Tudo ao mesmo tempo: pandemia nos confinou a diferentes dimensões temporais
Que dia é hoje? A pergunta se tornou comum "em tempos de pandemia", expressão mais que manjada desde março.
O tempo, diz o historiador Rodrigo Turin, professor associado da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), se desdobrou: vivemos agora sob co-temporalidades, isto é, temporalidades que coexistem, sob tensão. "Vivemos hoje tempos múltiplos, sem que haja um eixo único que os ordene. Um dos fenômenos que mais chama a atenção é o processo atual de repolitização do tempo", diz o autor de "Tempos precários" (Zazie, 2019) e "Tessituras do tempo" (Ed. Uerj, 2013).
De um lado, não tiramos o olho do retrovisor, discutindo questões mal resolvidas do passado -- como estátuas de escravocratas. De outro, tateamos às cegas o que será o futuro pós-pandemia, o famoso "novo normal", para lembrar outro jargão dos tempos pandêmicos. No meio do caminho, tem um vírus. "Estamos em uma encruzilhada inédita em termos de experiência histórica", diz Turin. Esta encruzilhada é um marco do Antropoceno, época em que, segundo alguns estudiosos, a humanidade se sobrepôs à natureza como força dominante no destino da Terra.
Antropoceno é um conceito proposto pela primeira vez pelo químico holandês Paul Crutzen, vencedor do Nobel de 1995 por seus estudos sobre a camada de ozônio. "O termo, cunhado nos idos de 2000, ainda não é muito discutido no Brasil", diz Turin. No jornal britânico The Guardian, ele exemplifica, há mais de 2 mil textos a respeito; no francês Le Monde, por volta de 500; na Folha de S.Paulo, cerca de 50.
Na era do Antropoceno, a humanidade se torna agente geológico, impactando mudanças climáticas profundas. A natureza, por sua vez, se torna agente histórico, influenciando como vivenciamos diversas temporalidades. Entre aulas, artigos, livros e lives, Turin passou "da desorientação do início da pandemia à organização de uma rotina mínima e chegou, hoje, à exaustão do confinamento indefinido". Do Rio, o historiador conversou com o TAB sobre tempo, temporalidades e humanidades.
TAB: A pandemia foi declarada há quase 200 dias. Para autores como a antropóloga Lilia Schwarcz, é um marco do fim do século 20. Concorda com a periodização?
RT: Todo ato de enunciar o início ou o final de uma época é um ato político e científico. Tem um caráter performático dizer que o século [passado] acabou em 1989, com a queda do Muro de Berlim, como defendeu [o historiador britânico] Eric Hobsbawm, ou afirmar que termina agora, com a pandemia. Cada marcação destaca certos sentidos do tempo, apagando outros. Entretanto, esse tipo de classificação perdeu força. A sociedade ocidental moderna, desde o final do século 18, foi a única a se classificar em épocas, declarando a si mesma como "moderna". Isso implicava universalizar um sentido do tempo, que era branco, cristão e patriarcal, distinguindo-se de outros, considerados "atrasados" ou "primitivos". Assim, interessa mais entender quais são os efeitos políticos das classificações. Para os povos ameríndios, por exemplo, que sentido teria a ideia de um novo século começando com a pandemia, quando eles vivem com pandemias trazidas pelos brancos desde o século 16? Se fosse formular uma ruptura, eu diria que entramos em uma nova ordem temporal, na qual a própria noção de época histórica torna-se inapropriada. Uma nova ordem plural, em que os tempos da natureza e da sociedade se reencontram e coexistem diferentes temporalidade sociais. O Antropoceno é esta nova ordem.
TAB: Como você define o Antropoceno?
RT: O termo foi introduzido por um químico, Paul Crutzen, em 2000. Nas últimas duas décadas, tem ganhando um espaço importante no debate científico. Uma comissão geológica internacional foi montada para sistematizar a discussão (sob o ponto de vista geológico), coletando evidências que permitem classificá-lo como nova "unidade geológica de tempo" impactada pela humanidade. Há toda uma discussão sobre quando se daria o início dessa época, variando de 10 mil anos atrás, com o início da agricultura; no século 16, com a expansão marítima e a colonização; no fim do século 18, com a invenção da máquina a vapor; ou no século 20, no pós-Segunda Guerra Mundial. Interessante que há evidências para todos esses inícios, e implicações políticas para esses inícios. Inclusive, alguns autores sugerem entender o Antropoceno como "Capitaloceno", posicionando o sistema capitalista como responsável maior. De todo modo, o que se destaca dessa nova época é o reencontro entre história e natureza. A humanidade se torna agente geológico, enquanto a natureza insere-se como uma espécie de ator histórico -- inclusive, mais acelerada que a habilidade humana de dar respostas políticas à crise climática. Ela se senta na mesa para negociar, digamos assim, já que 1,5°C estão garantidos como aquecimento global. E isso traz imensos desafios para as ciências, pois a divisão entre ciências humanas e ciências naturais torna-se caduca nesse cenário, cobrando novas formas de interlocução entre os saberes.
TAB: Ciências biológicas, dados e modelos matemáticos estão sob holofotes na pandemia. Qual é a contribuição das ciências humanas?
RT: Elas podem contribuir justamente com reflexões sobre o tempo que vivemos -- e por que o tempo que vivemos viu aflorar o negacionismo científico, o movimento antivacina ou anticlimático. Entender quais são as condições culturais e sociais que propiciaram o crescimento de discursos negacionistas, que é uma questão muito mais política do que cognitiva. Isso quer dizer que o negacionista não é burro, não falta informação, não se trata de uma deficiência cognitiva; trata-se de uma posição política, o que envolve ética e valores. Muitas vezes, não adianta trazer dados, números, tabelas para convencer alguém negacionista. Isso supõe que os sujeitos são abstratos. Mas, não: são sujeitos de carne e osso, inseridos em mundos religiosos, políticos ou culturais que carregam ideias mais fortes do que qualquer estatística. O convencimento não virá apenas a partir de argumentos puramente científicos, é preciso dialogar com esses mundos. Daí a importância de fazer a ciência voltar para o mundo pé no chão e não ficar restrita a uma linguagem formal, que também é importante, mas não é única. Quem faz esse tipo de reflexões? As ciências humanas.
As ciências humanas e as ciências naturais precisam estabelecer um novo diálogo, a fim de produzir uma linguagem capaz de atingir esses estratos onde são produzidos os negacionismos. Vivemos sob um governo que, literalmente, diz querer aproveitar a pandemia para "passar a boiada" e mudar regras na área ambiental -- o que está alinhado a um discurso negacionista da questão climática, por exemplo. Como vamos conseguir convencer alguém de que esse não é o melhor caminho?
TAB: Muitas discussões sobre o tempo têm marcado a pandemia. Por um lado, há quem diga que estamos parados, estagnados dentro de casa. Por outro, há quem destaque que 2020 está passando sem nem nos darmos conta. Estamos mais acelerados ou mais parados?
RT: A pandemia intensificou fenômenos que já existiam, como a migração da vida para o digital ou a precarização das relações de trabalho. O tempo da economia, da política, do trabalho, da natureza, das redes sociais, todos esses tempos nos atravessam. Nossa sociedade vive tempos extremamente dessincronizados. É essa pluralidade que faz com que tenhamos sensações divergentes, ou mesmo contraditórias. Estamos, ao mesmo tempo, mais acelerados e mais imobilizados na pandemia. O confinamento físico dos corpos representou uma expansão de suas existências virtuais, acelerando a digitalização de setores inteiros da sociedade. Aulas virtuais, home office, shows online, o consumo pela internet, as notícias, tudo isso embaralha nossas sensações temporais, pois tudo isso acontece no mesmo espaço (o confinamento da casa) e, muitas vezes, simultaneamente.
TAB: Hoje discute-se o presente, mas revira-se o passado (discussões acerca de estátuas, escravidão, ditadura) e, ao mesmo tempo, indica-se um futuro distópico. Como você vê esses cruzamentos?
RT: Para usar uma frase de Shakespeare, bastante conhecida, "o tempo está fora do eixo". Vivemos hoje tempos múltiplos, sem que haja um eixo único que os ordene. Não há mais uma singularidade temporal, concentrada em ideias fortes como "progresso". Além de acelerada, a sociedade contemporânea é dessincronizada, com diferentes tempos em disputa. Um dos fenômenos que mais chama a atenção é o processo atual de repolitização do tempo. Isso se manifesta de diferentes formas: na derrubada de estátuas, nas reivindicações de reparações de crimes do passado, no resgate de memórias silenciadas ou, ainda, na atualização de passados que imaginávamos ultrapassados, como os neofascismos que emergem globalmente. Na medida em que o tempo singular da modernidade se dissolve, sendo desnaturalizado e criticado, as experiências temporais tornam-se novamente objetos de disputa.
TAB: Lives marcam timelines quase o tempo todo. Estamos reféns do presente? Onde ficam os historiadores neste contexto?
RT: A demanda de um tempo urgente se intensificou na pandemia. A meu ver, isso se deve a dois fatores principais. Primeiro, a migração para o mundo digital acelerou a compressão do tempo. Como a própria dimensão espacial é anulada pelo virtual, há o efeito de uma aceleração temporal, causado pelo excesso de conteúdos nas redes. Eventos que aconteceriam em espaços distantes e inacessíveis tornam-se, agora, plenamente disponíveis nas "lives". Basta clicar. Segundo, a compressão do tempo vem agravada pelo ambiente político em que vivemos, com a ascensão de neofascismos e violências de toda espécie, que nos trazem a urgência como imperativo cívico. Tudo isso afeta bastante o trabalho dos historiadores, que se veem interpelados a ocupar as redes e produzir conteúdos voltados a essa urgência. A resposta é necessária, mas não deixa de ser problemática, uma vez que acaba por fazer sucumbir o trabalho historiográfico a uma forma presentista, deixando pouco espaço para temas e pensamentos menos "urgentes" -- e que são igualmente importantes para pensarmos outros tempos possíveis. De todo modo, esses movimentos tecnológicos e políticos tendem a acabar mudando o campo historiográfico de maneiras que nós não podemos sequer prever.
TAB: Previsões, por fim. Sairemos melhores ou piores pós-pandemia? Por quê?
RT: Nem melhores, nem piores. No momento, só o fato de sair dessa pandemia já seria um imenso ganho -- e nem a saída é certa. Estados pandêmicos tendem a se tornar cada vez mais comuns, já que quase toda a biosfera está sob controle humano. Talvez essa experiência possibilite percebermos o quanto somos seres precários e o quanto o mundo é frágil. Essa percepção possibilitaria imaginarmos formas mais cuidadosas de estabelecer relações entre nós e o mundo. Nossa fragilidade nos encaminharia a experimentar tempos mais habitáveis, mesmo entre as ruínas que herdamos. De todo modo, como sou ruim de futurologia, diria como a personagem de um romance de Ben Lerner: "Tudo será como agora, só que um pouco diferente".
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