. Segundo a dupla, os casos falsos se devem a uma pressão de provar a existência de eventos paranormais. Pergunto sobre a história do ET Bilu, o "alienígena" que recomendou aos terráqueos buscarem conhecimento e virou celebridade no começo dos anos 2010 depois de aparecer em uma matéria do Domingo Espetacular na Record. "Acredito que houve, sim, contato", diz Rosa Maria. "Mas eles encenaram depois para as câmeras".

Mas não há espaço para dúvidas na vida do casal paranormal. O chamado do mundo dos mortos não costuma respeitar o horário comercial e, por conta disso, os dois vivem de acordo com sua rotina peculiar. João justifica o estilo de vida. "Na hora em que começamos a racionalizar o sobrenatural, dá errado".