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Discussão produtiva: como evitar que desentendimentos destruam relações

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Imagem: Getty Images

Marília Marasciulo

Colaboração para o TAB, de Florianópolis

15/07/2020 04h00

Uma guerra silenciosa ocorria há alguns anos em minha casa. O motivo era tão banal que fico até com vergonha de revelar: a presença ou não de um tapete em frente à pia da cozinha. Eu e minha mãe o detestávamos. Meu pai e meu irmão o apoiavam incondicionalmente. O conflito se dava principalmente no põe-e-tira diário do tal tapete, com alguns ataques de fúria eventuais de alguma das partes — "pelo menos não coloquem um trapo horroroso!", reclamei algumas vezes; "não suporto essa poça que fica no chão!", bradava meu pai quando pilotava o fogão.

Sem nunca de fato debater — quer dizer, o mais próximo que chegamos disso foi fazer uma votação, mas diante do empate não chegamos a nenhuma conclusão — o problema seguiu sem ser resolvido por anos. Até eu ler o livro "Why Are We Yelling: The Art of Productive Disagreement" (Por que Estamos Gritando: A Arte da Discórdia Produtiva, em tradução livre), publicado nos Estados Unidos pela Macmillan, em novembro de 2019, e ainda sem edição em português. Nele, o autor Buster Benson traz uma perspectiva ousada: discórdias não precisam ser ruins ou acabar em brigas. Na verdade, podem ser bastante benéficas ou, no mínimo, produtivas.

"Discórdias são sinais da saúde de um grupo, não de patologia, e culturas que permitem que as queixas sejam expostas para que sejam encaradas produtivamente têm maior probabilidade de criar relacionamentos, negócios e comunidades bem-sucedidas", escreve o autor. Ele menciona o psicólogo John Gottman, especialista em casamentos, que defende que relacionamentos sem conflito não têm comunicação e, portanto, são fadados ao fracasso — Gottman chegou inclusive à proporção que considera o ideal: 5 conversas positivas para uma negativa.

O problema, opina Benson, é que a maioria das pessoas nunca aprendeu a discutir. Como diz o ditado "escolha a suas batalhas com sabedoria", o senso comum é o de que devemos fazer o possível para manter a paz. "Quando as pessoas deixam de expressar as próprias crenças, isso se torna problemático, pois só porque elas não são expressas, não significa que não existem", diz Alastair Donald, diretor associado da Academia das Ideias, organização britânica criada em 2000 com o objetivo de promover debates sobre temas considerados controversos. "E se você não pode expressar suas ideias, ninguém vai poder desafiá-las se elas não forem boas."

Discordar sem persuadir

A dificuldade da minha família de falar sobre o tapete passava por três pontos que, segundo Benson, são os maiores mitos sobre a discórdia: o de que é algo ruim, quando na realidade é só um sinalizador para questões que merecem nossa atenção; de que tem como objetivo fazer a outra pessoa mudar de ideia, quando na verdade deve servir para aproximar modos de pensar diferentes; e de que pode ter um fim bem estabelecido.

"Quando dialogamos com alguém que pensa diferente de nós, não significa que temos que concordar com o que ele diz", explica ao TAB a psicóloga Gabriela Malzyner, mestre em psicologia clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Por mais que a tentação de convencer o outro seja grande — afinal, se ambos os lados concordassem, não haveria mais uma discórdia —, o efeito pode ser justamente o contrário. Mesmo que estivéssemos inclinados a concordar, a insistência poderia parecer uma afronta ao nosso livre arbítrio, e nos deixar mais apegados a contrariar a outra pessoa.

"Persuasão é oferecer incentivos, recompensas e, às vezes, até ameaças para fazer a balança pesar a seu favor — o que é bem diferente do desentendimento produtivo", escreve Benson. Ele relembra o mito grego de Éris, a deusa da discórdia. Ao não ser convidada para o casamento de Peleu e Tétis, como todos os outros deuses do Olimpo, Éris ficou uma fera. Para provar a Zeus que ele errou ao não convidá-la, enviou anonimamente aos deuses na festa uma maçã dourada com a inscrição "para a mais bela".

As deusas do Olimpo se apressaram para clamar para si o título de mais bonita. Para minimizar o que poderia se tornar uma confusão, Zeus chamou Páris, um mero pastor considerado o mortal mais justo da região. Hera, Atena e Afrodite tentaram persuadi-lo com oportunidades gloriosas, e Afrodite venceu o debate ao prometer a Páris o coração de Helena de Tróia, considerada a mulher mais bonita do mundo. Isso significa que Afrodite era realmente a deusa mais bela do Olimpo? Jamais saberemos. O que se sabe é que esse pequeno truque de persuasão acabou provocando a Guerra de Tróia.

Disposição para se indispor

Ouvir o que o outro tem a dizer sem o objetivo de fazê-lo mudar de ideia é um exercício de escuta que, se bem feito, pode ser enriquecedor para ambos os lados, mesmo que sirva apenas para o autoconhecimento de suas crenças. "Ter alguém que desafia as suas ideias é uma maneira de melhor entender a si mesmo", diz Donald.

Para que essa escuta seja benéfica, complementa Malzyner, é preciso estar de fato aberto ao que ela pode acarretar. A especialista usa uma metáfora do livro "Tirando os sapatos: O caminho de Abraão, um caminho para o outro", de Nilton Bonder, publicado pela Editora Rocco em 2008. "Ele diz que, quando a gente visita a casa de alguém [que aqui representa ouvir o ponto de vista alheio], temos que estar descalços", diz Malzyner. "Isso significa ter cuidado com a terra e, ao mesmo tempo, se desapropriar de uma defesa em um solo que pode machucar. Uma discussão deve ser um exercício de estar descalço, de entrar em um ambiente sem tanta proteção e se expondo, mas cuidando também do outro."

Outro exercício importante para tornar as discussões mais produtivas, explica o autor do livro, passa por aprender a distinguir o tipo (ou reino, como Benson preferiu chamar) do desentendimento em questão: se é algo que diz respeito à mente, ao coração ou às mãos -- e é possível que um desentendimento combine mais de um reino.

A distinção é importante para melhor compreender de onde vêm os argumentos de cada lado e para que ambos falem a mesma língua. Na discórdia do tapete, por exemplo, entender isso foi o primeiro passo para começar a encarar o problema. Para meu pai e meu irmão o tapete era só uma questão de mãos — é útil para evitar poças na frente da pia. Mas, para mim e minha mãe, além de uma questão de mãos, era uma questão de coração — frequentemente escorregamos com o pano, que acaba mal posicionado, e achamos que ele deixa a cozinha feia.

Nas poucas vezes que tentamos encarar o problema, fizemos de uma maneira absolutamente improdutiva: buscando evitar o conflito (e, com isso, criando ainda mais conflito), ou tentando dissuadir o outro a se convencer da utilidade ou inutilidade do tapete e, por fim, abordando a questão com perspectivas diferentes. Não adiantava meu pai explicar que as poças o incomodavam, se para mim o problema era estético, e vice-versa. Ao buscar a abordagem mais produtiva para a discórdia, a guerra começou a ganhar contornos de trégua: decidi comprar um tapete antiderrapante e minimamente agradável esteticamente. Um consenso simples, mas que -- pelo menos por enquanto -- talvez dê início a um período de paz.