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'O início de um sonho / deu tudo errado': pandemia ensina arte do improviso

Kelly Sikkema/Unsplash
Imagem: Kelly Sikkema/Unsplash

Luiza Pollo

Colaboração para o TAB

08/11/2020 04h00

Neste ano, a educadora Mariana Pereira* iria começar um longo treinamento, viajando pelo estado de São Paulo, para assumir uma nova vaga em seu trabalho — disputadíssima, aliás, e muito desejada por ela. O casal Luiz Krein e Raísa Giumelli ia fazer uma festa de casamento depois de dois anos juntando dinheiro e se organizando. Em seguida, viajaria para a África do Sul na lua de mel. E o publicitário João Marcelo Borges Cunha ia participar, depois de anos de planejamento, da Star Wars Celebration nos Estados Unidos. O ano de 2020 chegou com muitas expectativas para todos eles.

Aí veio a pandemia e mudou tudo.

Pereira pediu licença não remunerada do trabalho depois de ter episódios de esgotamento mental (burnout) ao assumir a nova função totalmente online, com atribuições diferentes daquelas que esperava e sem a possibilidade de ser treinada para isso. Krein e Giumelli se casaram apenas no civil e agora tentam remarcar festa e viagem. O pior: uma das companhias aéreas decretou falência durante a pandemia e eles ficaram com opções restritas para chegar à África do Sul. Já Cunha precisou adiar em dois anos a ida à convenção dos sonhos, e perdeu todo o investimento em hotéis deste ano.

"A primeira coisa que passa pela cabeça é que 2020 foi um ano perdido. Ainda mais quando você tem um sonho há bastante tempo e, quando finalmente vai realizá-lo, tem que adiar um pouco mais", diz o publicitário ao TAB. "Fica aquele gosto agridoce, e a gente pensa que nada é tão certo quanto imaginava."

Os exemplos Krein, Cunha e Pereira refletem a realidade de muitos brasileiros. O número de casamentos foi 33% menor de janeiro a agosto deste ano em comparação com 2019, segundo o Colégio Notarial Do Brasil, e a quantidade de voos no país chegou a cair 90%. É difícil mensurar quantas pessoas perderam oportunidades de emprego por conta da pandemia, mas o burnout relatado por Pereira é generalizado: em uma pesquisa encomendada pela Microsoft, 44% dos brasileiros participantes (trabalhadores do setor da informação) disseram estar mais exaustos neste período. Fomos o país líder dentre as oito nações pesquisadas.

Arthur Danila, coordenador do Programa de Mudança de Hábito e Estilo de Vida do IPq-USP (Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo) explica que fazer planos é algo essencial para o nosso bem-estar. Das pequenas listas de afazeres do dia a dia, que nos dão uma sensação de tarefa cumprida, àquelas ambições maiores, como uma grande viagem ou uma festa de casamento. "Na ausência desses pequenos planos realizados, perdemos a cronologia somatória do tempo e a consequente capacidade de aglutinar essas pequenas conquistas em uma perspectiva mais ampla", afirma ele.

Durante a pandemia, perdemos alguns instrumentos necessários para fazer planos, principalmente novas oportunidades. As tarefas do dia a dia ficam limitadas, e nos sentimos estagnados. Isso tudo mexe com o cérebro. "Uma das regiões cerebrais mais envolvidas nesses processos é o córtex pré-frontal, responsável pelo controle da atenção, do raciocínio e do comportamento", diz o especialista.

Sem perspectiva

É seguro dizer que todo mundo teve pelo menos algum plano alterado por conta da pandemia do novo coronavírus — mesmo que tenha sido só uma cerveja com os amigos no fim de semana, remarcada para "quando tudo isso acabar". Mas quando será que acaba? Se mesmo a vacina não é a promessa do fim da pandemia, como alertou a OMS (Organização Mundial da Saúde), quando vamos nos sentir seguros para fazer planos novamente, principalmente aqueles que envolvem grande investimento de dinheiro ou tempo?

Pereira, por exemplo, conta que não sabe ao certo quando vai voltar a trabalhar. Krein e Giumelli ainda estão inseguros em cravar novas datas para a viagem e o casamento. Já Cunha ficou aliviado pela convenção ter sido remarcada apenas para 2022: até lá, é mais provável que as coisas "voltem ao normal".

Mas, por enquanto, essa falta de perspectiva e a insegurança em criar expectativas para planos futuros também mexem conosco, para além da frustração dos planos desfeitos. Danila cita o psicólogo americano Martin Seligman, conhecido por suas teorias no campo da psicologia positiva: "Para uma vida plena, estariam agindo cinco principais fatores: emoções positivas, engajamento, relacionamentos saudáveis, propósito e realizações. O último fator, mas não menos relevante, relacionado à elaboração e conquista de objetivos que estabelecemos para nós — sejam eles momentâneos ou ligados ao nosso propósito de vida — depende sobremaneira de planejamento." Sem planos, portanto, é normal se sentir sem propósito.

Novos paradigmas

Você já deve ter visto na internet — principalmente no Twitter — aqueles posts comparando como uma situação começou, e ao lado mostrando um final feliz. É o famoso "o início de um sonho" / "deu tudo certo", ou a versão em inglês "how it started" / "how it's going". Bem, 2020 abriu espaço para muitos memes desse tipo. A regra geral é que deu tudo errado, para todo mundo, sem muitos finais felizes.

Mas será que não dá para tirar algo de positivo dessa mudança de paradigma, ou pelo menos conquistar um pouco do bem-estar perdido com o fim dos planos?

Para Danila, a resposta é sim, nos dois casos. Ele defende que a palavra de ordem deve ser resiliência, que pode ser trabalhada com algumas práticas que ajudem a se concentrar no momento presente. "Práticas meditativas e de mente-corpo — como o ioga e pilates — podem auxiliar, nos fazendo focar nossa atenção ao momento presente e às potencialidades existentes em cada momento da vida, que é o que de fato está sob nosso controle", sugere.

Sobre o futuro, ele defende que podemos aproveitar esse momento de disrupção para lembrar que nada está muito garantido, mas que dependendo da situação temos as ferramentas necessárias para nos recompormos.

Foi o que aconteceu com Pereira. Inicialmente, a educadora contou que 2020 seria "seu ano". Sabe aquela impressão de que está tudo alinhado com seus planos? Era o caso dela. Depois de ser selecionada entre 200 candidatos para a mudança de vaga na empresa, a educadora decidiu tirar algumas semanas de férias e viajou ao Japão com o marido. Comemorou o aniversário e voltou ao Brasil ainda com a expectativa de um ano focado na carreira.

Perguntei se ela teria receios daqui para frente, algum tipo de insegurança ao traçar novos planos. Mesmo que o projeto tenha ido por água abaixo, ela disse que não. "Muito pelo contrário. Eu acho que traz para a gente a noção de que as coisas podem mudar muito rapidamente. Isso te deixa mais maduro, mais cuidadoso. Se não rolar, tudo bem."

*O nome foi alterado a pedido da entrevistada.