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Modelos matemáticos ganham os holofotes e viram alvo de disputa na pandemia

Unsplash/ThisIsEngineering
Imagem: Unsplash/ThisIsEngineering

Luiza Pollo

Colaboração para o TAB

29/07/2020 04h00

Um dos pontos de virada da preocupação dos brasileiros com o novo coronavírus ocorreu a partir do fim de março, quando o biólogo Átila Iamarino comentou uma projeção do Imperial College de Londres que previa até 1 milhão de mortos por Covid-19 no Brasil, caso medidas de distanciamento social e testagem massiva não fossem adotadas.

Quatro meses depois, a projeção ainda não havia se concretizado, e Átila foi cobrado no Twitter por supostamente ajudar a divulgar uma previsão catastrófica. No entanto, o estudo inicial fazia projeções com 14 cenários, considerando diferentes níveis de mitigação do contágio.

O Brasil pode até não ter sido bem-sucedido nas medidas de isolamento social que poderiam nos colocar na melhor das previsões — com 44 mil mortos no total —, mas tomou decisões como fechamento de escolas, comércio, obrigatoriedade do uso de máscara, entre outros. Átila precisou explicar (clique para ver a sequência completa):

Outro modelo, encomendado pela Easyinvest, fez barulho ao ser publicado no Twitter pelo economista Samy Dana, um dos autores do estudo, por prever um número bem menor de mortes do que o estudo do Imperial College. O debate virou fla-flu nas redes sociais, fomentado pelas discussões da defesa ou não de medidas rígidas de distanciamento social.

E essa não foi a única discussão sobre a aplicação de modelos matemáticos à epidemiologia durante a pandemia de coronavírus. Com a produção científica acelerada pela busca de respostas rápidas para uma doença sobre a qual ainda conhecemos muito pouco, diversos modelos matemáticos — uma equação ou um conjunto delas — estão sendo testados para entender e prever cenários no mundo.

Mais recentemente, o desentendimento foi sobre a chamada "imunidade de rebanho". Se antes acreditava-se que entre 60 e 80% da população precisaria se infectar para que a transmissão fosse considerada "controlada", novos estudos (como este, publicado no fim de junho na Science) apontaram para a possibilidade de números inferiores em determinadas populações. Algumas interpretações sugeriam 'esperança' de que a imunidade de rebanho poderia ser atingida em breve, mas os pesquisadores alertaram que isso ainda significaria um número muito alto de mortes, e que os resultados não apontavam a imunidade de rebanho como solução ideal.

De onde vem a confusão?

A briga de parte da população contra a matemática aplicada na pandemia se insere, por um lado, no contexto da negação à ciência e contestação dos resultados. Mas Caetano Souto Maior, pesquisador no National Institutes of Health (NIH), nos Estados Unidos, argumenta que também há falta de compreensão do fazer científico. "Existe uma barreira para a interpretação desses estudos. Principalmente agora, que alguns estudos são colocados no domínio público pelos pesquisadores, pula-se uma etapa na qual se tem uma discussão entre cientistas sobre aquele trabalho e como divulgá-lo. E muitas vezes o público não sabe fazer uma leitura sistemática", diz Souto Maior, que é doutor em biologia computacional com pesquisa em epidemiologia matemática.

Modelos matemáticos vêm sendo usados há mais de 200 anos para interpretar doenças infecciosas, como relata a Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, e estão em constante aprimoramento. Sobre o coronavírus, temos apenas algumas informações básicas para aplicar a essas regras — sabe-se, por exemplo, que a Covid-19 é uma doença com número básico de reprodução de aproximadamente 2,4 a 3,3, segundo o Instituto Robert Koch, responsável na Alemanha pela monitoração de doenças infecciosas. Sabe-se, com diferentes níveis de precisão, o número de contaminados e mortos em cada país. Sabe-se que o período de incubação fica em torno de cinco dias. Mas ainda não se sabe, por exemplo, quanto tempo dura a imunidade após a recuperação. Isso dificulta a previsão de alguns cenários por cálculos.

"Os desafios estão em permanentemente adequar os modelos conforme novas descobertas são obtidas sobre o comportamento do vírus e da doença", afirma Marcus Werner Beims, professor titular do Departamento de Física da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e pesquisador do CNPq sobre sistemas complexos e dinâmica não linear, envolvido em pesquisas com diversos modelos matemáticos aplicados à pandemia. "Se fosse descoberto, por exemplo, que pessoas recuperadas podem ser infectadas novamente, teríamos que urgentemente modificar certos modelos para incluir esta possibilidade. Os cenários futuros, decorrentes dessa descoberta, poderiam mudar bastante."

"Todos os modelos estão errados"

Há uma máxima atribuída a George Box, estatístico britânico, que diz o seguinte:

Essencialmente, todos os modelos estão errados, mas alguns são úteis.

Isso quer dizer, em outras palavras, que os modelos matemáticos são todos aproximações, suposições da realidade, e não são capazes de refletir resultados exatos. Mesmo assim, "é melhor ter alguma ideia do que vai acontecer do que não ter nenhuma ideia", defende Souto Maior. "A vantagem dos modelos é que você pode criar cenários — você pode colocar os parâmetros biológicos relevantes num sistema de equações e tentar prever mais ou menos qual será o cenário." Isso evita, por exemplo, o custo das vidas que seriam perdidas se a gente precisasse testar na prática cada uma das 14 maneiras de tentar conter a pandemia descritas naquele estudo inicial do Imperial College.

Uma das questões mais importantes — se não a mais importante de todas — é ter dados precisos para alimentar essas equações, ressaltam os especialistas entrevistados. Um número baixo de testes ou a dificuldade de acesso ao número de novos casos ou mortes pela doença impacta as previsões calculadas.

Há modelos, por exemplo, que analisam e preveem a propagação geográfica do vírus, exemplifica Beims, da UFPR. "Nestes modelos, cidades, regiões, e países tornam-se vértices de uma rede, e as arestas são as rodovias e/ou aeroportos que conectam os vértices. As propriedades intrínsecas das redes complexas podem dar informações sobre quais cidades, regiões ou países são mais suscetíveis ao vírus, quais rodovias ou conexões entre aeroportos são mais — ou menos — relevantes para a propagação". Nesse caso, é necessário ter dados precisos sobre fluxo de automóveis e de pessoas, por exemplo.

Como confiar?

Souto Maior reconhece ainda que sempre há a possibilidade de aplicar modelos com objetivos não muito nobres. "Os modelos não são fonte objetiva de verdade. São feitos por humanos que tentam formalizar algo a partir de sua experiência. E é possível que alguém faça sabendo que está errado, colocando um verniz matemático para chegar à resposta que desejava", afirma.

Para ele, o que pode ajudar a diminuir as dúvidas é uma compreensão melhor do fazer científico. E isso não se faz de um dia para o outro, reconhece. "Uma questão essencial é que a interpretação de resultados científicos seja ensinada na escola. Fica parecendo que a ciência é uma coisa feita por um pessoal de cabelos brancos, descabelados, e ninguém mais pode entender. Ou que para compreender matemática tem que ser igual ao filme 'Uma Mente Brilhante' e enxergar equações na janela", diz. "A falta de compreensão é de onde vem a negação ou a ideia de que há interesses específicos. Não que a ciência seja perfeita, mas o conhecimento permite que você discuta esses pontos da forma mais aberta possível."