'Ele me trancava no quarto', diz ex-moradora de castelo em Porto Alegre
Um pequeno castelo de pedra resiste no centro histórico de Porto Alegre. É quase impossível não parar, fotogravar e devanear sobre a edificação em estilo gótico medieval, construída no final da década de 40, a mando de Carlos Eurico Gomes, conhecido médico e político da capital gaúcha.
A fortaleza havia sido erguida para a sua namorada, Nilza Linck, uma jovem de 18 anos de Gravataí, região metropolitana da capital. Nilza era separada do primeiro marido e carregava em seus braços o pequeno filho, fruto do relacionamento anterior. A cidade inteira diz que ela passou anos aprisionada — só seu vulto aparecia à janela, vez ou outra.
''A história que sempre ouvi é que aí morava uma mulher bonita que tinha um marido muito ciumento. Foi ele que mandou construir o castelo para ela e depois a aprisionou", conta a porto-alegrense Aida Clavér, 68, enquanto tirava fotos do castelo-ostentação.
Vizinho de frente ao castelo desde 1958, o contador aposentado Ronaldo Rodrigues, 73, conhece o interior da fortaleza. "O prédio é muito úmido, frio e tem pouca iluminação. Ali também funcionou uma casa noturna chamada Ivanhoé, no final da década de 1950. Depois disso, a boate acabou fechando por pressão da vizinhança, por causa do barulho'', recordou. ''Meu pai de 105 anos vive aqui com a gente e falava sobre isso."
Bastidores da fortaleza
O bloco de pedra que ocupa toda a esquina tem ínfimas janelas estreitas. ''Castelinho do Alto da Bronze'', como é conhecido, já foi cenário de histórias amarguradas, com intrigas e ameaças de morte entre Carlos Eurico Gomes e a jovem Nilza.
Ela mesma, aos 98 anos (!), conta ao TAB. ''Conheci o Carlos num sábado à tarde, quando caminhava com minha prima na Rua da Praia. Estávamos olhando as vitrines quando o vi e começamos a conversar. Eu tinha uns 17, e ele, uns 40. De início ele estava interessado em namorar minha prima'', revelou Nilza Linck, que vive hoje no bairro São João, na zona norte da cidade.
Carlos era muito conhecido na sociedade. Foi nomeado ministro do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul e era casado com Ruth Caldas — irmã do proprietário do Jornal Correio do Povo. ''Por um bom tempo, ele se apresentava como Luciano Lobato e dizia que era solteiro. Eu não queria namorar, desejava apenas trabalhar, e foi aí que ele me conseguiu um emprego na prefeitura', revelou Nilza, que após longa insistência de Carlos, acabou cedendo ao romance.
A mentira de homem solteirão só veio à tona mais tarde, quando uma prima viu o político veraneando com a família no balneário de Imbé. ''Foi aí que fiquei sabendo que eu não era a única'', afirmou Nilza.
Tempos depois, a esposa de Carlos descobriu a traição e pediu o divórcio. O romance foi um escândalo na época, e Carlos foi morar com a amante no castelo construído especialmente para ela. ''Ele era apaixonado por castelos. Dizia que eu era uma princesa e que deveria morar ali. As mobílias eram bonitas e finas, todas escolhidas por ele. Eu achava bonito, mas não era muito aficionada a castelos'', comentou Nilza.
Na habitação moravam, além casal, o bebê de 5 meses e mais duas empregadas domésticas. Foram quatro anos de convivência, entre 1948 a 1952, mas nem tudo era no estilo dos contos de fada: Nilza revelou que nunca foi feliz ali dentro. Recebia ameaças de morte e insultos por causa do ciúme doentio do seu companheiro. Carlos era um homem frio e agressivo, a ponto de colocar um revólver em sua cabeça, desconfiando que a moça o estava traindo.
"No meio da noite, ele acordava do nada e gritava: 'diz ligeiro com o que tu estás sonhando'. Eu tremia, tinha muito medo. Ele olhava para baixo da cama, procurando alguém, algum homem. Ele tinha ciúmes de mim até dormindo'', relembrou.
Nilza recorda que, certa vez, foi convidada pelo companheiro para assistir a uma apresentação de artistas do Rio de Janeiro, no Cine Theatro Coliseu. Comentou com Carlos que gostava muito do cantor gaúcho Nelson Gonçalves, que estava ali presente. Reação de Carlos: uma forte pisada no pé de Nilza, seguido de um ataque de ciúmes que quase virou tragédia quando Carlos, na saída, tentou jogar o carro em direção ao lago Guaíba.
A vida da prisioneira do Castelinho do Alto da Bronze era limitada. Só saía acompanhada do marido. Em encontros com corregilionários em sua casa, Carlos chegava a esconder porta-retratos com fotos de Nilza para que os companheiros não a vissem. ''Eu ficava trancada lá em cima, no quarto'', lembrou.
Cansada das agressões, Nilza tomou coragem e resolveu fugir da fortaleza em 1952, carregando nos braços o filho, de mão dada com as domésticas. Escondeu-se em um apartamento alugado no centro, não muito distante do castelo. ''Um dia Carlos apareceu no apartamento, pois ele havia descoberto onde eu morava, e disse: 'tu vais voltar para mim! Tu juras em nome deste crucifixo (apontando para a parede) que tu vais voltar?' E eu dizia: 'eu não vou voltar'. Ali ele me agrediu. Foi a primeira vez que me bateu."
Após a separação, Nilza conheceu outro homem, com quem se casou. Viúva e mãe de dois filhos, ela passa o dia ouvindo os boleros de Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto, Orlando Silva, Altemar Dutra e Alcione. Apaixonada por cães e gatos, Nilza Linck convive com seus animais de estimação sob os cuidados de sua filha, Fátima.
Carlos Eurico Gomes casou-se com Nélida Sempé. O casal viveu por alguns anos no castelinho. Os atuais proprietários compraram o castelo de familiares de Nélida, que havia deixado a propriedade como herança.
O castelinho hoje
Nos anos 1950, o lugar era a boate do poeta, compositor e jornalista Ovídio Chaves, falecido em 1978. Além disso, o pequeno forte medieval foi sede do Clube das Chaves, um local com música ao vivo, muito prestigiado por artistas e intelectuais como Mário Quintana, Iberê Camargo, Nelson Gonçalves e Cecília Meireles.
Depois, virou residência familiar, consultório de dentista e espaço cultural. Uma artista plástica vive hoje no local, segundo os atuais proprietários, que vivem ao lado do castelinho.
Rui Cláudio da Cunha Marques, 73, e a esposa Neila Marques, 63, contam que compraram o imóvel em 2006. Apesar da fama do lugar, o casal garante que não se arrependeu. ''Compramos com a intenção de integrar o prédio com a casa, já que nossos filhos eram pequenos, então virou um verdadeiro parque de diversões'', afirmou Neila. ''Imagina se alguém comprasse esse castelo e transformasse numa cafeteria, ou numa boate, daí tu não dormes mais à noite. Na verdade, nós compramos a nossa tranquilidade'', acrescentou Rui.
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